Reforma tributária: deputado Tiririca, vossa excelência se engana!
Hugo de Brito Machado Segundo
Em uma casa com pouca iluminação, ventilação precária, paredes manchadas e móveis desatualizados, em um dos quais há embutido um televisor daqueles com tubo de imagem, a família chegou a um consenso de que era a hora de fazer uma reforma.
Na primeira reunião com a arquiteta, contudo, a empolgação inicial arrefeceu, quando perceberam que o projeto envolvia a supressão de algumas janelas, a colocação de cortinas em outras, e que não haveria mudança na parte elétrica. Apenas um pequeno abajur seria colocado em um canto. Bom, queríamos muito a reforma, mas, se for para piorar, é melhor deixar como está, pensaram os moradores da casa.
É preciso lembrar, neste ponto, e em relação a qualquer outra reforma, o equívoco em que incorreu o palhaço Tiririca. Cearense, mudou-se para São Paulo e, por lá, elegeu-se deputado federal. Entre outros slogans e mantras engraçadíssimos, que serviram inclusive de estudo de caso sobre os limites da liberdade de expressão no âmbito da propaganda eleitoral, ele tinha este: “Vote Tiririca, pior do que tá, não fica!”
Ficou. Não propriamente por conta da eleição dele, que, apesar da pouca instrução formal, até foi um bom parlamentar. Mas o cenário político piorou sensivelmente, desde então. Em suma, ele estava errado. Tem sempre como piorar. Principalmente quando se trata de mudanças. Como a casa do início do texto, que ao cabo da reforma, que consumirá dinheiro da família que nela habita, ficará mais quente, mais escura, e com os mesmos móveis velhos.
E o que tem tudo isso com a reforma tributária?
Pretende-se operar grande reforma no sistema tributário brasileiro, mas a maior parte de nós, os contribuintes, que somos os moradores da casa, não estamos verdadeiramente cientes do que farão os arquitetos. Achamos que certos objetivos são perseguidos, mas não sabemos ao certo se as alterações efetivamente conduzirão a eles. Ou pensamos que sabemos.
Já tratei do assunto em outras ocasiões, aqui na ConJur. Além de vários outros pontos, destaco, como preocupante, a questão da não-cumulatividade. É o principal problema do sistema atual, e, reformada, pode ficar melhor. Ou muito pior.
Não se trata, aqui, do gosto pessoal de quem escreve estas linhas. Reporto-me a pior, ou melhor, tendo em conta os defeitos que são apontados pelos que postulam mudanças.
Apontam-se, como problemas do sistema, a onerosidade, e a complexidade. A reforma, unificando ICMS, IPI, ISS, PIS, Cofins, parece realmente caminhar no sentido da simplificação, e da redução de ônus. Em tese, portanto, ela é boa. Necessária. Mas só unificar não quer dizer muita coisa. A simplificação e a desoneração dependerão das alíquotas, e das obrigações acessórias, que não figuram na Constituição e por isso sequer são referidas nos textos das propostas de emenda discutidas.
A não-cumulatividade, central ao IBS que se projeta, tem, todavia, dois problemas sérios, diretamente ligados a esses dois defeitos do sistema, e que podem ser minimizados ou corrigidos, a saber, a onerosidade e a complexidade. Trata-se da colossal majoração de alíquota de que ela é sempre acompanhada (IVC passou de 6%, cumulativo, para um ICM de 18%, não cumulativo; depois, Cofins passou de 3%, cumulativo, para 7,6%, não cumulativo), que é justificada como medida necessária a neutralizar a possibilidade de creditamento. O percentual do tributo é mais alto, mas o contribuinte passa a poder aproveitar créditos de operações anteriores.
No discurso pré-legislativo, essa promessa é linda. E sempre vem cercada de ornamentos. “Crédito amplo” é o que se promete.
Assim foi com o ICMS. Mas confira, leitora, o que se deu com o tal crédito amplo. A LC 87/96, em sua redação original, promoveu de fato, ou tentou, a implantação de uma sistemática de créditos financeiros amplos, permitindo creditamento inclusive do imposto incidente sobre a entrada de bens de consumo, ativo fixo, energia etc. Mas só a partir de 1996. E, para alguns itens, a partir de 1998.
Os contribuintes questionaram a limitação, visto que o ICMS passou a alcançar energia, comunicação e transportes desde 1988, mas o STF afirmou que a matéria poderia ser livremente decidida pelo Congresso, não havendo, na Constituição, a imposição de um crédito amplo.
