Reforma tributária com destaque para a tributação das cooperativas

Betina Treiger Grupenmacher

A reforma tributária, objeto da PEC/45, está na iminência de ser votada no Senado e, a despeito de sua aprovação ser quase certa, o seu texto tem sido alvo de severas e merecidas críticas.

Pessoalmente, acredito que não precisamos de uma reforma tributária, o atual Sistema Constitucional Tributário, embora extremamente analítico, é harmônico e bem arquitetado; é necessário apenas simplificar o ICMS, o PIS e a Cofins, tributos cujo nível de complexidade é extremamente prejudicial às atividades dos agentes econômicos, incrementando custos de compliance e absorvendo tempo que poderia ser empregado na produção de bens e na prestação de serviços.

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De qualquer forma, a sociedade clama por uma reforma e, se assim é, esta é a oportunidade de fazer os ajustes necessários no atual texto constitucional, simplificando os referidos tributos, reduzindo a onerosidade do sistema e, principalmente, estabelecendo normas tendentes à realização de justiça fiscal com vistas ao incremento da justiça social, pois este é sem dúvidas o mais grave problema que acomete a sociedade, qual seja o elevado nível de pobreza e miserabilidade e a insegurança alimentar que alcança as famílias que se encontram nestas condições.

É certo que a tributação não vai por si só resolver o problema das desigualdades sociais no Brasil, mas agregada à adoção de políticas públicas de redistribuição de oportunidades, de programas efetivos de transferência de renda, entre outras providências, o problema será certamente mitigado.

É fato que a reforma tributária tem muitos pontos negativos, tais como a agressão ao pacto federativo, pois atribui à União prerrogativa para disciplinar tributos da competência dos Estados e Municípios, por meio de lei complementar nacional — cabendo aos entes federativos, por lei ordinária, apenas fixar as respectivas alíquotas e disciplinar seu processo administrativo ­—, além de conferir ao Conselho Federativo prerrogativa para decidir sobre arrecadação e administração do IBS (imposto que vai unificar o ICMS e o ISS).

Há ainda várias outras inconsistências, entre elas as acanhadas mudanças relativas à justiça fiscal decorrentes da criação de regimes especiais de tributação para setores que prescindem de redução em sua carga tributária.

A renúncia fiscal perpetrada pelo chamado regime específico de tributação poderá gerar comprometimento dos cofres públicos, cujos recursos deveriam ser reservados para custear bens e serviços relacionados à dignidade da pessoa humana e de setores que efetivamente contribuem para o desenvolvimento econômico. Por outro lado, o aludido regime deveria — e não o faz — incentivar a educação desonerando atividades intelectuais, como é o caso das sociedades de profissionais.

Embora a proposta de reforma tributária, de fato, mereça incisivas e abrangentes críticas, há aspectos positivos a serem destacados, como a criação do imposto seletivo e a desoneração de setores e pessoas contemplados com o regime específico de tributação, com especial destaque à tributação de cooperativas.

Em relação ao imposto seletivo, sucedâneo do IPI e inspirado no excise tax e no sin tax, incidente sobre a produção, comercialização e importação de produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, se os seus objetivos forem efetivamente alcançados, preservando a saúde pública e o meio ambiente, a sua cobrança será valida e positiva.

Quanto aos regimes especiais de tributação, cujos termos serão definidos em lei complementar, a depender do que for previsto, como já afirmamos, poderá ser um instrumento efetivo de realização de Justiça Fiscal.

Conforme disposto no projeto de emenda constitucional, estão sujeitos aos regimes específicos de tributação: combustíveis e lubrificantes, serviços financeiros, operações com bens imóveis, planos de assistência à saúde e concursos de prognósticos — podendo a lei complementar prever alterações nas alíquotas, nas regras de creditamento e na base de cálculo —, e operações contratadas pela administração pública direta, por autarquias e por fundações públicas, para as quais será possível a previsão de não incidência da CBS.

Ainda, embora um dos pilares da reforma seja a eliminação de benefícios fiscais, algumas desonerações serão mantidas e disciplinadas pela lei complementar, a exemplo da redução de 60% da alíquota sobre os serviços de educação e saúde; dispositivos médicos e de acessibilidade para pessoas com deficiência; medicamentos e produtos de cuidados básicos à saúde menstrual; serviços de transporte coletivo de passageiros rodoviário, ferroviário e hidroviário, de caráter urbano, semiurbano, metropolitano, intermunicipal e interestadual; produtos agropecuários, aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais in natura; insumos agropecuários e aquícolas; alimentos destinados ao consumo humano; produtos de higiene pessoal; além de produções artísticas, culturais, jornalísticas e audiovisuais nacionais; atividades desportivas; e bens e serviços relacionados à segurança e soberania nacional, segurança da informação e segurança cibernética.

A par das arroladas desonerações terão ainda a alíquota reduzida em 100% para ambos os tributos IBS e CBS, a cesta básica, dispositivos médicos e de acessibilidade, produtos hortícolas, frutas e ovos; e, apenas para a CBS, serviços de educação superior (Prouni) e serviços do setor de eventos até 2027 (Perse).

Há previsão também de isenção ou redução em até 100% das alíquotas para atividades de reabilitação urbana de zonas históricas e de áreas críticas de recuperação e de reconversão urbanística.

Como afirmado merecem destaque as novas regras relativas a tributação das sociedades cooperativas, pois esclarecem qual a dimensão do regime específico a ser a elas aplicado, as quais, em razão da importância que têm para a economia nacional e, principalmente, em face de seus objetivos institucionais, justificam a dispensa de um tratamento tributário favorecido [1].

