Recintos alfandegados: o que vem a ser o Porto Seco A2?
Por Fernando Pieri
30/09/2025 12:00 am
Aduaneiro
A necessidade de modernização da legislação dos recintos alfandegados em zona secundária é tema de unanimidade. Atualmente, eles são Portos Secos ou Centros Logísticos e Industriais Aduaneiros (Clias). Esse modelo conta com 62 deles, sendo 27 portos secos e 35 Clias [1]. Esses locais são áreas delimitadas em zona secundária, para os quais exportadores e importadores transportam suas cargas, seja para iniciarem um fluxo de exportação via zona primária, nos portos marítimos, aeroportos ou pontos de fronteira terrestre, seja para de lá elas serem transportadas, via regime aduaneiro especial de trânsito aduaneiro, para serem nacionalizadas, ou armazenadas por maior prazo.
A nacionalização em zona secundária, no caso das importações, é uma opção a se promover o despacho de importação em zona primária, onde todos os custos envolvidos são mais elevados. Para tanto, registra-se uma declaração de trânsito aduaneiro (DTA), para transportá-las para um dos sessenta e dois recintos alfandegados em zona secundária. Ao chegar ao recinto, caberá novamente ao importador escolher se promoverá a nacionalização dos bens, com o registro da declaração de importação, ou se promoverá sua armazenagem sob o regime aduaneiro especial de entreposto aduaneiro, que permitirá a sua permanência na área alfandegada por um ano, prorrogável por até três anos (artigos 26 e 27, da IN RFB no 241/02).
Eadis, portos secos e Clias
As áreas que recebem tais cargas em zona secundária já foram, outrora, Estações Aduaneiras de Interior (Eadis), sendo renomeadas em 2002, por ocasião do Decreto no 4.543, de portos secos, denominação utilizada desde então. Em 2006, a União Federal, através da Medida Provisória no 320, tentou implementar os Centros Logísticos e Industriais Aduaneiros, os Clias. A MP, no entanto, não foi convertida em lei. Posteriormente, em 2013, foi feita nova tentativa através da MP no 612. Enquanto esteve em vigor, possibilitou que vários portos secos migrassem para a modalidade do Clia, assim como novas empresas pudessem pleitear e ter seu pedido de funcionamento como Clia deferidos. Após as duas MPs permaneceram mais recintos alfandegados sob o regime do Clia, do que portos secos. Para se chegar a essa realidade, desde 2013, muitos casos foram judicializados e alguns Clias se mantiveram operando com liminares, sob forte incerteza e insegurança, pouco compatível com o tipo de negócio e os investimentos expressivos exigidos. Os modelos de porto seco e Clia apresentam algumas diferenças, dentre elas, destacam-se:
a) vínculo jurídico com a União Federal: para o porto seco iniciar suas atividades é necessária a realização de uma licitação prévia, com estudo de viabilidade e demonstrativo de viabilidade econômica. Com o vencedor do certame celebra-se o contrato de permissão ou concessão. Já no Clia, o vínculo jurídico se estabelece por licença outorgada pela União Federal, através de um processo mais simples e rápido, não obstante também tenham que ser atendidos determinados requisitos;
b) tarifas: enquanto no porto seco elas são controladas pelo poder concedente, nos termos do contrato, nos Clias, a empresa licenciada tem autonomia para fixar o valor, seguindo as regras de mercado, em livre concorrência com os demais recintos alfandegados existentes;
c) prazo: nos contratos de permissão ou concessão, o porto seco tem prazo predeterminado em lei e fixado no contrato; já a licença do Clia é por prazo indeterminado.
