Regimes aduaneiros especiais na reforma tributária: mudanças que merecem atenção
Por Liziane Angelotti Meira
21/10/2025 12:00 am
A reforma tributária suscita expectativas muito positivas para o comércio exterior, ao simplificar a tributação, reduzir a burocracia e implementar mecanismos mais eficientes para desonerar os tributos incidentes na cadeia produtiva de bens exportados. Tais mudanças devem gerar efeitos consideráveis sobre a competitividade brasileira no mercado internacional, estimulando especialmente a exportação de produtos com maior valor agregado.
Nesse sentido, destacam-se duas vantagens importantes: a promoção de menor dependência dos regimes aduaneiros especiais, por meio de uma sistemática de desoneração mais direta e eficiente; e o aprimoramento do regramento dos próprios regimes, como ocorre na revisão das hipóteses de multa no Drawback, tornando esses instrumentos mais previsíveis e atraentes para os operadores de comércio exterior.
Em artigos anteriores desta coluna, já abordei os impactos da reforma sobre os regimes aduaneiros especiais, [1] destacando a centralidade de instrumentos como o Drawback e o Recof na política de incentivo à exportação, mas também evidenciando o contexto de complexidade e dependência de regras internas que, muitas vezes, limitam a competitividade pretendida. A análise da evolução normativa e do impacto da reforma sobre o comércio exterior e a legislação vigente mostra que a criação da IBS e da CBS oferece um panorama de desoneração mais racional e eficiente, favorecendo maior previsibilidade e segurança jurídica para o setor produtivo.
O presente artigo tem como objetivo apresentar mudanças pontuais e relevantes nos regimes aduaneiros especiais, concentrando-se em aspectos específicos do Drawback e da Admissão Temporária para Utilização Econômica. O texto evidencia o descompasso existente entre o regramento atual e as novas regras estabelecidas pela Lei Complementar nº 214, de 2025, mostrando onde a legislação vigente não está totalmente alinhada com a reforma tributária. O também aponta as alterações necessárias na Lei Aduaneira (por meio do Projeto de Lei nº 4.423, de 2024) para adequar o sistema às disposições da lei complementar, garantindo maior coerência, segurança jurídica e eficiência operacional.
Drawback: alterações importantes
O Drawback constitui um regime aduaneiro especial que serve incentivo à exportação, permitindo que insumos importados ou adquiridos no mercado interno, utilizados na fabricação de produtos destinados à exportação, tenham os tributos incidentes suspensos, isentos ou restituídos, dependendo da modalidade escolhida.
O regime é estruturado em três modalidades. A modalidade de Suspensão permite a importação com desoneração do pagamento de tributos sobre insumos importados ou adquiridos internamente, que serão empregados na industrialização de produtos a serem exportados. A Isenção desonera os tributos incidentes sobre insumos equivalentes aos já utilizados na produção de bens exportados. Já a Restituição possibilita a devolução total ou parcial dos tributos pagos em insumos que foram exportados após beneficiamento ou utilizados na fabricação, complementação ou acondicionamento de produtos exportados. Na modalidade suspensão, caso o produto final não seja exportado, os tributos tornam-se exigíveis, acrescidos de multa e juros de mora..
Duas mudanças importantes introduzidas pela Lei Complementar nº 214, de 2025, merecem destaque. A primeira é a aplicação somente do Drawback na modalidade Suspensão para o IBS e CBS.[2] A segunda é a não cobrança de juros e multa caso a destinação ao mercado interno ocorra dentro de trinta dias contados do prazo para exportação. [3]
O Drawback Restituição é muito pouco utilizado, considerando que não atende ao principal objetivo do Drawback no Brasil, que é contornar dificuldade de recuperação dos tributos pagos sobre produtos exportados. Já o Drawback Suspensão apresenta utilização considerável e, embora exija o pagamento dos tributos na importação ou na aquisição dos insumos no mercado interno, permite uma recuperação rápida e efetiva dos valores pagos, além de afastar o risco de pagamento de juros e multas que pode ocorrer se na modalidade suspensão houver destinação ao mercado interno.
É importante ter presente que o regime de Drawback no regramento da Lei Complementar nº 214, de 2025 [4] está inserido na categoria “Regimes de Aperfeiçoamento”, que inclui também o Regime Aduaneiro Especial de Entreposto Industrial sob Controle Informatizado (Recof), [5] regime similar e com o mesmo objetivo do Drawback — incentivar a exportação. [6]
Assim, a retirada da multa é pertinente, pois alinha a legislação com o entendimento prevalente no STJ, [7] evita litigiosidade e torna o regime mais simples, aproximando-o do Recof, no qual não há previsão de multa e juros no caso de nacionalização. A exclusão da possibilidade de utilizar o Drawback Isenção também se mostra lógica, especialmente considerando o afastamento da multa e a simplificação decorrente.
