Reforma tributária 2023: O que é o sistema tributário brasileiro e por que ele é tão complexo
Por Beatriz Olivon — Brasília
Saber se um item é um sapato ou uma pantufa ou ainda um desodorante ou um hidratante pode ser um ponto central para um auditor fiscal. A segunda dúvida já dura pelo menos cinco anos e precisa ser esclarecida para a cobrança de Imposto sobre Produto Industrializado (IPI): 7% se for desodorante e 22% para o hidratante. Esse é um exemplo concreto da complexidade do sistema tributário brasileiro.
Uma empresa instalada no Brasil precisa navegar por um mar de tributos com regras fixadas por 5.568 municípios, 26 Estados, mais o Distrito Federal e a União. Além de precisar seguir os procedimentos e regras de cada Fisco (federal, estadual e municipal), ainda precisam observar se o produto ou região fiscal tem alguma regra específica.
A depender do tributo a ser pago é necessário também pedir, por meio de procedimentos específicos, créditos referentes à parcela paga anteriormente na cadeia de produção. Esses créditos são importantes porque podem abater outros tributos. Mas nem sempre é possível ter certeza se o insumo vai gerar créditos.
O que é sistema tributário?
Esse conjunto de regras para o pagamento de tributos, eventual obtenção de créditos e o cumprimento de obrigações acessórias, além da Constituição Federal, compõem o sistema tributário brasileiro. O objetivo do sistema tributário é que todas as operações econômicas que geram receita e faturamento também resultem em arrecadação para os entes da federação: União, Estados e municípios.
“A Constituição proíbe a criação de novos impostos com a mesma base de cálculo dos anteriores. A União demandava mais recursos e criou o PIS e a Cofins, que incidem sobre o faturamento da venda de mercadorias ou serviços”, exemplifica Eurico Diniz De Santi, professor da FGV e diretor do CCiF, think tank que elaborou o texto original da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 45 — um dos textos em tramitação no Congresso para a realização da reforma tributária.
Por que o sistema tributário é complexo?
De Santi resume a complexidade do sistema tributário brasileiro na “hipercomplexidade” da legislação, no design normativo e na disputa pelas empresas por incentivo fiscal. Para o professor, a “cereja do bolo” no nosso sistema é que a Receita Federal ainda tem cinco anos para verificar se considera que o contribuinte pagou o tributo de forma correta e autuá-lo. “O sistema é hiper complexo e o Fisco tem cinco anos para revisar sua interpretação”, diz.
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O sistema tributário brasileiro é complexo também porque, além de ter que conhecer as leis tributárias federais, estaduais e municipais, os contribuintes precisam estar atentos à interpretação que os Fiscos fazem dessas normas. Em relação à União, a Receita Federal publica seus posicionamentos por meio de soluções de consulta, instruções normativas e pareceres.
Foi por meio de instruções normativas que a Receita Federal restringiu, por exemplo, o que pode ser considerado insumo e gera créditos de PIS e Cofins. Contudo, depois de 16 anos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) declarou ilegais as previsões que estavam nas Instruções Normativas nº 247, de 2002, e nº 404, de 2004.
Os contribuintes ainda se submetem à interpretação dos fiscais sobre a classificação fiscal de cada produto. Por isso, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), órgão onde primeiro se discutem as autuações fiscais e cujo estoque de tributos em discussão chega a R$ 1 trilhão, deverá definir se um item produzido pela Nivea é hidratante ou desodorante. Também é o conselho quem vai definir a classificação fiscal do calçado Crocs, o que poderá gerar uma cobrança de R$ 33,1 milhões de direitos antidumping, acrescidos de multa e juros de mora.
Outro exemplo de complicação prática para as empresas por causa do complexo sistema tributário brasileiro é a (in)definição de serviço ou mercadoria para se saber a quem e qual tributo deverá ser pago. O ISS, municipal, é cobrado sobre serviços. O ICMS, por sua vez, sobre mercadorias e é estadual.
“Até outro dia discutíamos se software é serviço ou mercadoria para fins de tributação”, lembra Thiago Amaral, do Demarest Advogados. Coube ao Supremo Tribunal Federal (STF) definir, recentemente, que o licenciamento e a cessão de direito de uso de programas de computação, de qualquer tipo, estão sujeitos ao ISS e não ao ICMS.
