Decisões do STF podem incentivar cobrança de IPTU sobre concessões
Por Beatriz Olivon — De Brasília
Duas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2017 têm gerado preocupação pelos potenciais efeitos sobre concessões de infraestrutura. A partir dos julgados, tributaristas interpretam que foi aberta uma brecha para municípios cobrarem IPTU de quem usa espaço ou imóvel da União – eles se consideravam beneficiários de imunidade.
De acordo com o Ministério da Infraestrutura, com os custos adicionais dessa nova cobrança, projetos dos setores rodoviário, ferroviário, aeroportuário e portuário se tornam “inviáveis”.
No Rio de Janeiro, já há orientação para que os valores sejam cobrados. A secretaria de Fazenda estima que o IPTU devido pelos estabelecimentos comerciais situados nos aeroportos do Galeão, de Jacarepaguá e do Santos Dumont somados é de cerca de R$ 48 milhões só para o ano de 2022. Segundo a Procuradoria Geral do Município (PGM), atualmente, dezenas de ações discutem a imunidade do tributo nestes casos. A maioria delas, disse a PGM, com vitória ou perspectiva de decisão favorável ao município.
Para ser usado nas defesas contra os entes públicos, a Advocacia Geral da União (AGU) aponta seu principal argumento: a Constituição Federal veda à União, Estados, Distrito Federal e municípios instituírem tributos sobre o patrimônio, renda ou serviços uns dos outros. Conhecida como imunidade tributária recíproca, essa previsão impediria que um município possa cobrar IPTU de imóvel da União, por exemplo.
O STF teve que se manifestar sobre o assunto para os casos em que esses imóveis de entes públicos são alugados para empresas privadas. Em 2017, o Supremo autorizou a cobrança nessa situação. O tema foi julgado em dois processos, mudando a jurisprudência que existia até então.
Um dos julgados envolve a concessionária de veículos Barrafor, que ocupa imóvel no Rio de Janeiro cedido pela Infraero. No processo, o município alegou que a cobrança do IPTU seria válida porque a empresa tem finalidade econômica. Argumentou que a dispensa do imposto daria vantagem em relação às concorrentes.
O outro julgado é relativo à Petrobras, arrendatária de um imóvel da União no Porto de Santos, de responsabilidade da Companhia Docas do Estado de São Paulo. Ambas as cobranças foram autorizadas.
De acordo com tributaristas, a redação da tese pelo STF deixa margem para a cobrança do IPTU das prestadoras de serviços públicos, incluindo os casos de concessão. “Essas decisões estavam olhando o desenvolvimento de atividade econômica por pessoa que não tem espectro de serviço público”, diz a advogada Andrea Mascitto, sócia do Pinheiro Neto.
Andrea explica que concessionárias, diferentemente de locatárias privadas, ficam amarradas pelas tarifas estabelecidas no contrato de cessão. Além disso, conforme a advogada, prestam serviço público e fazem o papel da União, o que as distinguem de uma locadora. “Quem vai pagar [o IPTU] é a União ou os beneficiários”, afirma, ponderando que as concessionárias repassarão os custos do imposto.
Por meio de nota, a Secretaria Municipal de Fazenda e Planejamento do Rio de Janeiro informou que “segue cumprindo a decisão mais recente do STF” sobre cobrar o IPTU de imóveis da União ocupados por concessionárias e particulares que desenvolvem algum tipo de exploração econômica. A PGM do Rio entende que o lançamento do imposto é devido nestas situações. Os órgãos alegam que sem o IPTU o Estado perderia arrecadação.
Já a AGU afirma no Parecer nº 358, publicado em junho, que as decisões do STF de 2017 mudaram a jurisprudência vigente. Argumenta que a posse ou o uso de imóveis públicos por cessionários particulares, em um contrato de parceria, constitui fonte de receitas vinculadas à prestação de serviços públicos. Por isso, não poderia haver a cobrança de IPTU.
De acordo com o parecer da União, os precedentes do STF têm servido de base para interpretações “equivocadas” pelas Cortes inferiores, ao reconhecer a incidência de IPTU sobre imóveis localizados em sítios aeroportuários. Segundo a AGU, existem diversas áreas arrendadas para atividades que geram receitas não oriundas de tarifas, como lojas e restaurantes, mas que são importantes fontes de receita da concessão, levadas em consideração no oferecimento das propostas nos leilões.
A pasta ainda projetou alguns cenários. Considerando o custo do IPTU calculado com base nas áreas destinadas a atividades econômicas não sujeitas a tarifação, o custo anual com o imposto varia de R$ 10 mil em Uruguaiana (RS), em 2022, a R$ 2,19 milhões em Manaus, em 2050. Se considerada a cobrança de IPTU sobre toda a área do sítio aeroportuário, o custo anual com o imposto varia de R$ 1,78 milhão em Uruguaiana, em 2022, a R$ 41,75 milhões em Manaus, em 2050.
No caso das concessões de rodovias federais, o montante total anual de IPTU estimado foi de R$ 95,8 milhões, chegando a R$ 2,87 bilhões, ao longo de 30 anos. Também segundo a AGU, no caso das concessões rodoviárias, praticamente toda a receita é proveniente da tarifa cobrada dos usuários. “São esses usuários, caminhoneiros, ônibus e carros que deverão pagar pela cobrança adicional do imposto”, alega no parecer.
Procurada pelo Valor, a Secretaria Municipal da Fazenda de São Paulo diz entender que o parecer da AGU “não vincula de nenhuma forma as diversas prefeituras do país a quem cabe, em cada caso, analisar a situação concreta a fim de concluir, em vista da jurisprudência dos tribunais superiores e da respectiva legislação municipal, acerca da possibilidade de incidência do IPTU”.
Ainda sobre o parecer da AGU, o Ministério da Infraestrutura informa, por meio de nota, que o documento foi emitido para prestar subsídios a um possível ingresso da União em ações judiciais já existentes, em virtude do impacto econômico pela cobrança de IPTU em presentes e futuras concessões. Por ora, não existem ações ajuizadas pela AGU, de acordo com o ministério, porém, há estudos sobre em quais pleitos seria possível intervir. O órgão considera possível que o tema evolua novamente ao STF.
O grupo de trabalho criado pelo ministério para coletar informações sobre a incidência de IPTU e os impactos dessa cobrança concluiu que a mudança de jurisprudência pelo STF levou à exigência do imposto sobre áreas de concessões federais, “com potenciais impactos nos contratos vigentes e em projetos que futuramente serão leiloados”.
De acordo com o especialista em direito público André Silveira, sócio do escritório Bermudes Advogados, nos tribunais estaduais há várias decisões favoráveis à exigência. “É necessário fazer a distinção das concessionárias de serviço público, que não poderiam ser cobradas”, diz. Já na Associação Brasileira dos Terminais Portuários, a preocupação são processos que tramitam no Superior Tribunal de Justiça (STJ), relativos à cobrança de IPTU de arrendatárias de instalações portuárias. A entidade solicitou intervenção da União.