Sempre importante lembrar que essas mudanças, por enquanto, valem somente para IBS e CBS. Quanto aos demais tributos federais incidentes na importação, o Projeto de Lei nº 4.423, de 2024, prevê que o fato gerador dos tributos federais ocorrerá na data de registro da declaração de importação definitiva, e não mais na admissão ao regime de Drawback suspensão, afastando também a exigência de multa e juros de mora na hipótese de nacionalização.
Contudo, com a vigência da Lei Complementar nº 214, de 2025, sem a aprovação do Projeto de Lei Aduaneira, enfrentaremos algumas contradições. No Drawback suspensão, continuam a ser exigidos multa e juros no caso de nacionalização para os tributos federais, exceto para IBS e CBS se a operação ocorrer dentro do prazo determinado. A modalidade Drawback Suspensão permanece disponível e relevante para utilização nos tributos federais incidentes na importação, com exceção de IBS e CBS.
Regime de Admissão Temporária para Utilização Econômica: alterações específicas
O regime de Admissão Temporária é um regime aduaneiro especial que permite a importação de bens para permanência temporária no país, com desoneração total ou parcial do pagamento de tributos. No caso de utilização econômica, a desoneração é parcial, e os bens ficam sujeitos ao pagamento proporcional dos impostos federais, bem como das contribuições para o PIS/Pasep-Importação e da Cofins-Importação, calculados de acordo com o tempo de permanência no território aduaneiro.
A proporcionalidade prevista na legislação atual é obtida mediante a aplicação do percentual de 1% por mês do prazo de concessão do regime, sobre o montante dos tributos originalmente devidos.
O artigo 64 da IN RFB nº 1.600, 2015, prevê a cobrança de juros de mora em caso de prorrogação do regime especial de Admissão Temporária para utilização econômica, calculados desde a ocorrência do fato gerador até o efetivo pagamento. Entretanto, a 2ª Turma do STJ tem se posicionado contrariamente à cobrança desses juros.
Sob minha perspectiva, existem dois problemas na previsão normativa da exigência de juros. Primeiramente, a cobrança está prevista em instrução normativa, cuja hierarquia legal é muito questionável para tratar de encargos tributários. Ainda que tratasse de interpretação de lei, o ideal seria que tal previsão fosse feita, ao menos, por meio de decreto, com escala normativa mais adequada.
Em segundo lugar, o problema reside na natureza jurídica dos regimes aduaneiros especiais, uma vez que a figura da “suspensão do pagamento” de tributos não está prevista no Código Tributário Nacional. O CTN contempla apenas a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, cuja aplicação depende de previsão em lei complementar. Sem um entendimento claro sobre a natureza desses regimes, torna-se difícil determinar seu efeito sobre o crédito tributário, inclusive a possibilidade de cobrança de juros durante a vigência do regime.
De todo modo, a Lei Complementar nº 214, de 2025, trouxe a previsão de cobrança de juros da instrução normativa para o nível de lei complementar, prevendo expressamente, em seu artigo 89, §2º, a correção do valor do IBS e da CBS pela Taxa Selic a partir do fato gerador. O Projeto de Lei nº 4.423, de 2024, também prevê a aplicação de juros moratórios nessa situação.
Nesse contexto, surgem duas questões. A primeira é se, sem haver clareza quanto à natureza jurídica do regime especial e seu efeito sobre o crédito tributário, é possível a cobrança desses juros apenas pelo fato de a previsão ter sido elevada na hierarquia da pirâmide de Kelsen. A segunda questão refere-se ao alcance da previsão em lei complementar: como ela se aplica apenas à CBS e ao IBS, a cobrança de juros sobre os demais tributos, sem a aprovação do Projeto de Lei Aduaneira, continuaria sendo feita com base em instrução normativa, ainda que contrária ao entendimento prevalente do STJ.
Outra diferença pontual, que gera certa dificuldade para o aplicador da regra, diz respeito ao cálculo do pagamento do IBS e da CBS no caso de Admissão Temporária para utilização econômica. Segundo a Lei Complementar nº 214, de 2005, a taxa aplicável é de 0,033% ao dia, valor próximo, mas distinto, do cálculo adotado para os tributos atualmente incidentes na importação, de 1% ao mês. O Projeto de Lei Aduaneira propõe uniformizar o cálculo desses tributos, de modo a torná-lo compatível com o previsto para o IBS e a CBS; entretanto, enquanto o Projeto não for aprovado, persiste a dificuldade de coexistirem dois métodos distintos: um para IBS e CBS e outro para os demais tributos cobrados nessa modalidade de Admissão Temporária.
