Voto de qualidade: inconstitucionalidade por falta de pressuposto de fato

Hamilton Dias de Souza

Na última semana, o governo federal anunciou uma série de medidas relacionadas ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), que envolvem a substituição do presidente do Tribunal, a suspensão das sessões de julgamento em curso, bem como a reinstituição do “voto de qualidade” para o desempate nas discussões, esta última por meio da Medida Provisória (MP) nº 1.160/2023. Com isso, os presidentes das Turmas de julgamento, os quais são sempre oriundos dos quadros fazendários, voltarão a ter o poder de definir o resultado da votação, nas hipóteses em que não se forme maioria a respeito da questão discutida.

Segundo a Exposição de Motivos do Ministério da Fazenda, a modificação promovida pela Medida Provisória se deve ao fato de que o atual desempate automático a favor do contribuinte teria provocado “a reversão do entendimento do tribunal em grandes temas tributários”, com a estimativa de que “cerca de R$ 59 bilhões (cinquenta e nove bilhões de reais), por ano, deixarão de ser recolhidos”, sem a possibilidade de discussão no âmbito do Poder Judiciário, já que as decisões do Carf contrárias à União Federal são irreformáveis.

Contudo, essa motivação suscita dúvidas não só quanto ao mérito do restabelecimento do “voto de qualidade”, mas, também, a respeito do próprio cabimento de Medida Provisória para promovê-lo, como se passa a detalhar.

Em suma, a questão se põe em face do artigo 62 da Constituição Federal, que só admite medidas provisórias, com força de lei, em “caso” de relevância e urgência. Daí tratar-se de normatização cautelar, cuja validade supõe situações fáticas (caso) cuja elevada importância (relevância) e potenciais efeitos danosos para a coletividade (urgência) torne inviável aguardar o prazo de tramitação de projeto de lei. Por isso, razões de fato são as únicas a autorizar a utilização dessa figura. Questões de mera conveniência política, isto é, medidas que caracterizem simples “decisões” governamentais, podem e devem observar o processo legislativo ordinário.

Ocorre, porém, que as razões invocadas pelo Poder Executivo para reinstituir o “voto de qualidade” não citam nenhuma circunstância de fato (“caso”) que justifique a edição de normas em caráter urgente (“medida provisória”). Ao invés disso, a Exposição de Motivos limita-se a sugerir que o desempate pró contribuinte tenha levado ao cancelamento de autuações de aproximadamente R$ 59 bilhões, sem explicar se esses cancelamentos forram justificados ou não. De todo modo, para que se pudesse falar em derrotas injustificadas, seria necessária a constatação de que foram irregulares, como ocorreria se o bloco dos conselheiros indicados pela iniciativa privada votasse sistematicamente a favor do contribuinte, com o objetivo de forçar empates, o que jamais foi demonstrado e não encontra eco nas estatísticas do órgão, abaixo examinadas. Outra possível situação seria a ocorrência de desvios mais graves, o que exigiria apurações, inclusive na esfera penal.

Com efeito, as próprias estatísticas do Carf revelam que a regra de desempate hoje em vigor não apresenta qualquer viés em favor dos contribuintes, pois, após a sua introdução, a maioria absoluta dos processos do Tribunal continuou a ser decidida de modo unânime ou majoritário (94,7%), sendo que, dos casos restantes, apenas 1,9% foram automaticamente desempatados a favor do contribuinte e 3,4% são relativos a processos que não resultam de Auto de Infração e que ainda se sujeitam a voto de qualidade [1]. E, nesse diminuto universo, é comum que os “conselheiros indicados pelo Fisco” votem com os contribuintes e vice-versa [2], tal como ocorre nas votações por maioria, que responderam por 18,7% dos julgamentos realizados em 2022 [3].

Diante da inexistência de indícios de que o critério atual seja enviesado ou tenha sido aplicado de maneira deturpada, constata-se que o que orienta a mudança pretendida é o inconformismo com o cancelamento do Auto de Infração em caso de empate, daí a tentativa de retorno à sistemática anterior, em que 76,6% dos casos resolvidos por “voto de qualidade”, em média, eram decididos em favor das autoridades fiscais [4]. E, de fato, o “voto de qualidade” sempre gerou disparidade entre os êxitos do fisco e dos contribuintes, sendo antigo o debate sobre o viés fiscalista inerente a esse modelo que agora se pretende restaurar [5] [6] [7] [8].

