União leva 80% dos créditos tributários julgados com voto de qualidade no Carf
Por Guilherme Pimenta e Beatriz Olivon — De Brasília
A União foi contemplada em 80% dos créditos tributários julgados com a aplicação do voto de qualidade pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) entre 2017 a 2020, ano em que a regra foi alterada e o contribuinte passou a ser beneficiado em casos de empate nos julgamentos. Os dados constam em pesquisa do Núcleo de Tributação do Insper e mostram, segundo tributaristas ouvidos pelo Valor, que a medida virou uma ferramenta para elevar arrecadação – como defende o atual governo.
O Ministério da Fazenda quer manter o voto de qualidade por meio da MP do Carf (a Medida Provisória nº 1.160/2023). Espera incrementar a arrecadação em R$ 50 bilhões e reduzir o déficit fiscal projetado para este ano, de R$ 228 bilhões. A proposta, no entanto, enfrenta resistências entre as empresas e no Congresso Nacional.
O voto de qualidade serve para desempatar julgamentos no Carf, última instância para discutir, na esfera administrativa, cobranças feitas pela Receita Federal. A questão é relevante porque o Conselho é um órgão paritário. É composto por representantes do Fisco e dos contribuintes (empresas).
A MP do Carf restabeleceu a regra que vigorou até 2020. Assim, o voto de minerva voltou a ser do presidente das turmas julgadoras, posto ocupado por auditores da Receita. Até então, valia o modelo de desempate a favor do contribuinte.
No período abrangido pelo estudo do Insper, o Carf julgou R$ 248 bilhões em litígios tributários por voto de qualidade (18% do total), dos quais a Fazenda Nacional venceu R$ 196 bilhões – as empresas só foram atendidas em R$ 51,7 bilhões.
Na prática, de acordo com tributaristas, não havia um resultado isento com a aplicação do voto de qualidade, ao contrário do que defenderam, na última semana, a Receita Federal e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) a parlamentares, em almoço em Brasília.
A Frente Parlamentar do Empreendedorismo (FPE), que é contrária à proposta, recebeu a procuradora-geral da Fazenda Nacional, Anelize Almeida, e a secretária-adjunta da Receita, Adriana Gomes Rêgo, que foi presidente do Carf. Aos parlamentares, elas defenderam que a intenção nunca foi prejudicar o contribuinte.
“Era uma decisão do presidente de turma e continua sendo. É esperado que o presidente de turma seja isento”, disse a secretária-adjunta da Receita.
Breno Vasconcelos, professor do Insper responsável pela pesquisa, considera, porém, que enquanto o voto de qualidade estiver associado a pressões arrecadatórias, intenção do governo com a MP do Carf, criam-se incentivos à manutenção dos autos de infração da Receita Federal e, portanto, ao uso do voto de qualidade “com desvio de finalidade”.
“Falo em desvio de finalidade porque o processo administrativo serve também ao Estado, pois existe para a depuração do crédito tributário, isto é, para conferir liquidez e certeza à cobrança. Quando esse processo de depuração sofre interferências externas, cria-se condições para a parcialidade dos julgamentos”, afirma o advogado. O estudo também foi realizado por Maria Raphaela Matthiesen, pesquisadora do Insper.
Na avaliação da advogada tributarista Lina Santin, sócia do escritório Salusse Marangoni Parente Jabur Advogados, os dados da pesquisa demonstram que o voto de qualidade “é massivamente concedido a favor da Fazenda Nacional, sendo difícil sustentar sua isenção e ausência de pressão pela manutenção das autuações”.
Para ela, acreditar que o retorno do voto de qualidade resultará em receita para a União demonstra grande desconhecimento da realidade prática na aplicação da complexa legislação tributária brasileira. “A maioria dos autos de infração lavrados são questionáveis e não possuem essa liquidez absoluta, bem como os autos mantidos no Carf se tornam objeto de discussão judicial.”
Carlos Higino Ribeiro de Alencar, presidente do Carf, entende, porém, não ser um problema a manutenção da maior parte do crédito tributário por meio do voto de qualidade. “Existe sempre a possibilidade de manifestação do Judiciário”, diz ele, pontuando que a Fazenda Nacional não pode buscar a Justiça quando derrotada.
Com eventual fim do voto de qualidade, acrescenta, todas as teses jurídicas iriam morrer no Carf. “Quando se acaba com o voto de qualidade, praticamente estamos tirando o Judiciário das discussões complexas”, afirma, destacando que o empate no Carf se dá em percentual pequeno no número de processos – em torno de 5%, mas em valor de crédito tributário fica ao redor de 20%.
Alencar diz que há grande grau de concentração nesses 20% do crédito tributário. Em 2022, foram R$ 24 bilhões resolvidos por empate e quase 90% do total eram de cerca de 20 ou 30 contribuintes, segundo ele. “O voto de qualidade é realmente importante em poucos processos de alto valor, normalmente nos casos complexos.”
O empate costuma acontecer nas teses mais disputadas, muitas vezes casos de valores elevados. No ano passado, de acordo com o presidente, 79,2% das decisões foram unânimes e 16,6% por maioria. O voto de qualidade representou 2,6% do total de julgados, enquanto o desempate a favor do contribuinte, 1,7% – a qualidade ainda valia para questões pontuais, como processos sobre compensação. Em 2019, por exemplo, representou 5,3% dos julgados.
Em nota, a PGFN diz entender que os dados devem ser interpretados no “contexto global dos julgamentos do Carf”. Para o órgão, seria uma “conclusão equivocada” a suposição de que os presidentes de turma votam na maior parte das vezes a favor da Fazenda Nacional.
Afirma, ainda, que o empate ocorre em percentual reduzido de julgados, em casos que envolvem teses tributárias controversas. Nessas situações, acrescenta, os conselheiros tendem a votar conforme a sua representação (contribuintes ou Receita Federal), o que leva ao índice elevado de votos de qualidade a favor da Fazenda no período mencionado (2017 a 2020).
Por outro lado, diz o órgão, essa constatação também explica o percentual elevado de incidência do desempate a favor do contribuinte nos casos relevantes julgados pelo Carf no período posterior. “Em regra, quando o presidente da turma vota a favor do contribuinte, o resultado do julgamento não se dá por qualidade, mas por maioria ou unanimidade de votos – esses julgados, que representam parcela significativa dos processos do Carf, são desconsiderados na estatística em questão.”