A redação dos textos das emendas propostas para a reforma tributária, nessa parte, é igual, na essência, à dos dispositivos que hoje tratam do ICMS, e do IPI. Logo, o STF continuará dizendo que cabe ao legislador decidir se o tal creditamento será mesmo “amplo”.
E o que vem fazendo o legislador, relativamente aos tributos hoje não cumulativos? Bem, confira, leitora, o que dispõe a LC 87/1996. O crédito amplo, prometido, virá a partir de 2033. A sequência de leis complementares que foram paulatinamente postergando essa data, de 1998 até 2033, chega a ser engraçada, despertando risadas em alunos de graduação. É rir para não chorar, e faz pensar sobre o verdadeiro motivo de tantas postergações.
Se é para negar, por que não dizer logo? A atitude parece a de quem deseja mesmo iludir com promessas que de antemão não se pretendem cumprir.
E com a Cofins, e o PIS? A mesma coisa. Prometeu-se crédito amplo. E, em relação a tais contribuições, que incidem sobre “receita”, da forma mais ampla possível, é até sem sentido não ser assim. Afinal, qual seria o crédito “físico” a que faria jus uma escola? Um hospital? Um hotel? Serviços, e uma série de outras atividades oneradas por tais contribuições, não promovem saídas físicas. Aliás, a incidência das contribuições não é sobre saídas, mas sobre receitas, não fazendo sequer sentido que os créditos estejam atrelados a entradas, físicas, se os débitos não guardam pertinência necessária com saídas físicas.
Apesar disso, são incontáveis as discussões sobre o que gera, e o que não gera, crédito de PIS e Cofins; sobre o que é ou não é insumo. É matéria inclusive que rende voto de qualidade no Carf, órgão que explicitamente vem sendo usado como instrumento de aumento da arrecadação: despesas com frete interno, por exemplo, são vistas como não geradoras de crédito, como se fosse possível vender uma mercadoria em uma filial em Manaus, tendo ela sido fabricada em Fortaleza, sem transportá-la até lá.
A receita da venda do item transportado para outro estado depende da despesa do transporte, mas o creditamento da contribuição incidente sobre essa despesa não é permitido. Cadê o crédito amplo, anunciado quando a alíquota saltou de 3% para 7,6%?
Na verdade, depois de implementada a não cumulatividade, e engolida a pílula pela sociedade, o crédito passa a ser visto como um favor. Uma grande benesse. Uma concessão que agentes fiscais, conselheiros, juízes, desembargadores e ministros, se estiverem em um bom dia, e forem generosos, porque são muito bons, reconhecem. IPI, ICMS, PIS, Cofins, são exemplos. A história está aí, e quem não a conhece está condenado a repetir os mesmos erros.
É esse o contexto em que se afirma: equivoca-se Tiririca, tudo pode ficar pior. Com efeito, a reforma em discussão, além de aumentar alíquota, e manter a redação que continuará permitindo o trato do crédito como “favor”, conseguirá — sim, Tiririca, isso é possível! — piorar ainda mais o quadro.
Sugere-se que a redação do texto constitucional seja alterada, para modificar algo que há décadas a literatura do Direito Tributário havia pacificado: o direito ao crédito não depende de o imposto ter sido efetivamente pago na etapa passada, até porque isto está completamente fora do controle do contribuinte.
Hugo de Brito Machado, meu pai, em seu primeiro livro, “O ICM”, publicado em 1971, e a respeito do qual já escrevi por aqui, registra isso há mais de cinco décadas: “A palavra ‘pago’ deve ser entendida como incidente, ou‚ ‘devido’, relativamente às operações anteriores. Para que se apure a diferença de que trata o artigo 36, supra, não se terá em conta o imposto efetivamente pago nas operações anteriores, mas o imposto incidente, ou devido. Não se há de indagar se foi efetuado o seu recolhimento”. (MACHADO, Hugo de Brito. O ICM. São Paulo: Sugestões literárias, 1971, p. 133).
Esse entendimento restou pacífico, na doutrina e na jurisprudência, por mais de meio século, mas, com a reforma, se pretende modificá-lo. A reforma fará com que o direito ao crédito dependa da prova, pelo contribuinte do imposto não cumulativo, de que o tributo foi efetivamente recolhido pelos que o antecederam, nas etapas pretéritas da cadeia.
