STF, precedente, coisa julgada e efeitos retroativos: dúvida “da vez”

Laura Spitzkopf, Camila Campos Vergueiro

Uma das discussões mais polêmicas deste ano envolveu as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento dos recursos extraordinários nº 949.297 e nº 955.227 — Temas 881 [1] e 885 [2] respectivamente.

Tomados como precedentes vinculantes, uma vez que julgados com o reconhecimento de repercussão geral da matéria, neles foi fixada a tese de que as decisões do STF em controle concentrado (ação direta de inconstitucionalidade ou declaratória de constitucionalidade) ou difuso (via recurso extraordinário com repercussão geral) sustam os efeitos futuros da coisa julgada formada em ações que tenham como objeto relações jurídicas de trato continuado [3].

Ao contrário do que foi amplamente divulgado, a discussão não girou em torno da flexibilização da coisa julgada propriamente dita, a qual, de fato, no caso concreto e consoante o entendimento manifestado pelo STF, foi preservada.

Em nossa opinião, a questão posta para apreciação nos referidos recursos versou sobre os limites da aplicação de precedentes vinculantes formados nos tribunais superiores. Isto se confirma porque o julgamento desse assunto somente foi conhecido e analisado pelo STF quando demonstrado que se tratava do “impacto de um precedente proferido pelos tribunais superiores em decisões judiciais transitadas em julgado”, ou seja, matéria constitucional.

A anunciada ideia de “flexibilização da coisa julgada” é algo que já se encontrava presente normativamente, conforme assegurado no código de processo civil de 2015 pelas vias da ação rescisória (artigo 966), da impugnação rescisória ao cumprimento de sentença contra a fazenda pública (artigo 535) ou da ação revisional (artigo 505, inciso I). Desta forma, a decisão do STF apenas fixou parâmetros sobre o impacto da decisão em controle de constitucionalidade sobre os efeitos prospectivos decorrentes de decisão transitada em julgado em relações jurídicas de trato continuado.

Contudo, o ponto de relevante objeção trata dos efeitos dos julgamentos vinculantes, sobre matéria tributária em si (ante o objeto desta coluna), nos casos individuais. Isto porque, foi reconhecido que o entendimento manifestado pelo STF acerca da (in)constitucionalidade teria o mesmo efeito de uma regra-matriz de incidência tributária nova e, por isso, concluiu-se que a decisão do STF deve respeitar os princípios da irretroatividade e anterioridade anual e/ou nonagesimal, conforme a espécie do tributo analisado.

Embora os acórdãos proferidos nos referidos recursos extraordinários tenham enunciado de modo claro os efeitos prospectivos da decisão, ainda permanece dúvida sobre a necessidade de ajuizamento de ação rescisória para desconstituir o resultado da decisão transitada em julgado, uma vez que a constitucionalidade do tributo específico discutido foi reconhecida no ano de 2007 — lembre-se: o caso tratou da exigência de CSLL.

Partindo do que sugere a manifestação do STF respeitados os princípios da anterioridade e irretroatividade, a CSLL passou a ser exigível daqueles contribuintes que tinham coisa julgada em seu favor? Seria necessário o ajuizamento de ação rescisória para afetar o período entre a formação da coisa julgada e a manifestação do STF em 2007? Quando começaria a contar o prazo de dois anos: do trânsito em julgado da decisão proferida no processo individual, do julgamento sobre a (in)constitucionalidade do tributo ou do trânsito em julgado desse julgamento no STF?

Pois bem, ao proferir o julgamento dos Temas 881 e 885, os ministros entenderam pela não modulação dos efeitos da decisão proferida e apontaram a aplicabilidade do artigo 535, § 8° do código de processo civil ao caso, aplicando o entendimento pacificado na tese do Tema 360 [4] em sede de repercussão geral, o qual confirmou a constitucionalidade do artigo 535, §5° do CPC, que permite mecanismo rescisório para arguir inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal ou fundado em aplicação/interpretação da lei ou ato normativo tido pelo Supremo como incompatível com a Constituição em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.

Já o referido artigo 535, § 8° do CPC estabelece que se a decisão proferida pelo STF for posterior ao trânsito em julgado da decisão na ação individual, sua rescisão supõe a propositura de ação rescisória em “prazo contado da decisão proferida pelo Supremo”.

Ocorre que, conforme manifestação do ministro Luiz Fux durante o julgamento do Tema 881 do STF, somente seria possível o ajuizamento de ação rescisória fundada em declaração de inconstitucionalidade de modo a retroagir os efeitos da decisão, se e somente se, a decisão de inconstitucionalidade surgir dentro do prazo bienal da decisão transitada em julgado, uma vez que não existe rescisória atemporal. Em suas palavras [5]:

“O que a comissão entendeu foi que essa decisão de declaração de inconstitucionalidade deveria vir no prazo bienal, porque senão teríamos uma ação rescisória atemporal. Veja que a interpretação é equivocada, tanto que o Ministro Gilmar já anunciou que não concorda com esse dispositivo, porque ele daria chance à Fazenda, a qualquer momento que for declarada a inconstitucionalidade, daqui a 20 anos, de promover a rescisória. Entretanto, não é isso que diz a lei. A lei diz que, se a decisão de inconstitucionalidade surgir nesse prazo bienal da rescisória, aí efetivamente poder-se-ia propor uma ação rescisória fundada nessa declaração de inconstitucionalidade. Porque a lei não previa uma ação rescisória atemporal. Não é isso. Não teria nem lógica”.

