TJSP responsabiliza holding de herdeiros por pagamento de dívida de empresa
Recentes decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) acendem um alerta para quem faz planejamento sucessório usando holding – empresa criada para controlar outras empresas, cotas de sociedade ou ativos pessoais. Herdeiros podem ter que arcar com dívida se constatada confusão patrimonial entre os bens dos pais e os que compõem a holding.
Em um acórdão de outubro, a 13ª Câmara de Direito Privado ordenou a aplicação de incidente de desconsideração de personalidade jurídica (IDPJ) contra uma holding familiar. Na prática, herdeiros do dono de uma empresa que morreu sem pagar um empréstimo que, segundo valores atualizados, pode chegar hoje a R$ 5,4 milhões, terão que quitar o devido.
O problema identificado pelos magistrados que julgaram o caso foi uma confusão proposital entre os bens do empresário e os da holding, com o objetivo de blindagem patrimonial (processo nº 2100150-52.2023.8.26.0000). Cabe recurso da decisão ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).
O caso analisado é de um patriarca de uma família que fundou, em 1981, uma indústria de plásticos. Ele comprou três imóveis em Diadema (SP), onde instalou o parque fabril da empresa. Em 1988, dois dos imóveis foram passados para o nome dos filhos dele, um menino e uma menina, à época menores de idade. Em 2019, esses imóveis foram integralizados (incorporados) a uma holding em nome dos filhos e, posteriormente, vendidos a terceiros.
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Além dos imóveis, outros galpões industriais também foram transferidos pelo patriarca aos herdeiros, que integralizaram as propriedades na holding em seu nome e posteriormente as venderam – em 2018, um dos imóveis foi vendido a uma indústria por R$ 25 milhões.
Em 2014, a empresa do pai contratou um empréstimo de R$ 1,8 milhão. Diante do inadimplemento da dívida, o banco ajuizou ação de cobrança (execução) no ano de 2017. A dívida foi cedida a uma gestora financeira em 2021. Foi essa empresa, defendida pelo escritório Galdino, Pimenta, Takemi, Ayoub, Salgueiro, Rezende de Almeida Advogados, que apontou evidências de confusão entre o patrimônio do pai e o da holding dos filhos.
A defesa dos filhos, representados por advogados do escritório Ambiel Belfiore Hanna Advogados, argumentou que a intenção do pai, ao transferir o patrimônio, foi inserir os dois jovens no mundo profissional, auxiliando-os financeiramente por meio do adiantamento de herança. Os especialistas também chamaram a atenção para o fato de que a doação do patrimônio, do ano de 1988, ocorreu décadas antes da constituição da dívida da empresa do pai com o banco – só formalizada décadas depois, no ano 2014.
Na primeira instância, o juiz deu razão aos filhos. Ele negou sua inclusão no polo passivo da execução por entender que as doações foram feitas antes da assunção da dívida e que as outras medidas de constrição do patrimônio não tinham sido esgotadas. No TJSP, no entanto, o entendimento foi diferente. O relator do processo, desembargador Simões de Almeida, deu razão à gestora de capital porque o critério cronológico não é, “por si só, impeditivo” para a constatação de fraude aos credores.
O doador sempre precisou levar em consideração a existência de dívidas”
— Marcos Paiva
Especialistas ponderam que a constituição de holdings patrimoniais para a sucessão ou administração de patrimônio pessoal ou empresarial não foi considerada ilegal ou ilegítima pelo TJSP. “Muito pelo contrário, ela traz uma série de importantes benefícios para a gestão do patrimônio e sucessão de bens, principalmente de ordem fiscal”, afirma Tomás Costa, sócio do escritório que defendeu a credora. “O que não se admite é o uso de holdings patrimoniais como escudo para blindagem patrimonial de dívidas de seus controladores”, acrescenta.
De qualquer maneira, o julgamento cria uma preocupação para o planejamento sucessório, segundo Marcos Paiva, sócio do Choaib, Paiva e Justo Advogados Associados. “Até hoje, o doador sempre precisou levar em consideração a existência de dívidas no momento de fazer a doação”, afirma. “Mas é preciso ficar atento, também, para que o bem doado não seja usufruído pelo doador de nenhuma forma, porque nesse caso o Judiciário pode entender que houve simulação.”
O advogado Aloísio Costa Jr, que fez a defesa dos filhos, afirmou ao Valor que já foram apresentados embargos de declaração para esclarecer qual pessoa jurídica deve ser desconsiderada. Para eles, a decisão não especifica esse ponto claramente. O recurso também questiona o argumento de fraude a credores, que não é fundamentação para desconsideração de pessoa jurídica.
A lição que fica do precedente, segundo Renato Moraes e Tatiana Kauffmann, sócio e advogada da Cascione Advogados, respectivamente, é de que a constituição de holding familiar não blinda o patrimônio de dívidas futuras. “É um instrumento de gestão, eficiência tributária, redução de custos de eventual sucessão”, dizem.
O próprio TJSP já julgou outros casos semelhantes de tentativa de blindagem patrimonial. Em um deles, a 17ª Câmara de Direito Privado também reconheceu que a transferência de bens de um pai para os filhos criou confusão patrimonial entre bens pessoais e de empresas, mesmo que ela tivesse ocorrido seis anos antes da assunção das dívidas (processo nº 2039249-21.2023.8.26.0000).
Em outra decisão, a 3ª Câmara de Direito Privado aplicou a desconsideração inversa da personalidade jurídica (quando o patrimônio da empresa é usado para quitar a dívida de um ou mais sócios). No caso, o patrimônio do executado era insuficiente para o pagamento da dívida. A execução foi redirecionada para uma holding familiar, que, segundo a decisão, “serviu como instrumento de blindagem patrimonial do executado” (processo nº 2145478-68.2024.8.26.0000).