Um vendedor de cerveja, por exemplo, poderá abater o crédito do tributo incidente na operação passada se, e somente se, provar que o distribuidor, que lhe vendeu a cerveja, está em dia com o Fisco. O mesmo vale para o hotel, que para creditar-se do IBS pago pela lavanderia, que lava toalhas e lençóis, ou pelo vendedor do sabão, se a lavagem se der no próprio hotel, terá de provar que eles recolheram também o seu imposto. Se o tributo não tiver sido por tempestivamente recolhido por tais fornecedores, não haverá crédito.
Nem questiono, aqui, o mérito dessa proposta, no que tange ao aspecto técnico, de teoria do direito tributário, relativo ao que se considera ser a tributação sobre o valor agregado, ou sobre a razão de ser da técnica da não cumulatividade.
O livro citado linhas acima, de 1971, faz ricas considerações sobre isso, mas fiquemos nas intenções anunciadas com a reforma. Tampouco falarei da alteração, que assim se opera, na própria lógica da sujeição passiva, da obrigação tributária, e da competência impositiva, que se altera radicalmente quando se trata de tributo de competência de entes subnacionais. Ou se será ainda possível cobrar o tributo, com encargos moratórios inclusive, de um elo anterior da cadeia, se o elo seguinte já o recolheu na medida em que não aproveitou o respectivo crédito.
Prosseguir com a cobrança, neste caso, gerará claro bis in idem. São incontáveis os problemas. Limito-me aos dois que (no discurso) motivam o trabalho de se reformar o sistema: reduzir a complexidade, e a onerosidade.
Caso se aprove a mudança, com o IBS, o comerciante precisará dar conta não só das suas obrigações, principais e acessórias, mas das de seus fornecedores, que do contrário recairão sobre si. O supermercado, que compra carne do frigorífico, frango da granja, peixe da peixaria, pão da padaria, material de limpeza de um distribuidor, biscoitos e bolachas de outros, frutas e verduras de diversos fazendeiros etc. etc., terá que pagar imposto com alíquota elevada, e só poderá abater o crédito das operações passadas, nas quais o tributo incidiu e se fez devido, se demonstrar que eles, todos esses incontáveis fornecedores, pagaram também, nas etapas anteriores, os valores sobre elas incidentes.
Como impor isso ao contribuinte? Como controlar isso? E se o fornecedor pagar em atraso, e o supermercado já tiver recolhido seu tributo sem aproveitar o crédito? Imagine-se o hospital, que para creditar-se terá de saber se laboratórios, farmácias, concessionárias de energia, água, comunicação, locadores etc., estão em dia com o tributo. Do contrário, amargarão a alíquota elevadíssima, mas sem crédito algum que a compense (e ela será elevadíssima por causa deles, dos créditos, lembre-se).
Enfim, em vez de reduzir os pontos de questionamento para uso do crédito, e as burocracias para seu controle, se aumenta, e de forma quase incomensurável, a onerosidade, a complexidade, e a potencial litigiosidade.
Na sala escura e quente, a proposta em questão equivale a suprimir janelas e colocar grossas cortinas nas que restarem. A televisão de tubo será trocada por outra, também de tubo, mas preto e branco. Os propósitos invocados para se fazer a reforma, de dar mais luz e ventilação ao ambiente, e modernizá-lo, não serão atendidos. Serão contrariados, e a situação conseguirá ficar pior. Um desastre, a menos que os objetivos de quem leva a mudança a efeito sejam outros, diversos dos professados: no caso do sistema tributário, se a ideia for aumentar a arrecadação e incrementar os mecanismos de controle, ainda que isso leve a uma maior carga, e a uma maior complexidade, que se vá em frente.
Este é o problema de quando as necessidades dos que moram na casa não são as mesmas, e às vezes são até opostas, das daqueles com a incumbência de projetar e executar a reforma. Mas que pelo menos isso seja tornado claro e transparente, para que os cidadãos, e aqueles representantes que se preocupam com seus interesses, não comprem gato por lebre, sendo assim advertidos do gosto e dos efeitos do remédio que estão sendo convencidos a tomar.
Hugo de Brito Machado Segundo
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFCE) — de cujo programa de pós-graduação (mestrado/doutorado) foi coordenador (2012/2016) —, professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado), membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA), advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität, em Viena (Áustria).