IPI, não cumulatividade e o crédito na saída não tributada do etanol

Fábio Pallaretti Calcini

O artigo 153, IV, da Constituição autoriza a União a instituir imposto sobre “produtos industrializados”, informando, ainda, no § 3º, deste mesmo dispositivo que “será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores”.

Como é de conhecimento, diante da não cumulatividade, há permissão constitucional e na legislação do crédito nas aquisições de matéria-prima, material intermediário e de embalagem com destaque do imposto.

Ocorre, porém, que, se o produto industrializado elaborado for “não tributado” (NT), determina a legislação a necessidade do estorno proporcional deste crédito.

No segmento do agronegócio, podemos citar a necessidade de estorno, por exemplo, na produção e saída do estabelecimento de etanol anidro e hidratado.

Portanto, embora o produto seja industrializado e na entrada os itens sofreram a incidência do IPI, com destaque deste imposto, impõe como dito, o estorno proporcional a saída do etanol anidro e/ou hidratado.

Diante da abertura normativa dada a não cumulatividade, tem-se entendido que não haveria ofensa a esta determinação constitucional a imposição do estorno do crédito.

Inclusive, temos neste sentido a Súmula nº 20 do Carf: “Não há direito aos créditos de IPI em relação às aquisições de insumos aplicados na fabricação de produtos classificados na TIPI como NT”.

É preciso, porém, observar que houve a edição do artigo 11, da Lei nº 9.779/99, o qual preceitua:

“Art. 11. O saldo credor do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, acumulado em cada trimestre-calendário, decorrente de aquisição de matéria-prima, produto intermediário e material de embalagem, aplicados na industrialização, inclusive de produto isento ou tributado à alíquota zero, que o contribuinte não puder compensar com o IPI devido na saída de outros produtos, poderá ser utilizado de conformidade com o disposto nos arts. 73 e 74 da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996, observadas normas expedidas pela Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda.”

Possível notar claramente que o legislador autorizou a manutenção do crédito de IPI das entradas tributadas, mesmo que a saída não houvesse a efetiva tributação do produto industrializado, independentemente da previsão constitucional de não cumulatividade.

Caberia, assim, avaliar de um lado, se as aquisições se dão com IPI destacado e, de outro, se na saída temos produto industrializado, independentemente de ser NT (como o etanol, que é imune).

Havendo esta operação, há direito à manutenção do crédito de IPI bem como possibilidade de ressarcimento e/ou compensação, de conformidade com o artigo 11 da Lei nº 9.779/99.

Trata-se, pura e simplesmente, da interpretação literal e finalística do art. 11 da Lei n. 9.779/99, sem inovar, mas impedindo a restrição do disposto no texto legal, sobretudo, à luz a finalidade posta.

Portanto, esta interpretação é a mais adequada do artigo 11 da Lei nº 9.779/99, uma vez que a lei reconhece que os créditos da entrada devem ser mantidos quando o contribuinte não puder compensar com o IPI devido na saída de outros produtos, inclusive, alíquota zero e isentos, mas não somente estes, o que permite também ao NT.

Ora, o legislador expressamente reconhece que referido texto normativo se aplica quando não se puder compensar os créditos de IPI na saída de outros produtos, ou seja, não faz qualquer distinção se estes deveriam ser tributados ou não. Aliás, pela lógica e finalidade do texto legal, somente se justifica esta previsão quando a saída se dá sem a tributação em sentido amplo de IPI, pois daí teremos o eventual acumulo de crédito.

E para não existir dúvida, o texto legal do artigo 11, é inclusivo, pois o legislador afirma “aplicados na industrialização, inclusive de produto isento ou tributado à alíquota zero”. O emprego da expressão “inclusive” revela claramente que o artigo se aplica a estes casos mas não exclusivamente, cabendo a outras hipóteses de produto industrializado.

Daí porque, sendo o etanol anidro e/ou hidratado produto industrializado imune (“NT”), entendemos ser plenamente aplicável o artigo 11 da Lei nº 9.779/99, impedindo o estorno proporcional dos créditos, além de permitir, no caso de saldo credor, o pedido de ressarcimento e/ou compensação.

