Políticas públicas e instrumentos de fomento à inovação portuária
Por Eduardo Ariente, Alexandre Euzebio, Leonardo Branco
26/08/2025 12:00 am
Na coluna anterior, analisamos a evolução regulatória do setor portuário, da gestão estatal centralizada a um modelo mais competitivo e aberto à inovação. A legislação das décadas de 1990 e 2010, ao ampliar a participação privada e redefinir o papel das autoridades portuárias, criou condições favoráveis ao surgimento de ecossistemas inovadores.
Claudio Neves/Portos do Paranáporto portuários trabalhadores
Agora, o foco recai sobre os instrumentos de fomento disponíveis para impulsionar a inovação portuária. O objetivo é mostrar como incentivos tributários, crédito público, mecanismos regulatórios e cláusulas contratuais podem ser articulados em uma estratégia integrada que fortaleça a autonomia tecnológica, reduza a dependência externa e amplie a competitividade.
Ao deslocar o foco do panorama histórico-regulatório para os instrumentos jurídicos e econômicos específicos, pretende-se avaliar em que medida o Brasil dispõe de um arcabouço normativo e institucional sólido para sustentar uma política consistente de modernização portuária, alinhada às exigências globais de eficiência, sustentabilidade e segurança.
Medidas de incentivo atuais
Atualmente, o Brasil dispõe de um conjunto expressivo de políticas públicas que podem estimular o desenvolvimento de tecnologias portuárias. Entre os (i) incentivos tributários, destacam-se a Lei do Bem, a Lei da Informática, o Programa Mover e o Regime Tributário para Incentivo à Modernização e à Ampliação da Estrutura Portuária (Reporto), prorrogado até 2028, que suspende tributos sobre aquisição de equipamentos, facilitando a renovação de ativos.
Apesar de sua relevância, o Reporto foi objeto de críticas por sua lógica fragmentada e reativa, sem conexão com uma política industrial ou tecnológica de longo prazo e pelo debate em torno da retroatividade de seus efeitos. Isolado, torna-se mera renúncia fiscal sem garantir inovação estrutural. Como já advertimos em outras oportunidades, benefícios dispersos dificilmente se traduzem em ganhos sistêmicos se não estiverem inseridos em um projeto nacional consistente de infraestrutura e desenvolvimento.
No campo do (ii) financiamento, existem créditos reembolsáveis e não reembolsáveis oferecidos pela FinepP, BNDES, Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs) e Embrapii. Também há mecanismos de (iii) compras públicas de inovação, como Encomendas Tecnológicas, Contratação Pública de Solução Inovadora (CPSI) e a aplicação de Margens de Preferência para fabricantes nacionais em licitações.
Complementarmente, quanto: à (iv) cooperação institucional, a Lei de Inovação autoriza convênios entre órgãos públicos, empresas e universidades para P&D, prestação de serviços técnicos e compartilhamento de infraestrutura e recursos humanos; aos (v) ambientes promotores de inovação, a mesma legislação prevê a criação de Alianças Estratégicas, incentivo ao empreendedorismo e fortalecimento de parques tecnológicos, incubadoras e cidades inteligentes; e quanto à (vi) assistência técnica especializada, os programas do Sebrae e do Senai oferecem mentorias, serviços técnicos e acesso a laboratórios para testes e validações.
No âmbito contratual, destacam-se ainda: (vii) cláusulas de investimento obrigatório em P&D, a serem inseridas em contratos de concessão e permissão de terminais portuários, à semelhança de setores como energia e eletricidade; e (viii) cláusulas de compensação comercial (offset), aplicáveis a contratos de aquisição de maquinário de alto valor, obrigando fornecedores estrangeiros a transferir tecnologia ou produzir parte dos equipamentos no Brasil, como já ocorre no setor de Defesa, e.g. no caso da aquisição de caças pelo governo brasileiro junto a uma fabricante sueca que previa transferência de conhecimento à Embraer e produção parcial em território nacional (Ipea, 2019).
