Receita Federal e a nova era da fiscalização
Por Leonardo Roesler
23/09/2025 12:00 am
Em tempos de desequilíbrio fiscal e pressão sobre as contas públicas, a Receita Federal apresenta um novo plano de ação: a criação de delegacias especializadas para fiscalizar setores econômicos estratégicos e pessoas físicas de elevado patrimônio. Mas por trás de uma proposta que se apresenta como técnica e moderna, revela-se uma intenção clara: ampliar a arrecadação sem enfrentar o custo político de criar novos tributos. O governo federal, pressionado pela expansão dos gastos e pelo compromisso de zerar o déficit primário, busca fontes alternativas para sustentar a máquina pública.
Ao anunciar a criação de delegacias com atuação setorial e nacional, a Receita afirma que a iniciativa promoverá uma fiscalização mais eficiente e tecnicamente apurada. São Paulo, Rio de Janeiro, Manaus, Salvador, Florianópolis, Belo Horizonte e João Pessoa foram as cidades escolhidas para sediar essas novas unidades. O discurso oficial sustenta que a concentração de conhecimento em setores específicos, como petróleo, telecomunicações, fármacos, agronegócio, bebidas e bens de consumo, permitirá uma fiscalização mais justa e efetiva. Mas por trás da retórica está a necessidade de alcançar os grandes contribuintes e os chamados “super-ricos”, um nicho que, se bem explorado, pode representar bilhões em arrecadação.
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Essa movimentação não é isolada nem recente. Ela faz parte de um plano que se arrasta há mais de um ano dentro da Receita, mas que dependia de uma mudança significativa: a transformação das funções gratificadas em funções comissionadas executivas. A medida foi inserida, de forma discreta, em uma medida provisória voltada a substituir os efeitos do decreto que elevava o IOF, mais uma estratégia arrecadatória disfarçada de reorganização fiscal. Estima-se que a reestruturação custará R$ 6,9 milhões em 2025 e R$ 12,9 milhões em 2026. Um investimento alto, mas que pode render muito mais em retorno tributário.
O modelo de especialização não é novidade no mundo. Jurisdições mais desenvolvidas operam com esse tipo de segmentação há décadas. A diferença é que, no Brasil, a motivação surge em um momento de urgência. A necessidade de reforçar o caixa não decorre de uma escolha estratégica de longo prazo, mas de uma resposta imediata ao cenário fiscal preocupante. A reforma tributária ainda não trouxe resultados práticos, e, enquanto isso, a União vê na fiscalização um instrumento eficaz para suprir o déficit.
Se por um lado a especialização traz ganhos técnicos, por outro acende um alerta. O risco de um cerco fiscal mais agressivo é real, principalmente diante da alta concentração de riqueza e da complexidade das estruturas empresariais no país. A narrativa de eficiência pode esconder uma intensificação de autuações e litígios. A promessa de diálogo pode se diluir na ânsia arrecadatória.
O contribuinte, sobretudo o de grande porte, precisa compreender o novo ambiente regulatório. Estamos diante de um novo ciclo de atuação da Receita, onde a inteligência fiscal será combinada à segmentação técnica. Isso exige revisão de estruturas societárias, reforço na governança tributária e uma atuação preventiva cada vez mais sofisticada. A omissão ou a desorganização fiscal pode custar caro.
Mas há um ponto que não pode ser ignorado: arrecadar mais não significa arrecadar melhor. O aumento da receita tributária precisa vir acompanhado de responsabilidade com o gasto público, de transparência e de compromisso com o equilíbrio entre Estado e sociedade. Se o contribuinte será mais exigido, o Estado também precisa entregar mais serviços, estabilidade e previsibilidade jurídica.
No fundo, estamos diante de uma inflexão política. A Receita não age apenas como órgão técnico, mas como instrumento de política econômica. O timing da proposta, as escolhas dos setores e a concentração de esforços em determinados segmentos demonstram uma diretriz: buscar o recurso onde ele está mais visível e acessível nos grandes patrimônios, nas cadeias de valor elevadas, nos setores que, mesmo sob forte carga tributária, ainda preservam margem operacional significativa.
Essa nova abordagem gera efeitos indiretos relevantes. As empresas serão levadas a investir mais em planejamento, controle e auditoria interna. O contribuinte de alto patrimônio, muitas vezes negligente com formalidades, passará a ser foco de uma fiscalização tecnicamente especializada. Isso não é trivial. Representa uma mudança no eixo de atenção do Estado, antes disperso, agora orientado por inteligência de dados, cruzamento de informações e foco em resultados imediatos.
Portanto, é necessário olhar com atenção para as mudanças propostas pela Receita Federal. A criação de delegacias especializadas é, sim, um avanço técnico. Mas é também, e sobretudo, uma estratégia clara de aumento de arrecadação em um momento em que o governo precisa mostrar resultados. Ao contribuinte, cabe estar preparado, investir em planejamento tributário e adotar uma postura ativa diante das novas exigências. Porque, em tempos de escassez fiscal, a lupa do Estado se volta, com mais intensidade, para quem mais pode contribuir. Mas para que haja justiça tributária, o governo também precisa demonstrar equilíbrio na condução da política fiscal, respeitando o contribuinte que cumpre suas obrigações e exigindo apenas o que é devido por lei.
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sócio do RCA Advogados, especialista em Direito Tributário
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