Novas regras evitarão dupla tributação de multinacionais
Por Lu Aiko Otta e Beatriz Olivon — De Brasília
As multinacionais começarão o ano de 2023 com novas possibilidades para o cálculo de preços de transferência, que poderão evitar a bitributação. Batalha de muitos anos do setor produtivo, o alinhamento das regras brasileiras ao padrão internacional foi concretizado por meio da Medida Provisória (MP) nº 1.152, publicada ontem no Diário Oficial da União. A norma terá aplicação opcional para 2023, e obrigatória a partir de 2024.
Na prática, o texto evita o potencial aumento de tributos de multinacionais americanas, afasta o risco de dupla tributação e reduz as chances de litígios tributários, segundo advogados e representantes do setor.
“O ponto fundamental é que [a MP] aumenta a atratividade da economia brasileira nas cadeias globais de valor ligadas ao comércio intrafirma”, afirma o gerente-executivo de Economia da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Mário Sérgio Telles.
O preço de transferência é um conjunto de métodos criados pela Receita Federal para indicar o valor que uma empresa pode pagar por um bem ou serviço transferido por companhia vinculada a ela, instalada em outro país. O objetivo é evitar concorrência desleal e que resultados sejam transferidos para o exterior via importações ou exportações – o que reduziria o pagamento de imposto no país.
As regras atuais de preço de transferência brasileiras são baseadas em métodos pré-estabelecidos com margens fixas de lucro. Sempre foram consideradas pelos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) como alheias à realidade econômica, segundo o advogado Leonardo Castro, sócio da área tributária do VBD Advogados.
A MP foi considerada urgente pela presidência da República por causa de recente alteração na política tributária dos Estados Unidos. O governo americano deixaria de aceitar o crédito tributário referente aos impostos pagos no Brasil por causa de desvios no sistema de preços de transferência brasileiro. A MP institui o regime de “arm’s lenght”, adotado nas principais economias do mundo, no qual preços de transferência seguem um padrão de mercado.
Na prática, empresas americanas que atuam no Brasil passariam a enfrentar aumento de carga tributária a partir de 2023. Como as novas regras serão obrigatórias a partir de 1º de janeiro de 2024, segundo Telles, da CNI, dá tempo para as empresas e o próprio Fisco se prepararem para a mudança. Por outro lado, em 2023, as empresas poderão antecipar a adoção da nova regra.
O fato de o Brasil adotar norma para preços de transferência diferente das principais economias do mundo era um embaraço para os negócios porque acabava dando margem à dupla tributação, observa o executivo. Em diagnóstico realizado em 2019, a OCDE havia apontado 30 divergências entre as regras brasileiras e os padrões da instituição e 27 delas gerariam risco de dupla tributação.
“O Brasil era a jabuticaba nesse caso em relação à maioria dos países, tinha a legislação diferente”, afirma Clarissa Machado, sócia da área tributária do escritório Trench Rossi Watanabe. Entre as mudanças, a advogada destaca a necessidade de que essas companhias avisem a Receita sobre efeitos de reestruturações nos negócios. Segundo a advogada, isso poderá evitar autuações fiscais, que hoje acontecem quando o Fisco entende que a empresa realizou transação sem propósito negocial, só para reduzir a carga tributária.
Sócia do mesmo escritório, Simone Dias Musa aponta também que a nova legislação traz a possibilidade de o contribuinte, espontaneamente, ao fim do ano calendário, fazer novo ajuste no preço de transferência.
A MP ainda prevê a realização de consultas prévias à Receita especificamente sobre preços de transferência. Será cobrada uma taxa de R$ 80 mil por consulta, mas o contribuinte poderá checar se a Receita concorda com a metodologia que pretende aplicar, podendo evitar futuras autuações fiscais.
Além disso, quando o auditor fiscal discordar do modelo de cálculo adotado, ao invés de autuar a companhia, poderá abrir a possibilidade de retificação, afastando a aplicação de multas. A oferta de uma “segunda chance”, contudo, dependerá de alguns critérios fixados na MP.
Esse espaço para diálogo entre Fisco e contribuinte tem o potencial de reduzir o contencioso tributário, segundo a tributarista Thaís Shingai, sócia do escritório Mannrich Vasconcelos. “Se tiver uma situação que gere muita dúvida interpretativa, o contribuinte pode ir à Receita Federal e alinhar o entendimento. Não sabemos como será na prática, mas poderá ser feito”, afirma.
O lado negativo dessas mudanças, segundo Thais, é o provável aumento do custo de compliance (conformidade) para as empresas. “Agora a norma é muito mais detalhada e vai demandar das empresas a apresentação de documentação, deve ser criada alguma metodologia de prestação de informações sobre as operações controladas”, diz.
No geral, porém, a MP está alinhada com o que a iniciativa privada precisa, segundo o superintendente-geral da Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca), Alexandre Fischer. “Estamos passando por um movimento mais alinhado com a boa prática contábil internacional, da essência sobre a forma. Por isso é importante a postura colaborativa da autoridade fiscal”, afirma.
Desde 2018, a Receita Federal atuou com a OCDE em estudos e debates para a modernização das regras de preços de transferência. Por meio de nota, o órgão afirma que o sistema atual gera problemas de dupla não tributação, o que faz com que o Brasil perca receitas tributárias, ao mesmo tempo em que se verifica casos de dupla tributação, o que prejudica investimentos no país. “O novo sistema corrige essas lacunas”, afirma a nota.
Apesar de as novas regras serem “mais subjetivas”, segundo a própria Receita, a MP contempla a introdução de novos instrumentos que trarão segurança jurídica e previsibilidade. “Há expectativa de redução de litigiosidade no âmbito internacional já que a transação estará sujeita a regras tributárias mais homogêneas”, diz a nota.
O alinhamento das normas para tributação em preços de transferência com as regras internacionais era um dos principais itens da agenda do atual governo no processo de acessão à OCDE. Na terça-feira, o futuro ministro da Fazenda Fernando Haddad disse que o projeto de integrar a OCDE será “revisitado” pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT).