Carf não serve ao governo de plantão
Edison Fernandes
Fui membro do então Conselho de Contribuintes (hoje Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – Carf) nos anos iniciais do século XXI. Já naquela época, discutia-se a sua reestruturação, e em dois sentidos totalmente opostos: havia projeto para extingui-lo e havia projeto para torná-lo quase um verdadeiro “tribunal” em matéria de tributos federais.
A segunda instância administrativa em matéria tributária é uma garantia constitucional (artigo 5º, LV da Constituição Federal de 1988), e como tal deve ser preservada e disciplinada por legislação específica. A manutenção do Carf, então, deve ser assegurada; para tanto, algumas modificações foram sendo feitas ao longo dos últimos anos.
A estrutura do Carf é exemplo para outros órgãos administrativos de julgamento, especialmente por sua composição paritária: metade dos julgadores são indicados pela Fazenda e metade, por entidades dos contribuintes. Por esse motivo, há um ponto de bastante controverso e que precisa ser avaliado com a cautela que merece: por ser órgão paritário, é formado por número par – o que fazer, então, no caso de empate? Esse assunto é tão importante que chegou à mesa do Supremo Tribunal Federal.
Originariamente, o desempate era dado pelo voto de qualidade do presidente da câmara julgadora. Como a presidência é exercida por um membro indicado pela Fazenda, o desempate tendia a ser no sentido do voto do presidente.
Em 2020, houve uma mudança legislativa extinguindo o voto de qualidade como critério de desempate – ao menos para os casos de exigência de tributo. O governo atual, como anunciado pelo ministro da Fazenda, pretende restabelecer o voto de qualidade do presidente da câmara como mecanismo de desempate dos julgamentos administrativos.
Não quero discutir aspectos formais que podem comprometer a constitucionalidade da medida adotada pelo Poder Executivo. Meu intuito é apresentar algumas ponderações, no sentido de reforçar a posição de que o Carf é (e deveria ser tratado como) um órgão de Estado, não podendo ficar submetido à conveniência e discricionaridade de políticas de governo.
Inicialmente, as normas do julgamento administrativo e, especificamente, o critério de desempate não garantem necessariamente aumento de arrecadação – aliás, nem é esta a função do tribunal administrativo em matéria tributária.
Não é possível antecipar a decisão dos julgamentos futuros, mas é razoável afirmar que parte substancial da matéria tributária em litígio não será decidida favoravelmente ao Fisco. Há várias razões para essa informação: o Carf deve seguir o posicionamento dos tribunais superiores e em muitos casos já há precedente favorável aos contribuintes; outras matérias já contam com precedentes favoráveis aos contribuintes no próprio Carf. Há, ainda, casos em que a cobrança de tributos federais é realmente indevida, por vício formal ou material na lavratura do auto de infração.
Some-se outro direito fundamental: o direito de petição (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, conforme artigo 5º, XXXV da Constituição Federal de 1988). Nesse sentido, o contribuinte que sentir se lesado em seu direito por decisão terminativa do Carf poderá recorrer ao Poder Judiciário. Isso significa que, para o contribuinte, o julgamento – ainda que da Câmara Superior do Carf, última instância do procedimento administrativo – não será a última instância da discussão em matéria tributária.
Certamente, a estrutura do Carf e a regulamentação do chamado processo administrativo fiscal (PAF) estão sujeitas a melhorias. No entanto, sugestões de alteração devem ser propostas, estudadas, debatidas e deliberadas de maneira democrática, congregando todos os envolvidos.
Quero concluir lembrando que uma das razões para o excessivo contencioso tributário brasileiro decorre da “confusão legislativa”, da complexidade do próprio sistema tributário. Portanto, incluir a discussão sobre o aperfeiçoamento do PAF e mesmo do Carf no âmbito da reforma tributária seria uma medida conveniente e bastante produtiva, para não dizer necessária.
Edison Fernandes
Doutor em Direito pela PUC-SP, professor doutor da FEA-USP e da FGV Direito SP, titular da Academia Paulista de Letras Jurídicas