Novo presidente do Carf defende voto de qualidade e nega meta de arrecadação
Por Beatriz Olivon — De Brasília
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) inicia hoje os julgamentos sob nova presidência. À frente do órgão está o auditor fiscal Carlos Higino Ribeiro de Alencar, que começa a enfrentar um forte movimento contra uma das principais mudanças do órgão: a volta do voto de qualidade – o desempate pelo presidente de turma, que é representante da Fazenda Nacional.
A alteração, feita por meio de medida provisória (nº 1.160/23), faz parte do pacote anunciado pelo Ministério da Fazenda para elevar a arrecadação. A expectativa do órgão com a volta do voto de qualidade e de outras medidas para o Carf é de uma injeção, neste ano, de R$ 50 bilhões nos cofres públicos. Garantiriam ainda uma entrada anual permanente de R$ 15 bilhões.
Em entrevista ao Valor, o novo presidente defende as mudanças no Carf. De acordo com ele, não há, no tribunal administrativo, uma meta de arrecadação. “Não tenho meta de valor, tenho meta de eficiência perante a sociedade”, diz Alencar, acrescentando que a pauta bilionária de julgamentos para as primeiras semanas de sessões do órgão reflete os pedidos das empresas, do fim de 2022, para que seus casos fossem analisados.
Esses pedidos, porém, foram feitos antes da volta do voto de qualidade, que substitui o modelo de desempate a favor do contribuinte. Agora, há um movimento contrário, levado à Justiça, para adiar esses julgamentos de grandes casos.
“Até entendo, a empresa vê que a regra traz um risco maior e então quer fugir. Mas a MP está vigente e não se pode deixar de julgar por isso”, diz o novo presidente do Carf, que defende o voto de qualidade – criticado por contribuintes, que temem por aumento da litigiosidade e incertezas. “Mesmo com o voto de qualidade, o Carf julgava a favor do contribuinte”, acrescenta Alencar. A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor.
Valor: Como o Carf pretende atender a expectativa do Ministério da Fazenda para aumento da arrecadação?
Carlos Higino Ribeiro de Alencar: Não temos meta de arrecadação aqui. Porque se partíssemos desse pressuposto seria ‘vamos manter tudo para arrecadar’ e a ideia não é essa. Na verdade, alguns fatores impactaram o andamento normal dos processos. Houve a pandemia, que mudou muito a forma de trabalho, houve também o movimento de parte dos conselheiros da Fazenda, que são auditores, de regular o bônus e todo esse movimento sobre como ficaria com o fim do voto de qualidade, entre 2021 e 2022. Não é uma questão pontual em relação a ter que arrecadar agora, é uma questão mais estruturante, a ideia de que o processo administrativo fiscal demora muito e não traz o grau de segurança que o contribuinte precisa ter. Quando isso entrar num fluxo normal, pensamos em ter uma entrega de atividade pública mais célere e previsível, o que vai levar a menos litígio.
Valor: Há plano para pautar processos de valor mais elevado agora?
Alencar: As regras que já existiam de prioridade não mudaram. Já existia prioridade de doença, idosos e alto valor.
Valor: Mas após o cancelamento da pauta em janeiro, entraram na pauta de fevereiro casos de grandes contribuintes para serem julgados.
Alencar: Os contribuintes pediram para esses casos serem julgados. É só para julgar quando eu acho que o juiz ou desembargador vai dar decisão favorável? Havia pedidos para sair da pauta virtual para a presencial, tinha coisas nesse sentido. Até entendo, a empresa vê que a regra traz um risco maior e então quer fugir. Mas a MP [do voto de qualidade] está vigente e não se pode deixar de julgar por isso. Seria como se o Carf não julgasse quando a regra era favorável às empresas. E foram R$ 24 bilhões em casos julgados pró-contribuinte em 2022.
Valor: Qual será o impacto da volta do voto de qualidade?
Alencar: Mesmo com o voto de qualidade, o Carf julgava a favor do contribuinte. Não foi a mudança anterior que fez [o órgão] passar a julgar pró-contribuinte, apesar de o número ter aumentado muito. Em praticamente a totalidade dos casos que davam empate (98%), as teses foram julgadas a favor do contribuinte. Mas pequenos e médios contribuintes não se beneficiaram em nada com o fim do voto de qualidade.
Valor: O voto a favor do contribuinte foi só um benefício para os grandes, com grandes teses?
Alencar: Para os supergrandes. Nem para os grandes. Esquece pessoa física. Se você pensar em regime de tributação de lucro e receita, hoje em dia, o Simples Nacional pega um percentual gigante, mais de 90%, e temos o lucro presumido, pelo qual não tenho que colocar despesas e receitas e detalhar. As teses jurídicas controversas surgem nas empresas que trabalham com o lucro real em sua maioria. São os muito grandes, os enormes contribuintes que têm casos mais complexos, de planejamento tributário.
Valor: Tendo em vista o estoque de R$ 1 trilhão, existe uma meta de valor a ser julgado em 2023?
Alencar: Eu gostaria de cumprir a lei. Com o piso de 60 salários mínimos [para recurso ao Carf], a ideia é que, dentro de dois ou três anos, o Conselho entre no fluxo e cumpra a lei, ou seja, que os processos que entram sejam julgados em um ano. Independentemente do valor. Não tenho meta de valor, tenho meta de eficiência perante a sociedade. A redução do estoque virá naturalmente com a aceleração do trabalho. Hoje temos cerca de 93 mil processos, mas muitos de valor pequeno e poucos complexos de valor elevado. Entravam cerca de 3 mil processos por mês e julgávamos 2 mil. Com a MP, talvez entrem 500 por mês e a gente dê conta de reduzir esse estoque.
Valor: O ministro Fernando Haddad considerou absurdo a Fazenda não poder recorrer de decisão final do Carf. Isso pode ser alterado pelo Carf?
Alencar: Acho que era um entendimento da PGFN, mas a procuradoria pode falar com maior propriedade. A ideia do Carf é de tentar resolver as questões no âmbito da própria administração. Achamos que retomando o voto de qualidade haveria um grau de tranquilidade para o Carf, que talvez resolvesse esse problema. Se você vê que em 60% dos créditos se dá razão para o contribuinte, não posso dizer que o Carf não está fazendo sua parte, dando razão ao contribuinte também.
Valor: Com esse percentual não seriam então necessárias medidas da Receita Federal para orientar melhor os fiscais?
Alencar: Isso é uma falha e já conversamos com o secretário Robinson Barreirinhas [da Receita] e com a PGFN. Acho que às vezes temos muita falha de comunicação. Várias teses que se consolidam no Carf demoram para chegar lá na Receita. Por um lado, demonstra independência. Por outro, demonstra que talvez a gente tenha essa dificuldade, sobre repassar a informação dentro do próprio Ministério [da Fazenda].
Valor: Como tornar o Carf mais célere?
Alencar: Se fala muito do voto de qualidade, mas com o aumento do valor de processos que vão subir ao Carf, a ideia é transformá-lo em um órgão que discuta as teses jurídicas mais complexas, que normalmente estão ligadas aos valores mais relevantes. Também há um empenho do ministro, do secretário da Receita e meu de resolver essa questão dos auditores, de regulamentação do bônus de eficiência. Tem várias medidas sendo tomadas para deixar o Carf mais ágil.