Estratégias internacionais
Em 2024, os Estados Unidos anunciaram um investimento de US$ 20 bilhões para retomar, após três décadas, a produção doméstica de guindastes ship-to-shore gantry crane (STS), essenciais às operações portuárias. A iniciativa busca reduzir a dependência de fornecedores externos, hoje dominada por fabricantes chineses, e integrar política industrial e de defesa, reforçando a autonomia tecnológica e a segurança da cadeia logística.
Aplicado ao setor portuário, esse tipo de estratégia poderia acelerar o amadurecimento tecnológico e reduzir a dependência de equipamentos e sistemas importados de alto valor. Afinal, inovação não se limita à aquisição de novas máquinas, mas envolve também a capacidade de criar, adaptar e customizar soluções conforme as necessidades organizacionais.
Primeiro sandbox regulatório portuário
No campo regulatório, destaca-se o sandbox regulatório, mecanismo que permite que empresas testem inovações em um ambiente controlado, com supervisão do órgão público responsável (Antaq, no contexto portuário, e ANTT, nos transportes). Nele, empresas credenciadas podem testar inovações sem o risco de punição por descumprimento de normas infralegais, desde que respeitadas regras previamente estabelecidas. O objetivo é permitir testes controlados que apoiem a modernização das normas e a adoção de soluções inovadoras (Ariente, 2025).
Em 18/08/2025, a Antaq aprovou seu primeiro sandbox regulatório portuário, no âmbito do projeto “Outorga Verde”. A iniciativa permitirá que áreas ociosas em portos públicos sejam temporariamente concedidas para projetos sustentáveis, como geração de energia limpa, descarbonização e uso de tecnologias inovadoras de baixo impacto ambiental. Segundo a Agência, a medida busca reduzir a burocracia, ampliar a segurança jurídica e atrair investimentos verdes, alinhando a regulação portuária brasileira às tendências globais de transição energética e logística sustentável (Antaq, 2025).
Políticas institucionais e papel das autoridades portuárias
Neste contexto, as Autoridades Portuárias podem avançar no desenvolvimento de objetivos, estratégias e políticas internas de inovação, consolidando uma cultura organizacional alinhada às oportunidades previstas na Lei de Inovação. Essas políticas podem disciplinar temas como gestão da propriedade intelectual, critérios para aprovação de convênios com ICTs e empresas, participação em ambientes promotores de inovação (parques tecnológicos e incubadoras), incentivo ao empreendedorismo (fundos de investimento, capital social, compartilhamento de laboratórios) e a institucionalização de Núcleos de Inovação Tecnológica (NITs).
A criação de uma Instituição de Ciência, Tecnologia e Inovação (ICT) pelos portos ampliaria ainda mais essas possibilidades, podendo captar recursos federais (via Finep), firmar Alianças Estratégicas (AEs) e prestar serviços técnicos com dispensa de licitação. Além disso, desempenharia papel central na profissionalização da gestão da propriedade intelectual, incluindo negociação e transferência de tecnologias, precificação de ativos, ofertas ativas a potenciais interessados e repasse de royalties a inventores. O NIT poderia coordenar iniciativas de empreendedorismo e integrar incubadoras e parques tecnológicos aos portos, aproximando pesquisa aplicada de seus desafios logísticos.
Atentos a essa nova realidade, alguns portos e autoridades do setor vêm implementando iniciativas para tornar a inovação parte estruturante de suas atividades:
Porto do Itaqui (Emap — Programa Porto do Futuro) (aqui e aqui)
Política de Inovação que busca transformar o porto em polo de conhecimento e tecnologia, em parceria com universidades, startups e órgãos de fomento. O programa organiza projetos em eixos como formação de capital humano, apoio à pesquisa aplicada, residência portuária e capacitação tecnológica, com foco em sustentabilidade, eficiência operacional e impacto socioeconômico regional.
Caravanas da Inovação Portuária (2025) (aqui)
Programa do MPOR em parceria com a Antq e o Hub Brasil Export, percorre seis portos brasileiros promovendo cultura de inovação, PD&I e fortalecimento institucional. Na edição de Salvador (maio/2025), reuniu representantes do setor para debater soluções de eficiência e sustentabilidade.
Política Nacional de Sustentabilidade (2025) (aqui)
Lançada pelo Ministério de Portos e Aeroportos, estabelece uma Agenda Anual para o setor público e o Pacto pela Sustentabilidade para o setor privado, estimulando práticas ESG, transparência e inclusão social.