O cooperativismo se guia por valores como solidariedade, ética, democracia, liberdade, igualdade, entre outros, conforme deflui da interpretação sistemática dos artigos 1º, inciso IV; 3º; 5º, inciso XVIII; 146, inciso III, alínea “c”; 170; 174, §2º, 3º e 4º; e 187 da Constituição.

Em harmonia e coerência com o disposto no artigo 3º do texto constitucional — no qual restou consignado o propósito de construção de uma sociedade livre justa e solidária —, as sociedades cooperativas devem se sujeitar a regimes jurídico-tributários especiais.

Importante destacar que a previsão do “adequado tratamento tributário” ao ato cooperativo foi renovada pelo artigo 146 na reforma tributária e adaptada para indicar sua aplicação aos novos tributos [2].

Ademais, ao lado dos setores já referidos, em complemento à previsão do adequado tratamento tributário a ser dispensado às cooperativas, o projeto de reforma tributária também as inseriu no artigo 156-A, dispondo que serão destinatárias do regime tributário específico, que, para elas, será optativo, o que permitirá escolherem se querem se sujeitar ao regime geral ou ao especial de tributação.

O projeto de emenda constitucional soluciona ainda o questionamento que havia em relação à definição de “adequado tratamento tributário”.

Agora, em redação clara e elucidativa, a PEC/45 prevê que o ato cooperativo, tal qual descrito no artigo 79 da Lei 5.794/71 (Lei das Cooperativas), caracteriza “hipótese de não incidência tributária” [3], portanto, o adequado tratamento tributário consiste na não incidência dos novos tributos sobre o ato cooperativo. Caberá, no entanto, à lei complementar, regulamentar a referida proposição.

Efetivamente, o adequado tratamento tributário é, e sempre foi, uma circunstância de não incidência, já que as atividades desempenhadas sob o “manto” do ato cooperativo não se subsumem às hipóteses de incidência previstas na Constituição Federal, na medida em que não objetivam lucro e, portanto, não revelam capacidade contributiva, como ocorre de rigor com atividades empresariais.

Os atos cooperativos são, assim, destituídos de base de cálculo, o que os afasta do arquétipo constitucional dos tributos, os quais contemplam, ainda que implicitamente, a perspectiva dimensível do critério material das respectivas hipóteses de incidência tributária.

Além dos benefícios próprios do ato cooperativo, outros, previstos para atividades empresarias e pessoas naturais, beneficiarão algumas formas de cooperativas, em especial aquelas dedicadas à atividade agropecuária, que também poderão se valer da não incidência de IPVA sobre aeronaves agrícolas, embarcações destinadas à pesca industrial, artesanal, científica ou de subsistência e, ainda, sobre tratores e máquinas agrícolas; e da não incidência sobre as operações de exportação, sendo assegurado o ressarcimento dos créditos, conforme vier a ser disciplinado por lei complementar.

As cooperativas dedicadas à atividade agropecuária também foram destinatárias de benefícios fiscais, tais como a alíquota zero para os produtos da cesta básica, a serem definidos na lei complementar; redução de 60% sobre produtos e insumos agropecuários e, conforme anteriormente exposto, alimentos destinados ao consumo humano. Ainda, o produtor rural pessoa física ou jurídica com renda anual inferior a 3.6 milhões de reais não estará sujeito à incidência do IVA, podendo, no entanto, optar por ser contribuinte, submetendo-se à regra geral. Merece referência a possibilidade de concessão de crédito presumido ao adquirente de produtos de agricultor não contribuinte, nos termos da lei complementar.

As cooperativas de crédito e operadoras de plano de saúde também poderão se submeter aos regimes específicos de tributação, especialmente em relação aos serviços financeiros e aos planos de assistência à saúde, com alterações nas alíquotas, nas regras de creditamento e na base de cálculo.

Embora a reforma tributária como um todo padeça de mecanismos efetivos de justiça fiscal, em relação ao tratamento tributário dispensado às sociedades cooperativas, a depender do que for regulamentado pela lei complementar, as novas regras são positivas e clarificam problemas de interpretação da norma constitucional que instaram o Poder Judiciário, por muitos anos, a se manifestar sobre o alcance do disposto no artigo 146 do texto constitucional. Esses temas certamente terão que ser revistos.

Em relação às cooperativas, é possível, portanto, concluir que as novas regras incrementam a justiça fiscal e viabilizam a união de esforços para o bem comum nas diversas espécies de sociedades existentes, o que é fruto da união dos cooperados de todos os setores que, guiados quantos aos aspectos técnicos pela Organização das Cooperativas do Brasil, esclareceram aos formadores de opinião e responsáveis pela elaboração do “texto” sobre a importância do ato cooperativo.

[1] Conforme disposto no projeto: Artigo 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. […] §5º Lei complementar disporá sobre:

“[…] V – regimes específicos de tributação para: d) sociedades cooperativas, que será optativo, com vistas a assegurar sua competitividade, observados os princípios da livre concorrência e da isonomia tributária, definindo, inclusive: 1. as hipóteses em que o imposto não incidirá sobre as operações realizadas entre a sociedade cooperativa e seus associados, entre estes e aquela e pelas sociedades cooperativas entre si quando associadas para a consecução dos objetivos sociais; e 2. o regime de aproveitamento do crédito das etapas anteriores;”.

[2] Artigo 146. […] III – […] c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas, inclusive em relação aos tributos previstos nos artigos 156-A e 195, V;

[3] Artigo 79. Denominam-se atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associados, para a consecução dos objetivos sociais.

Betina Treiger Grupenmacher

Advogada, professora de Direito Tributário da UFPR, pós-doutora pela Universidade de Lisboa e doutora pela UFPR​

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