Note-se, a propósito, que a mudança defendida pelo Ministério da Fazenda parte de uma espécie de “desconfiança” em relação à atuação dos conselheiros oriundos de indicação das confederações representativas da iniciativa privada. Ocorre, porém, que uma tal suspeição não deveria existir, haja vista que, apesar de indicados por entes da iniciativa privada, tais membros: (1) são escolhidos pelo Poder Público, a partir de processo seletivo rigoroso e com participação tanto das autoridades fiscais quanto da sociedade civil; (2) são remunerados pelo poder público para o exercício da jurisdição administrativa e, inclusive, a partir deste momento, não podem exercer a advocacia, por exemplo; e (3) são investidos exatamente nas mesmas funções públicas de julgamento que são atribuídas aos conselheiros oriundos dos quadros fazendários, razão pela qual não estão abaixo nem acima destes, mas em pé de igualdade, para todos os fins. E não poderia ser diferente, pois, num tribunal verdadeiramente paritário [9], os votos de seus membros têm de possuir pesos iguais, e não variar em função da origem (pública ou privada) de suas indicações, pois eles existem para atuar no interesse da lei, que não se confunde nem com o interesse arrecadatório do Estado, nem com os interesses jurídicos, econômicos, ideológicos das pessoas físicas ou jurídicas em julgamento.

Em linha com esses princípios e no intuito de mitigar a sensação de parcialidade estrutural a favor do Fisco, a partir do pressuposto de que o empate entre julgadores especializados na matéria constitui situação de dúvida objetiva, a Lei nº 13.988/2020 substituiu o “voto de qualidade” pelo desempate pró contribuinte. A lógica dessa modificação foi a de reforçar a confiança e a presunção de boa-fé na relação impositiva, o que implica considerar como público o interesse da Constituição e da lei [10]. Nesse sentido, optou-se por imprimir à estrutura e ao modo de funcionamento do Carf o mesmo sentido do princípio in dubio pro contribuinte, plasmado no artigo 112 do CTN, segundo o qual, diante de situações de dúvida razoável, não se deve agravar a situação do contribuinte.

Portanto, o fim do “voto de qualidade” e sua substituição pelo desempate a favor do contribuinte caracteriza conquista evolutiva do devido processo tributário, resultante de projeto de lei concebido e aprovado pelo Parlamento. Ela, inclusive, se mostrou razoável, já que os casos assim desempatados se mantiveram diminutos em relação ao total julgado pelo Carf. Em 2022, eles somaram apenas 1,9% dos julgamentos, contra 94,7% de casos decididos por unanimidade ou maioria e 3,4% relativos a casos que não resultam de Auto de Infração e que ainda se sujeitam a voto de qualidade. Daí a alteração ter sido bem recebida à época e, agora, as reações à sua revogação serem uníssonas no sentido de que ela representa retrocesso.

Em segundo lugar, não procede a afirmação fazendária de que a situação no Carf teria se tornado “insustentável” porque o desempate pró contribuinte levaria à indevida revisão de lançamentos com jurisprudência favorável à União no Poder Judiciário. De fato, ao se examinar as teses assim referidas [11], percebe-se que há temas cuja solução depende de questões fáticas que demandam dilação probatória (v.g., responsabilidade tributária de sócios e administradores). Outros se encontram indefinidos nos tribunais superiores, apesar de possuírem precedentes a favor dos contribuintes em segunda instância (v.g., “stock options”, PIS/Cofins sobre bonificações, amortização de ágio intragrupo, preços de transferência). Por fim, existem aqueles que estão pacificados a favor do contribuinte (v.g., dedução de JCPs no regime de competência, tributação de controladas e coligadas no exterior quando existentes tratados internacionais etc.).

Por tais razões, o que se percebe é que a alteração promovida decorre não de efetivo vício na sistemática de julgamento atual, mas do inconformismo fazendário com a possibilidade de derrota na esfera administrativa, face ao risco de haver empate nas votações. Noutras palavras, o que se pretende é recriar um sistema que se provou parcial e favorável aos interesses arrecadatórios da União Federal, o que atenta contra a imparcialidade inerente aos princípios da legalidade e da moralidade (CF, artigo 37) e tende a aumentar a litigiosidade do sistema, pois levará à judicialização de casos que hoje se encerram na fase administrativa, o que contraria a própria intenção manifestada pelo Poder Executivo de promover a pacificação tributária, por meio do programa “litígio zero”, anunciado concomitantemente à reinstituição do “voto de qualidade”.

Além de seu mérito duvidoso, a alteração em questão padece de vício formal, pois inexiste caso de urgência que justifique modificar o sistema de votação por Medida Provisória. Com efeito, essa espécie normativa se legitima pelas circunstâncias em que é editada, exigindo-se que seja motivada pela constatação de anomalia no mundo dos fatos que torne imprescindível a produção imediata de norma com força de lei (CF, artigo 62). No caso, porém, o retorno ao “voto de qualidade” deriva de simples “decisão” do presidente da República, desacompanhada de qualquer explicação válida a justificar a impossibilidade de se esperar pelo debate político que ocorreria caso a modificação fosse proposta por meio de projeto de lei (ADI 4.717, relator ministro Carmen Lúcia, DJ 16/8/2017). A única razão para a alteração é a suposta perda de arrecadação decorrente desempate pró contribuinte, embora conveniência arrecadatória e urgência não se confundam.