Em complemento, o ministro Luiz Fux apontou que, assim como se dá com as leis, apesar da eficácia expansiva do precedente vinculante, seus efeitos não podem retroagir, como, em nossa opinião, deu-se com a manifestação firmada no julgamento dos Temas 881 e 885, tendo em vista que o STF reconheceu a constitucionalidade da cobrança de CSLL em 2007 e a definição sobre o impacto do precedente vinculante restou definido apenas em 2023 (16 anos depois!).

É possível constatar que a discussão pode colocar em risco a segurança jurídica e a expectativa de direitos assegurados judicialmente quando se passa a admitir a exigência de tributos referentes a um passado que o contribuinte acreditava estar estabilizado normativamente.

Por isto a importância do julgamento dos embargos de declaração opostos pelos amicus curie contra o acórdão proferido no recurso extraordinário 949.297/CE (Tema 881/STF), a fim de estancar a obscuridade incorrida no julgamento, com o objetivo de se esclarecer a questão da eficácia efetivamente prospectiva ao julgado.

A referida questão merece detido cuidado por parte do STF para descontinuar a exacerbada litigiosidade que rege as relações entre fisco e contribuinte, bem como concretizar os pilares do CPC/2015 da estabilidade, efetividade, cooperação, consensualidade e desjudicialização.

Resta à comunidade jurídica aguardar a decisão dos embargos de declaração do STF, incumbido de prestar os devidos esclarecimentos a respeito das delimitações temporais das manifestações em controle de constitucionalidade sobre decisões individuais com trânsito em julgado em todo o âmbito nacional.

Em suma, agora a árdua tarefa do STF é “desvelar” o quebra cabeça do conceito de irretroatividade e a necessidade, ou não, de ajuizamento de ação rescisória com o objetivo de retroagir os efeitos de decisão proferida pelo STF, observado o prazo bienal contado da decisão transitada em julgado proferida no processo individual (artigo 975 do CPC) ou do trânsito em julgado do acórdão em controle de constitucionalidade (artigo 535, § 8º do CPC).

A necessidade de tal definição é, não temos dúvida, consequência direta do tempo que se leva para definir as questões tributárias neste país.

[1] Tema 881: “Limites da coisa julgada em matéria tributária, notadamente diante de julgamento, em controle concentrado pelo Supremo Tribunal Federal, que declara a constitucionalidade de tributo anteriormente considerado inconstitucional, na via do controle incidental, por decisão transitada em julgado”.

[2] Tema 885: “Efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade sobre a coisa julgada formada nas relações tributárias de trato continuado”.

[3] O caso concreto se refere a hipótese de contribuinte que obteve decisão judicial transitada em julgado em seu favor, pela via de em ação individual, afastando seu dever de recolher a contribuição social sobre o lucro líquido (CSLL), no qual restou reconhecida a inconstitucionalidade da lei federal n° 7.689/1988 que instituiu essa contribuição. Contudo, em 2007, no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade nº 15/DF, o STF declarou a constitucionalidade da referida lei.

[4] Tema 360:: São constitucionais as disposições normativas do parágrafo único do art. 741 do CPC, do § 1º do art. 475-L, ambos do CPC/73, bem como os correspondentes dispositivos do CPC/15, o art. 525, § 1º, III e §§ 12 e 14, o art. 535, § 5º. São dispositivos que, buscando harmonizar a garantia da coisa julgada com o primado da Constituição, vieram agregar ao sistema processual brasileiro um mecanismo com eficácia rescisória de sentenças revestidas de vício de inconstitucionalidade qualificado, assim caracterizado nas hipóteses em que (a) a sentença exequenda esteja fundada em norma reconhecidamente inconstitucional, seja por aplicar norma inconstitucional, seja por aplicar norma em situação ou com um sentido inconstitucionais; ou (b) a sentença exequenda tenha deixado de aplicar norma reconhecidamente constitucional; e (c) desde que, em qualquer dos casos, o reconhecimento dessa constitucionalidade ou a inconstitucionalidade tenha decorrido de julgamento do STF realizado em data anterior ao trânsito em julgado da sentença exequenda.

[5] Fls. 3 do inteiro teor do acórdão proferido no julgamento do Recurso Extraordinário 949.297/CE (Tema 881 do STF).

Laura Spitzkopf, Camila Campos Vergueiro

Laura Spitzkopf é advogada, pós-graduação na Fundação Getúlio Vargas (FGV LAW), graduação pela Pontifica Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e ex-aluna do curso de extensão de Processo Tributário Analítico do Ibet.

Camila Campos Vergueiro é advogada, doutoranda pela Unimar, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professora do Curso de Especialização do Ibet, do programa de pós-graduação lato sensu da Fundação Getúlio Vargas (FGV Law) e do Complexo Educacional Damásio de Jesus, professora e coordenadora do curso de extensão Processo Tributário Analítico do Ibet e coordenadora do grupo de estudos de Processo tributário analítico do Ibet.

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