Precedentes do STF: como ficam no ambiente da reforma tributária?

Fernanda Donnabella Camano

Após a aprovação, pela Câmara dos Deputados, em dois turnos de votação, da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 45/2019, a comunidade tributária passou a centrar sua atenção nos dispositivos ali previstos que projetam a inauguração de um novo sistema constitucional tributário.

Incontáveis manifestações têm sido produzidas acerca do conteúdo dessa proposta enfatizando os aspectos de direito material tributário por ela a ser disciplinado.

Mas não é apenas sob esse viés que a PEC merece ser analisada, ao seu ensejo juntamo-nos às vozes daqueles que pretendem avaliar suas disposições sob os contornos do direito tributário em conflito.

Como é sabido, o CPC/2015 fomenta o sistema de precedentes, tornando obrigatória a observância das decisões exaradas segundo o procedimento habilitado normativamente para produzir esse efeito vinculante e replicador, enquadráveis em seus artigos 927, 928, 1.036 a 1.041.

Todavia, desde a edição da Emenda Constitucional 45/2004, instituidora do regime de repercussão geral, acompanhada da Lei 11.418/2006, disciplinadora do sistema de julgamento com repercussão geral em relação ao recurso extraordinário, foram julgadas, ou estão para ser apreciadas, 196 ações em controle concentrado [1] e 385 recursos extraordinários com repercussão geral, os quais fixaram(ão) o sentido das normas ambientadas no microssistema do direito tributário constitucional atual.

Nesse universo, o Supremo Tribunal Federal apreciou(ará), conceitos normativos elementares à demarcação das competências tributárias, tais como definidas na Constituição no modelo vigente, e não no projetado pela PEC. Tome-se como exemplo o conceito de prestação de serviço ou operação de circulação de mercadoria, para nos atermos à competência dos municípios, estados e Distrito Federal para instituir, respectivamente, o ISS e o ICMS [2].

Analisando a PEC 45/2019 é possível fazer um corte em relação às pretendidas modificações e distinguir dois grandes blocos de proposições normativas: (1) o primeiro deles, diz respeito às alterações não diretamente relacionadas ao IBS e à CBS, (2) o segundo, concernente aos enunciados prescritivos instituidores dos novos tributos.

No primeiro grupo encontra-se, por exemplo, a inserção do § 3º ao artigo 145 da Constituição/1988, que fixa os princípios constitucionais que governarão o sistema tributário nacional, a saber: simplicidade, transparência, justiça tributária, equilíbrio e defesa do meio ambiente. Segundo o texto da proposta tais princípios entrarão em vigor na data da publicação da emenda, tão logo a PEC seja aprovada no Senado.

Diante desta regra, pergunta-se: com a potencial inauguração de um novo sistema constitucional tributário, os precedentes até então exarados pelo Supremo Tribunal Federal, que definiram os contornos das regras de competência dos “antigos” tributos (ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins), terão influência na exegese dos novos tributos (IBS e CBS)?

Tomemos, pois, dois exemplos para ilustrar a questão.

O artigo 156-A, inserido pela PEC 45/2019, institui o IBS dispondo que tal tributo incide sobre “operações com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços”.

Ao fazer referência ao termo “operações”, será mantida a orientação já chancelada pelo Supremo Tribunal Federal desde a época em que vigia o antigo ICM, em que é necessário ocorrer um negócio jurídico entabulado pelas partes de que decorra a transferência de titularidade destes bens e direitos? Em inúmeras manifestações, a Corte Suprema compreendeu que, para efeitos de incidência do ICMS, a “operação” a que se referia a competência estadual e distrital demandava transação seguida da alteração de domínio da coisa. Posição essa reiterada recentemente no julgamento da ação declaratória de constitucionalidade 49.

Diante disso, a se manter a materialidade constitucional do IBS sobre as “operações” acima referidas, a exegese que dela se constrói pode ser a mesma formulada no contexto anterior?

Outro exemplo diz respeito ao entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a não incidência do ISS sobre locação de bens móveis, ao decidir o Tema 212 no julgamento do Recurso Extraordinário 626.706/SP. Na ocasião, a tese fixada foi:

“É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens imóveis, dissociada da prestação de serviços.”

Naquele julgado, fez-se referência ao entendimento fixado na Súmula Vinculante 31 [3], a qual sintetiza a orientação da jurisprudência consolidada no Supremo Tribunal Federal de que a prestação de serviço tributável pelo ISS corresponde a uma obrigação de fazer, um esforço humano em prol de outrem, mediante remuneração.