Nitidamente, e isso salta aos olhos, seja sob o regime de porto seco, ou de Clia, em ambos é preciso observar as normas aduaneiras de alfandegamento, previstas na Portaria RFB no 143/2022, a fim de que se ofereçam as condições necessárias para aduana exercer o controle físico e documental, de entrada e saída, das mercadorias. Entre outros, os recintos alfandegados têm que investir em estruturas de portaria, cercamento, muros, controle de acesso, sistema CFTV, balança, guindastes, empilhadeiras, scanners, delimitação de suas áreas internas para destinações específicas (cargas em perdimento), no credenciamento de seus colaboradores, sendo, portanto, várias as medidas exigidas para que essa movimentação e armazenagem física das mercadorias se dê sob controle aduaneiro.
Spacca
Reporto
A aquisição de equipamentos modernos capazes de atender às exigências da legislação, assim como permitir sejam prestados bons serviços aos importadores, exportadores, despachantes aduaneiros, transportadores e outros intervenientes envolvidos na cadeia logística, exige das empresas inversões contínuas e relevantes. Não é sem razão que o Regime Tributário para Incentivo à Modernização e à Ampliação da Estrutura Portuária (Reporto) prevê indispensáveis desonerações tributárias para aquisição de máquinas, equipamentos, peças de reposição e outros bens. Somado a isso, há necessidade contínua de adequações das estruturas, de novos controles, inclusive para que os portos secos e Clias sejam reconhecidos e mantenham sua certificação como Operadores Econômicos Autorizados (OEA). Como intervenientes da cadeia logística internacional, em sua maioria, já obtiveram e mantêm tal condição. Isso também lhes exige aportes adicionais aos mencionados, quais sejam de manutenção de equipes capacitadas e treinadas, de controles de acesso, especialmente nas áreas de exportação, nos sistemas de manutenção de imagens e na avaliação contínua de parceiros comerciais.
Insegurança jurídica dos Clias
Lado outro, a duplicidade de regimes jurídicos aplicáveis aos recintos de zona secundária e a ausência de regulamentação adequada aos Clias, há anos gera insegurança jurídica [2], tanto para eles, quanto para os Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (AFRFB) que se vêm questionados sobre temas que, embora mereçam tratamento isonômico, acabam sendo decididos de forma diferente, por se entender que não há normas específicas para os Clias. Exemplos disso não faltam. Veja-se a questão da relocalização do recinto. Não obstante haja previsão normativa específica para os portos secos, no artigo 10, da IN RFB no 2111/22 [3], como aí não se encontra previsão literal de que o dispositivo se aplique também aos Clias, pleitos nesse sentido foram indeferidos, ensejando medidas judiciais diante da ofensa à isonomia, instaurando-se, mais uma vez, insegurança jurídica nesse tema, com prejuízos para as empresas envolvidas.
Outro tópico, sob o mesmo diagnóstico, é a previsão do complexo armazenador nas áreas alfandegadas em zona secundária. Ele se encontra definido na legislação dos portos secos, como sendo estruturas logísticas compostas por áreas integradas destinadas à armazenagem e à movimentação de bens e mercadorias nacionais, nacionalizadas ou sob controle aduaneiro (art.igoº, VI, IN RFB no 2111/22). Por estar previsto em uma norma que não menciona os Clias, quando pretendido por eles, é motivo de dúvidas e negativas por parte da administração aduaneira. Na mesma esteira, as medidas permissivas de trânsito aduaneiro simplificado eram previstas, inicialmente, somente para os portos secos e interpretadas como não aplicáveis aos Clias, o que também ensejou a judicialização do tema. Todos esses tratamentos diferenciados entre portos secos e Clias são injustificáveis e anti-isonômicos. Afinal, ambos estão em posições iguais, com os mesmos ônus e responsabilidades, exercendo as mesmas atividades, não se justificando desigualá-los.
Recentemente, em 22/08/2025, no entanto, rompendo com essa paralisia, foi publicada a IN RFB no 2277, que em seu artigo primeiro enunciou seu conteúdo: “dispõe sobre os requisitos e condições para relocalização, transferência e extinção de licenciamento de Centro Logístico e Industrial Aduaneiro (CLIA)”. Tal medida representa um avanço. Pouco tempo antes de sua publicação, um dos Clias em operação teve sua relocalização autorizada por medida judicial, por não ter logrado êxito ao pleito na via administrativa. A regulação da matéria evitará esse tipo de discussão.