Considerações finais
A análise das mudanças recentes nos regimes aduaneiros especiais evidencia avanços importantes para o comércio exterior brasileiro, especialmente no Drawback e na Admissão Temporária para Utilização Econômica. A reforma tributária, ao simplificar a tributação, reduzir a burocracia e implementar mecanismos mais eficientes de desoneração tributária, contribui de forma significativa para aumentar a competitividade do Brasil no mercado internacional e estimular a exportação de produtos com maior valor agregado. A sistematização promovida pela Lei Complementar nº 214, de 2025, proporciona maior previsibilidade, segurança jurídica e eficiência operacional, consolidando esses efeitos positivos.
Ao mesmo tempo, persistem desafios significativos que dificultam a plena efetividade desses regimes. O presente texto evidenciou que a reforma tributária introduziu mudanças importantes nos regimes de Drawback e de Admissão Temporária para Utilização Econômica, abrangendo a incidência de juros e multas, a aplicação das modalidades de isenção e restituição no Drawback; bem como o cálculo dos tributos e a cobrança de juros na Admissão Temporária para Utilização Econômica. Contudo, sem alterações na Legislação Aduaneira, continuará existindo um descompasso entre as normas aplicáveis aos novos tributos (IBS e CBS) e aos tributos federais já incidentes na importação.
Para enfrentar esses desafios, é necessário que a Lei Aduaneira seja atualizada, harmonizando o regramento com as disposições da Lei Complementar nº 214, de 2025. O Projeto de Lei nº 4.423, de 2024, que já se encontra pronto e aguarda votação no Senado, busca precisamente esse alinhamento, consolidando normas gerais sobre o comércio exterior e ajustando a legislação aduaneira às mudanças introduzidas pela reforma tributária.
Além da aprovação do Projeto, é fundamental enfrentar questões estruturais, como a natureza jurídica dos regimes aduaneiros especiais e seu impacto sobre o crédito tributário, que ainda geram incerteza quanto à exigibilidade de tributos, à cobrança de juros e à aplicação prática dos regimes. A definição clara desses pontos é essencial para garantir coerência, segurança jurídica e efetividade dos instrumentos de incentivo à exportação, permitindo que os efeitos positivos da reforma tributária sejam plenamente concretizados.
_________________________________________
[1] “Reforma tributária e os impactos da bala de prata no comércio exterior”
“Impacto da reforma tributária (parte 3): regimes aduaneiros especiais”
“Impactos da reforma tributária (parte 4): comércio exterior e PLP 68/2024”
“Impactos da reforma tributária (parte 5): a nova Lei Geral Aduaneira”
“Repetro: impactos da reforma tributária e a nova Lei Geral Aduaneira”
[2] Art. 91 da Lei.
[3] Art. 90, § 5º.
[4] Arts. 90 a 92.
[5] Art. 90, § 6º, da Lei.
[6] O art. 90, § 1º, da Lei estabelece que “o regulamento discriminará as espécies de regimes aduaneiros especiais de aperfeiçoamento”. Nessa perspectiva, compreende-se atualmente que o Regime Aduaneiro Especial de Importação de Insumos para Industrialização por Encomenda (Recom) também se enquadra como uma modalidade de regime de aperfeiçoamento. Entretanto, delegar ao regulamento a tarefa de discriminar ou instituir regimes aduaneiros especiais — os quais se configuram, em essência, como hipóteses de suspensão do pagamento de tributos ou, conforme a interpretação que sustento, de isenções condicionais — suscita uma relevante questão jurídica. Tal delegação pode implicar violação ao princípio da legalidade tributária, tema que, pela sua complexidade, merece exame específico em estudo próprio.
[7] EREsp 1.580.304.
Mini Curriculum
é presidente da 2ª Seção do Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.
Continue lendo
Exceções mantêm complicação do sistema tributário
Por Edison Fernandes
O aumento dos combustíveis está em jogo no STF
Por Ricardo Lodi Ribeiro
Quais são os mitos sobre as subvenções fiscais até 2023
Por Fernando André Kreisig
Reforma tributária e o cooperativismo no agronegócio (parte 1)
Por Fábio Pallaretti Calcini
Reforma: o risco de empresas reféns da operação
Por Heron Charneski
Pelo uso de uma IA responsável no processo administrativo fiscal
Por Diego Diniz Ribeiro, Silvia Piva