Retornando ao jardim e à praça do Direito Financeiro e Tributário

Por Fernando Facury Scaff

23/09/2025 12:00 am

Retorno à metáfora criada por Nelson Saldanha na obra O Jardim e a Praça (Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1986) que utilizei para apresentar a diferença entre o Direito Financeiro, cujo enfoque se assemelha ao de uma praça, e o Direito Tributário, que se aproxima da figura do jardim. Escrevo sobre esses ramos do Direito em diferentes colunas, a Justiça Tributária, às segundas-feiras, e a Contas à Vista, às terças-feiras, iniciada com o uso dessa metáfora em 5 de junho de 2012. Hoje volto a essa imagem fechando uma espécie de círculo, pois não conseguirei mais alimentar semanalmente as duas colunas, acarretando uma presença menos intensa em sua tela e na busca de sua atenção.

O tema central do texto de Nelson Saldanha é o da dualidade entre o lado privado da vida social, que ele poeticamente denominou de “jardim”, aquele espaço privado intramuros, que corresponde à ética presente na família e no lar, e em grande parte do Direito Privado, e o lado público, denominado de “praça”, cuja imagem nos remete à ágora, aos espaços públicos da sociedade, mais usual no Direito Público. A diferença é bem exposta no conhecido ditado “costume de casa não vai à praça“.

A vida pública apresenta uma exterioridade em relação à casa, ao jardim, ao viver básico, dentro do qual se situa a existência privada, gerando, a partir daí, dois sistemas de valores: um com referência ao lar e outro com relação à cidade, sendo necessário haver entre esses dois âmbitos um sentido de equilíbrio e de complementaridade, de tal modo que permita sua convivência harmônica, embora se constituam em uma antítese, em que o crescimento de um lado implica necessariamente na mudança do outro. Conclui Nelson Saldanha que falta ao privatismo brasileiro ser publicista, pois fortemente arraigado no individualismo. Segundo ele, ocorre no Brasil um individualismo sem jardins.

Faço um paralelo entre a metáfora de Saldanha e a análise de Wolfgang Streeck sobre a justiça contratual e a justiça social, na obra Tempo Comprado (Coimbra: Conjuntura Actual, 2013). Streeck denomina de justiça contratual aquela que é feita pelos mercados, de acordo com a avaliação que fazem dos desempenhos individuais das pessoas físicas ou jurídicas nele envolvidas, tendo o valor de mercado como o preço a ser considerado. E usa a expressão justiça social como aquela regida por normas legais, e não contratuais, que tem por base “concepções coletivas de honestidade, equidade, reciprocidade”, e concede direitos ao mínimo existencial, independente da capacidade e do desempenho econômico de um indivíduo ou grupo de indivíduos, atribuindo-lhe vários direitos humanos e fundamentais.

Assevera Streeck que o mercado decide aquilo que é justo em termos de negociações entre as partes, expressas em preços, e, em contraposição, é nos processos políticos de ponderação do poder que ocorre a definição do que é socialmente justo, expresso em instituições e processos à margem da lógica de mercado.

Sob a ótica dos mercados a justiça social parece ser completamente irracional, imprevisível e arbitrária, pois decidida politicamente; na ótica mercadológica se compreende apenas a justiça contratual. O reverso da moeda encontra-se em quem entende que as políticas distributivas são necessárias para corrigir as relações desiguais entre quem depende do salário e quem depende do lucro. Para os mercados a distribuição dos recursos segue regras universais, baseadas em contratos livremente estabelecidos entre as pessoas, e, para a distribuição política dos recursos, a regra é a das relações de influência, discutidas em processos controversos e implementadas ativamente.

Streeck aponta a crise do Estado Fiscal, que desembocou em uma espécie de Estado Endividado, pois é insuficiente o uso do sistema tributário para que o Estado atue em prol do interesse público. Deve-se considerar que a carga fiscal acaba sendo paga pela massa da sociedade que possui menos recursos, por meio da tributação do consumo que não leva em conta a capacidade contributiva. Isso leva o Estado a cobrir grande parte de suas despesas através de empréstimos obtidos junto ao mercado financeiro, sustentado por quem tem dinheiro para emprestar ao Estado, que, no Brasil, sempre foi regiamente remunerado.