Cenários futuros
Essa novidade normativa veio com um alento para quem está vivendo momentos de atenção, diante das relevantes mudanças nas regras e procedimentos aduaneiros que podem impactar os recintos alfandegados de zona secundária. Podem ser lembradas duas dessas relevantes alterações.
A primeira refere-se a previsão constitucional de fim dos incentivos fiscais oferecidos pelos Estados Membros, quanto ao ICMS-importação. Os Estados brasileiros, em sua maioria, concedem algum tipo de tratamento tributário diferenciado, desde que a liberação das mercadorias ocorra nos recintos alfandegados do seu território. É uma forma de atrair e promover investimentos, estimulando toda a cadeia logística e de prestadores de serviço a ela ligados. Veja-se o caso de importadores situados em MG ou em SC, a título de exemplo. Ambos os estados, como praticamente todos os demais, possuem regimes de tributação favorecido, com a concessão de diferimento do ICMS na liberação dos bens e créditos presumidos na sua industrialização e revenda. Esses benefícios, como dito, são condicionados a que a liberação dos bens se dê nos aeroportos e recintos alfandegados de zona secundária situados no respectivo Estado. Com a reforma tributária e à previsão do fim dos benefícios fiscais (artigo 156-A, §1º, X, CF/88), essa medida de estímulo à utilização dos recintos alfandegados de zona secundária deixará de existir. Naturalmente, surge o temor dos seus impactos na atratividade de se levar as cargas à zona secundária.
Outro tema de atenção para portos secos e Clias diz com a implementação do Novo Processo de Importação (NPI) e da Declaração Única de Importação (Duimp), na medida em que viabilizarão despachos antecipados das mercadorias importadas, como já ocorre no caso das empresas OEA, com o despacho sobre águas. Com as informações chegando com antecedência e sendo possível à aduana promover suas atividades de gestão de risco e controle aduaneiro antes da chegada da carga ao país, os importadores poderão tê-las liberadas com maior agilidade na zona primária e avaliar a utilização da zona secundária.
Porto seco A2
Nesse cenário, no entanto, uma luz está sendo acesa. Está em discussão o projeto de lei para criação do A2 e do A2 – Fronteira Terrestre. O A2 é sigla de Armazém Alfandegado de Zona Secundária e o A2 – Fronteira Terrestre é o recinto alfandegado vinculado a ponto de fronteira terrestre. Nesses locais será permitida, mediante licença administrativa, pelo prazo de 25 anos, renováveis, a exploração das atividades decorrentes da movimentação, armazenagem e despacho aduaneiro sob controle da Aduana brasileira.
Permissionários, concessionários e licenciados atuais (portos secos e Clias) poderão migrar para o novo regime do A2, sem ônus e sem interrupção de suas atividades. Essa regra, se implementada, tende a resolver a insegurança jurídica de recintos alfandegados que estão com seus contratos de permissão prorrogados judicialmente ou estão com sua atividade permitida por liminares.
Os requisitos para obtenção da licença no texto do projeto que circulou são: a pessoa jurídica deve ser proprietária ou possuir direito sobre o imóvel em que vai se situar; possuir patrimônio líquido mínimo de R$ 5 milhões [4]; apresentar regularidade fiscal junto à RFB e PGFN; ausência de sócios condenados por crimes tributários, contrabando, descaminho ou lavagem de dinheiro; obrigatoriedade de adesão ao Domicílio Tributário Eletrônico (DTE), e possuir licença ambiental, quando o caso.
Uma inovação relevante pretendida é a previsão de que o A2, sendo certificado no Programa OEA, poderia prestar serviços adicionais relacionados às cargas a si destinadas, como licenciamento administrativo, consolidação e desconsolidação de carga, contratação de transporte, câmbio e seguros. Poderia ainda importar ou exportar por conta e ordem de terceiros, além de operar os regimes aduaneiros especiais de entreposto aduaneiro e trânsito simplificado. Outra medida inovadora proposta é a possibilidade, para o A2 integrado a um centro de distribuição, de manter em sua área mercadorias já nacionalizadas.