Por fim, a corroborar o viés arrecadatório da medida, deve-se notar que ela foi adotada ao mesmo tempo em que se promoveu a substituição do então presidente do Tribunal, reconhecido no meio especializado por ter proferido votos independentes e tecnicamente razoáveis, tendo sido nomeada nova liderança, o que suscita dúvidas quanto aos propósitos perseguidos. Além disso, foi determinada a suspensão dos julgamentos em curso dias antes de publicadas as alterações discutidas, provavelmente no intuito de submeter esses casos ao sistema de desempate agora recriado. Tudo a evidenciar que esse conjunto de intervenções, num órgão destinado ao controle de legalidade dos atos administrativos fiscais, não constitui alteração pontual, mas algo cujo sentido é esvaziar as funções do Carf e transformá-lo em órgão a serviço dos interesses arrecadatórios da União.

Por tais motivos, é recomendável que o Congresso Nacional rejeite a Medida Provisória de que se cuida, mantendo a regra de desempate hoje em vigor ou substituindo-a por outra que não faça a balança pesar (quase) sempre em favor da União Federal, o que seria obtido, por exemplo, caso a reinstituição do voto de qualidade se fizesse acompanhar de alterações no sentido de que as Presidências das Turmas de Julgamento fossem distribuídas igualmente entre conselheiros representantes do fisco e dos contribuintes.

[1] Cf. CARF. Dados abertos – 2022, p. 13. In: http://carf.economia.gov.br/dados-abertos/dados-abertos-202212-final.pdf.

[2] Cf. por exemplo os seguintes acórdãos do ano de 2022: acs. 1402-006.232, 9303-013.388, 1401-006.303, 9202-010.352, 1401-006.308, 3402-009.893, 9101-006.363, 9202-010.353, 9101-006.317, 3201-009.868, 9303-013.338, 2401-010.334, 9101-006.284, 9303-013.354, 9202-010.357, 3201-009.805, 2202-009.277, 3201-009.809, 9101-006.228,

9101-006.116.

[3] Cf. CARF. Dados abertos – 2022, p. 13. In: http://carf.economia.gov.br/dados-abertos/dados-abertos-202212-final.pdf.

[4] Cf. INSPER – Centro de Regulação e Democracia – Núcleo de Tributação. Análise e recorrência dos votos de qualidade no CARF, maio/2020, p. 14.

[5] Cf. CARF: Relatório de decisões do CARF, de janeiro a dezembro de 2016. Brasília: 2017.http://idg.carf.fazenda.gov.br/publicacoes/relatorio-decisoes-carf.

[6] Cf. DOMINGUES, Douglas Stelet Ayres, A correta aplicação do voto de qualidade no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) sob a ótica do art. 112 do CTN, Revista de Direito Tributário Atual – RDTA40, ISSN: 1415-8124 /e-ISSN: 2595-6280, 2018.

[7] Cf. INSPER – Centro de Regulação e Democracia – Núcleo de Tributação. Análise e recorrência dos votos de qualidade no CARF, maio/2020.

[8] Cf. LEME, Cristiane; SANTI , Eurico Marcos Dinis de; HOFFMANN , Suzy Gomes. Observatório do Carf: o voto de qualidade em números. Disponível em: http://jota.info/observatorio-carf-o-voto-de-qualidade-em-numeros. Acesso em 27 de novembro de 2019.

[9] O art. 25, II, do Decreto n. 70.235/72 define o CARF como “órgão colegiado, paritário… com atribuição de julgar recursos de ofício e voluntários de decisão de primeira instância, bem como recursos de natureza especial”

[10] Cf., dentre outros: SCAFF, Fernando Facury. In dubio pro contribuinte e o voto de qualidade nos julgamentos administrativo-tributários, Revista Dialética de Direito Tributário nº. 220; ESTRADA, Roberto Duque, O dilema do Carf: o voto de qualidade ou a qualidade do voto?, Revista Consultor Jurídico, 12 de setembro de 2018

[11] Cf. Ministério da Fazenda. Medidas de Recuperação Fiscal, 12/01/2023. Apresentação das primeiras medidas do Ministério da Fazenda, em coletiva de imprensa realizada na data de ontem.

Hamilton Dias de Souza

Sócio fundador dos escritórios Dias de Souza Advogados Associados e Advocacia Dias de Souza, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

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