Nota-se que a redação da PEC 45 faz referência a operações “com serviços”. Na hipótese de a locação de bens móveis não se enquadrar no conceito de “operações com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos”, mas sim, sujeitando-se às “operações com serviços”, seria possível excluir a locação de bens móveis da incidência do IBS?

A solução não é simples e requer a devida reflexão, por isso entendemos por bem trazer essas questões ao debate nesse artigo.

Mas a priori poder-se-ia afirmar que as palavras utilizadas pela PEC 45/2019, apesar de reproduzirem em sua literalidade aquelas contidas no Texto Constitucional vigente, podem vir a sofrer mutação conteudística em razão do novo contexto em que foram produzidas.

Como decorrência, os precedentes já exarados pela corte, somente poderiam ser invocados desde que a hermenêutica a partir deles cresça e evolua com a nova realidade.

Desse modo, entendemos que não haverá a total ruptura dos conceitos formulados nos precedentes a respeito dos tributos atuais existentes na ordem jurídica (e que serão substituídos pelo IBS e pela CBS), mas tais conceitos poderão ser revisitados para se amoldar às materialidades a serem depositadas no Texto Constitucional emendado, que é “ampla” e integralmente não cumulativa.

O pragmatista Charles Sanders Peirce, afirma que “os símbolos crescem. Retiram seu ser do desenvolvimento de outros signos. (…). No uso e na prática, seu significado cresce. Palavras como força, lei, riqueza, casamento veiculam-nos significados bem distintos dos veiculados para nossos antepassados bárbaros”, suportando as reflexões nesse texto postas [4].

Mais um ingrediente pode ser adicionado a essa projeção evolutiva do significado dos conceitos técnico-jurídicos construídos nos precedentes já elaborados pelo Supremo Tribunal Federal: o fato de que, como dito anteriormente, entre a entrada em vigor dos princípios (que se dará imediatamente, caso aprovada a PEC pelo Senado) e o início da vigência do IBS e da CBS (postergada para 2026), a Corte Suprema julgará novas questões pelo sistema de precedentes, fazendo-o influenciada pelos referidos princípios, os quais não deixarão de interferir na interpretação do IBS e da CBS.

Ou seja, os conceitos definidores das competências tributárias que serão analisados pelo Supremo Tribunal Federal a partir da entrada em vigor da emenda, por ora apenas projetada, e que dizem respeito aos tributos ainda existentes, sofrerão influência dos novos princípios que passam a orientar o sistema constitucional tributário e, por isso, parece-nos, podem ser aplicados na nova ordem, em um movimento de dialogia [5] que aproxima estes “mundos” [6], desde que ajustados à configuração normativa do IBS e da CBS.

Não vemos propriamente, com a vinda da PEC, oportunidade de ruptura do conteúdo dos precedentes produzidos pela Corte Suprema com base no sistema constitucional vigente, aniquilando-se o passado. Porém, como o contexto foi alterado, a interpretação que se fez das figuras jurídicas pode evoluir, transcender o velho ambiente para ganhar novos contornos. Aproveita-se o antigo, o que é essencial para conformar novas significações normativas.

A experiência dirá.

[1] Este número se refere ao período entre 2020 e 2023.

[2] Vale o registro: os Estados e o Distrito Federal são dotados da competência para instituição de impostos sobre a prestação de serviços de comunicação e de transporte interestadual e intermunicipal. Mas, aqui, optou-se por referir aos demais serviços de competência dos Municípios.

[3] Referida Súmula teve por fundamento decisões nesse mesmo sentido, a saber: RE 446.003/PR AgR, rel. min. Celso de Mello, 2ª T, DJ 4/8/2006; RE 116.121/SP, rel. min. Octavio Gallotti, red. p/ o ac. min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJ de 25/5/2001.

[4] Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 73-74.

[5] Por dialogia entende-se o diálogo entre duas teorias.

[6] Aquele existente após a entrada em vigor dos princípios e o existente após a vigência do IBS e da CBS.

Fernanda Donnabella Camano

Pós-doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, advogada, professora dos Cursos de Especialização e Extensão em "Processo Tributário Analítico" do Ibet e pesquisadora do grupo de estudos de "Processo Tributário Analítico" do Ibet.

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