Uma previsão do projeto que poderá trazer maior dinamicidade à exploração de tais atividades e se adequar à realidade das empresas, é a possibilidade de que, mediante requerimento e com autorização prévia da RFB, possa ocorrer a transferência da titularidade da licença, assim como alteração da área alfandegada, ou da localização, do A2. Seria vedado, contudo, pelo texto do projeto, que a transferência de titularidade ocorresse antes de dois anos da data da publicação do ato de alfandegamento do A2. Esse limite não se aplicaria, no entanto, em relação aos atos de migração dos portos secos e Clias já existentes.
A proposta traz uma medida de resguardo para os investimentos realizados pelos portos marítimos e aeroportos. Ela define as imediações de porto organizado e de aeroporto alfandegado como sendo uma área de influência econômica e logística a ser estabelecida pelos Ministérios da Fazenda e dos Portos e Aeroportos, definida a partir de um raio não superior a 100 quilômetros dos limites da poligonal do porto e não superior a 50 quilômetros do aeroporto alfandegado. Nesses casos, o Ministério de Portos e Aeroportos seria ouvido previamente e poderia se opor à assinatura da licença, que nessa hipótese não seria então concedida.
O texto em discussão traz também mudanças no conceito de abandono de mercadorias. Na importação, o abandono seria configurado com 30 dias de inércia em que não ocorresse o início de despacho, falta de atendimento a uma interrupção, ou não seja retirada da carga após sua liberação. Se não houver providências, o depositário poderá importar, exportar, destruir ou alienar a mercadoria. Um ponto que foi ventilado em um dos textos, foi a criação da taxa de fiscalização aduaneira (TFA), que seria cobrada de forma progressiva, conforme o número de conhecimentos de carga processados. A nosso ver, já se vislumbra dúvidas quanto a sua constitucionalidade por não ser um serviço perfeitamente divisível. Além disso, já é cobrada a taxa do Siscomex no registro das declarações de importações e uma nova taxa seria economicamente indesejável.
Em síntese, o projeto, em se tornando lei, criará um novo regime jurídico para recintos alfandegados em zona secundária, conferindo maior segurança jurídica para portos secos e Clias, ampliando a gama de serviços que poderão ser oferecidos por eles. Com os ajustes e calibragens, fruto do debate com o setor privado, a perspectiva em relação à nova legislação é muito positiva, inclusive para atrair novos investimentos, atualmente, represados e reprimidos.
[1] Disponível em: link . Acesso em 26/09/2025.
[2] Nosso primeiro artigo na Coluna, em 21/12/2021, tratou do tema. Disponível em: link .
[3] Estabelece termos e condições para instalação e funcionamento de porto seco. Disponível em: link. Acesso em 26/09/2025
[4] Talvez essa valor pudesse ser majorado para que haja maior robustez nos investimentos envolvidos.
Mini Curriculum
é sócio fundador da HLL & Pieri Advogados, mestre em Direito pela UFMG, pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa, professor de Direito Aduaneiro e Tributário da PUC MG, Vice-presidente da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB, presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG, multiplicador do Programa OEA da Receita Federal, membro de nº 51 e da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.
Continue lendo
Tema 1.035 do STF: sobre os riscos da flexibilização dos critérios para cobrança de taxas
Por João Vitor Janson
Incentivos fiscais e guerra fiscal: o novo papel dos estados na reforma
Por Alessandra Saggese
Carf muda rumo em autuações fiscais de perdas de energia elétrica
Por Maurício Pereira Faro, Thais de Barros Meira, Pamela Cristina Café
Nota Fiscal: o elo principal para a apuração assistida da CBS e do IBS
Por Eduardo Salusse