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Segundo Amaral, o Brasil é um dos únicos países com tributação sobre o consumo em três esferas e cada uma prevendo obrigações específicas, com legislações diversas. “Isso gera insegurança, desconforto e grande perda de tempo”, diz.
O custo com judicialização é um dos reflexos da complexidade do sistema tributário brasileiro?
Além de todas as regras, se um concorrente conseguir uma decisão ou liminar para não pagar imposto, pode desencadear um movimento de judicialização no setor, segundo os especialistas, por passar a ter uma vantagem competitiva significativa. E pode demorar décadas para um litígio tributário ser definido, o que aumenta ainda mais a insegurança.
As disputas tributárias no Brasil pesam 17 vezes mais para as empresas do que no exterior, segundo dado da 5ª Edição do Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Brasileiro, pesquisa realizada pelo Conselho nacional de Justiça (CNJ) em parceria com o Insper. A seguir, outros pontos levantados por especialistas que indicam porque o sistema tributário brasileiro é considerado complexo:
O valor do contencioso tributário brasileiro corresponde a 75% do valor do PIB. O dado consta no relatório de 2020 sobre o Contencioso Tributário elaborado pelo Insper. De acordo com Breno Vasconcelos, professor do Insper, não existem dados internacionais que possibilitem a comparação direta, apenas entre contenciosos administrativos federais. Só essas disputas correspondem a 15% do valor do PIB em 2019. Na América Latina, em 2013, eram 0,19% e na OCDE, 0,28%.
Qual complexidade do sistema tributário mais leva os contribuintes ao Judiciário?
Muitas dessas discussões judiciais acontecem porque tributos incidem sobre outros tributos. Entre os impostos federais, PIS e Cofins são campeões quando se rata de litígio tributário. O STF já decidiu pela exclusão do ICMS da base do PIS e da Cofins; ainda vai decidir se o ISS pode ser incluído na base do PIS e da Cofins, se o crédito presumido de IPI pode ser incluído nessa mesma base e também se é válida a inclusão do PIS e da Cofins na própria base.
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Além disso, algumas vezes o STJ dá a palavra final sobre o assunto. Mas só até o STF se manifestar. O próprio caso dos insumos — a definição sobre quais geram créditos tributários — aguarda julgamento no STF. Hoje esse é o processo tributário mais valioso para a União, precificado em R$ 472,7 bilhões pela Lei de Diretrizes Orçamentárias.
Isso acontece porque, além do Código Tributário Nacional, das leis federais, estaduais e municipais sobre o assunto e as regras dos Fiscos, os pontos chave da tributação estão na Constituição Federal. No STF, a Constituição é o parâmetro, porém, no STJ, são as normas infraconstitucionais. Por isso, a decisão final em cada uma das Cortes pode acabar em resultados diferentes.
Mas há casos em que o resultado “final” foi alterado sem nem mudar de instância judicial. Em 2017, por exemplo, o STF mudou sua jurisprudência e decidiu que é constitucional a cobrança da contribuição ao Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural) de empregador pessoa física. Em 2010 e 2011, ao analisar normas anteriores sobre a contribuição, o STF havia considerado a cobrança inconstitucional, por entender que deveria ser estabelecida por meio de lei complementar.
Por isso o sistema tributário precisa ser reformado?
Segundo estudo do Insper, além do muitos tributos que incidem sobre a produção e venda (consumo) de bens e serviços, temos diferenciações injustificadas na tributação da renda e excessiva oneração da folha de salários.
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Em relação à tributação de bens e serviços seria necessária alteração profunda e estrutural, dado seu nível de “complexidade crescente, que resulta em altos custos de conformidade, insegurança jurídica, distorções alocativas e opacidade para os cidadãos a respeito da carga tributária efetivamente suportada”.
Uma reforma tributária conseguiria equilibrar o sistema tributário?
De acordo com o levantamento do Insper, além de o Brasil ter maior carga tributária sobre o consumo, existem também problemas como a regressividade da tributação, que prejudica mais as pessoas de baixa renda. “Isso acontece por causa da proporção do consumo em relação à sua renda total. As pessoas de baixa renda tendem a consumir grande parte da sua renda com consumo de bens, especialmente os alimentícios”, diz a pesquisa.
A criação de um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) — para substituir ISS, ICMS, PIS, Cofins e IPI — e a devolução de parte desse tributo às pessoas de baixa renda seria, de acordo com o Insper, uma forma de simplificar a tributação para as empresas e de mitigar essa regressividade.