Aliás, o STJ (Superior Tribunal de Justiça), em embargos de divergência (1ª e 2ª Turma), embora para outro produto, já decidiu que:

“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. APLICABILIDADE. IMPOSTO SOBRE PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS – IPI. OUTORGA DE CRÉDITO POR MEIO DO ART. 11 DA LEI N. 9.779/1999. CREDITAMENTO AUTÔNOMO. DESVINCULAÇÃO DA REGRA DA NÃO CUMULATIVIDADE – DISTINGUISHING. UTILIZAÇÃO DO SALDO CREDOR DE IPI NA INVIABILIDADE DA COMPENSAÇÃO COM O MENCIONADO TRIBUTO INCIDENTE NA SAÍDA. HIPÓTESE DE PRODUTO NÃO TRIBUTADO. POSSIBILIDADE.
I – Consoante o decidido pelo Plenário desta Corte, na sessão realizada em 09.03.2016, o regime recursal será determinado pela data da publicação do provimento jurisdicional impugnado. Aplica-se, in casu, o Código de Processo Civil de 2015.
II – A Constituição da República contempla o creditamento de Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI em três hipóteses distintas:
(i) em decorrência da regra da não cumulatividade (art. 153, § 3º, II); (ii) como exceção constitucionalmente justificável à não cumulatividade, alcançada por meio de interpretação sistemática (arts. 43, § 1º, II, e § 2º, III; 153, § 3º, II; e 40 do ADCT); e (iii) mediante outorga diretamente concedida por lei específica (art. 150, § 6º).
III – A Lei n. 9.779/1999 instituiu o aproveitamento de créditos de IPI como benefício fiscal autônomo, uma vez que não traduz mera explicitação da regra da não cumulatividade.
IV – Por tratar-se do aproveitamento de créditos de IPI como benefício autônomo, diretamente outorgado por lei para a saída desonerada, a discussão devolvida pelos Embargos de Divergência distancia-se do núcleo da polêmica envolvendo a não cumulatividade desse tributo – necessidade de distinguishing -, cuidando-se, inclusive, de matéria eminentemente infraconstitucional.
V – O art. 11 da Lei n. 9.779/1999 confere o crédito de IPI quando se revelar inviável ao contribuinte a compensação desse montante com o mencionado tributo incidente na saída de outros produtos. Na impossibilidade da utilização da soma decorrente da entrada onerada, o apontado artigo oportuniza a consolidada via dos arts. 73 e 74 da Lei n. 9.430/1996. Autorizado, portanto, o emprego do valor lançado na escrita fiscal, justamente com a saída “de outros produtos”.
Reitere-se que os produtos outros, nesse contexto, podem ser isentos, sujeitos à alíquota zero ou não tributados.
VI – Inaceitável restringir, por ato infralegal, o benefício fiscal conferido ao setor produtivo, mormente quando as três situações – isento, sujeito à alíquota zero e não tributado -, são equivalentes quanto ao resultado prático delineado pela Lei do benefício.
VII – Encontra, portanto, abrigo legal o aproveitamento do saldo de IPI decorrente das aquisições de matérias-primas, produtos intermediários e materiais de embalagem tributados, nas saídas de produtos não tributados no período posterior à vigência do art. 11 da Lei n. 9.779/1999.
VIII – A manutenção do acórdão embargado representa: (i) a observância da disciplina legal específica; (ii) a escorreita interpretação sistemática do aproveitamento de saldo de IPI à luz dos múltiplos níveis normativos do creditamento admitidos pela Constituição da República; e (iii) uma prestação jurisdicional alinhada com os recentes pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal quanto à temática (e.g. PLENO, RE n. 596.614/SP, Rel. p/ o acórdão Ministro EDSON FACHIN, julgado em 25.04.2019; PLENO, Projeto de Súmula Vinculante n. 26/DF, Rel. Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, DJe 07.05.2020 – Ata n. 340/2020; e 2ª TURMA, AgR no AgR no RE n. 379.843/PR, Rel. Ministro EDSON FACHIN, julgado em 07.03.2017).
IX – Embargos de Divergência improvidos.”[1]

Em tais condições, podemos afirmar que há clara ilegalidade na determinação de estorno proporcional dos créditos de IPI em razão da saída de produtos não tributados (NT), como o caso do etanol anidro e/ou hidratado, de conformidade com o artigo 11, da Lei nº 9.779/99.

[1] – STJ, EREsp n. 1.213.143/RS, relatora Ministra Assusete Magalhães, relatora para acórdão Ministra Regina Helena Costa, Primeira Seção, julgado em 2/12/2021, DJe de 1/2/2022.

Fábio Pallaretti Calcini

Doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), professor da FGV Direito-SP e Ibet e sócio tributarista da Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

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