Unindo Saldanha e Streeck, e acrescendo uma pitada de abstração, pode-se considerar que a análise isolada do Direito Tributário coloca toda a atenção no bolso do cidadão, possuidor de bens e valores, que considera o Estado arbitrário e mau gestor do patrimônio público, decorrente da parte que arranca de seus recursos, sob o peso de leis abusivas e violadoras da Constituição e de sua capacidade contributiva. Nessa ótica, o Estado é sempre um agente do mal, e o Fisco é uma entidade infame, que serve a propósitos escusos dos servidores públicos. O Direito Tributário, isoladamente considerado, é uma espécie de espada através da qual o contribuinte individual luta contra o arbítrio do Estado por meio do capítulo da Constituição denominado Limitações ao Poder de Tributar, para frear as desmedidas ambições fiscais sobre seu bolso.

O Direito Financeiro também estuda essas relações entre o Fisco e os contribuintes, acrescendo aspectos públicos, de interesse da sociedade, tais como interesse público, necessidades públicas e a teoria da escassez dos recursos, ou seja, coisas intangíveis, dificilmente mensuráveis, com baixo nível de formalidade e alto grau de subjetividade. Em sua análise alia a justiça dos mercados à da sociedade.

Sob essa ótica isolacionista das duas disciplinas, o Direito Tributário limita a arrecadação; e o Direito Financeiro busca a melhor utilização dos recursos arrecadados. O primeiro é vinculado a uma ideia individual, de retirada de dinheiro do bolso privado; o outro é vinculado a uma ideia de satisfação das necessidades públicas, por meio da correlação entre as capacidades contributiva e receptiva das pessoas e grupos sociais. Isoladamente, o estudo do Direito Tributário implica em uma ótica de mercado das relações econômicas; o Direito Financeiro abre o leque para estudar não só a arrecadação, mas também o gasto, o crédito, o orçamento, seu controle e o federalismo. Ambos se regem pela Legalidade, embora tenham diferentes abrangências, pois existe a Reserva Legal Tributária, com conteúdo mais estrito em face da Legalidade Financeira.

Seguindo essa trilha separatista, o Direito Tributário representa o jardim, o que se esconde no recôndito da casa, no bolso das pessoas, nas contas correntes, na contabilidade das empresas; e o Direito Financeiro corresponde à praça, na qual se debate a arrecadação e o orçamento é discutido e votado, correlacionando a receita, a despesa e a dívida pública.

Ocorre que praça e jardim são complementares, assim como os mercados e a sociedade. Há uma relação de harmonia entre o Direito Financeiro e o Direito Tributário, tal como existe entre o jardim e a praça, entre a esfera pública e a privada. Essa relação há de ser de equilíbrio dinâmico, pois não há cidades apenas com jardins ou só com praças. Um não existe sem o outro.

Eterna disputa
Olhar apenas para o jardim tributário sem observar concomitantemente a praça financeira impedirá a compreensão do fenômeno, acarretando uma visão deturpada do todo, que é maior que a soma de suas partes (Aristóteles). Aqui se insere a má compreensão sobre normas e decisões que sopesam o individual é o social, sob o pálio constitucional.

O Brasil carece de finanças republicanas, na arrecadação e no gasto, que sejam voltadas ao ser humano e não à singela reprodução estéril do capital.

Tudo isso acarreta uma relação que vincula este jardim jurídico-tributário à praça jurídico-financeira para todo o sempre. Trata-se de um equilíbrio instável, jamais estático, em face da eterna e agônica disputa de forças entre os mercados e a sociedade.

Estas poucas linhas resumem ideias que ampararam as colunas que escrevi semanalmente: o Direito Financeiro e o Tributário são necessariamente complementares, e devem ser compreendidos de forma republicana, humanística e harmônica, sob a égide da Constituição.

Mini Curriculum

professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff – Advogados.

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