Manifesto pela Inovação (2024) (aqui)
Documento lançado por Hidrovias do Brasil, Porto do Açu e Wilson Sons, que aponta quatro desafios estruturais do setor (baixa articulação, pouco incentivo ao risco, falta de planejamento estratégico e processos de contratação defasados) e propõe medidas em prol da modernização.
Norma da Autoridade Portuária (NAP Inovação — Porto de Santos) (aqui)
Publicada em setembro de 2023 pela Autoridade Portuária de Santos (APS), estabelece regras para parcerias com desenvolvedores, instituições de pesquisa e startups na criação de novos serviços e produtos. A medida integra a agenda de digitalização iniciada em 2019 e direciona o porto para o modelo de Porto 4.0. Seu objetivo é racionalizar investimentos, compartilhar soluções tecnológicas e ampliar a eficiência operacional, sob coordenação do recém-criado Comitê de Inovação da APS.
Inova Portos (aqui)
Criado em 2022 pela Portos do Paraná em parceria com a Antaq e o Ministério de Portos e Aeroportos, tornou-se o maior evento nacional dedicado à inovação portuária. Desde então, já foi realizado em diferentes portos (Itaqui, Santos, Itajaí e Paranaguá), sob gestão das respectivas autoridades e com apoio de governos estaduais, Universidades e startups. O evento reúne lideranças do setor, empresas, pesquisadores e estudantes para debater transformação digital, inteligência artificial, sustentabilidade e integração com ecossistemas de inovação, fortalecendo o diálogo entre atores públicos e privados na modernização da logística portuária.
Grupo de Trabalho de Políticas de Inovação (2025) (aqui)
Constituído em 2025 pela Geplo (Gerência de Planejamento Logístico da APS), com apoio técnico da Fundação Centro de Excelência Portuária (Cenep), o GT tem como missão identificar diretrizes e boas práticas para a política de inovação da APS, dialogando com especialistas do setor. Atua no contexto de dois programas estratégicos: o Programa de Inovação Aberta, que fomenta cooperação entre empresas, pesquisadores e instituições de ensino para acelerar a transformação digital; e o Programa de Incentivo à Pesquisa Aplicada, que oferece até 70 bolsas de pesquisa por 24 meses em áreas como logística, sustentabilidade e segurança portuária, garantindo acesso direto ao ambiente do porto e suporte acadêmico especializado.
Cultura de inovação perene
Essas experiências mostram que políticas internas bem estruturadas consolidam uma cultura de inovação estável, preservando avanços institucionais ao longo do tempo e de diferentes gestões. Como já analisado nesta coluna ao tratar da “BR do Mar”, incentivos isolados tendem a ter efeitos limitados quando não articulados a um projeto nacional consistente de infraestrutura e desenvolvimento (aqui).
As inovações podem surgir tanto da prática cotidiana quanto da pesquisa acadêmica; por isso, é essencial estimular a criatividade em todos os níveis. A legislação já permite conceder benefícios salariais adicionais (de 5% a ⅓ do valor obtido em caso de licenciamento), mecanismo que poderia ser incorporado pelas autoridades portuárias como incentivo aos melhoramentos contínuos.
A divulgação prévia dessas políticas, por sua vez, reforça a segurança dos gestores diante de órgãos de controle e favorece decisões mais ousadas em investimentos e projetos estratégicos. A busca constante por melhorias, além de proteger contra a obsolescência, cria uma dinâmica competitiva que impede os portos brasileiros de perder espaço para concorrentes nacionais e internacionais
Lições para o futuro
À luz desses exemplos e das experiências já em curso, é possível extrair algumas lições e recomendações gerais para fortalecer a inovação portuária no Brasil.
A competitividade comercial de qualquer país, seja na exportação de commodities, seja na de produtos de maior valor agregado, depende de uma infraestrutura portuária moderna e eficiente. Quando os portos são ineficientes, os custos aumentam para consumidores e empresas, prazos se alongam, a resiliência frente a choques ambientais diminui e o desenvolvimento econômico e social é retardado.
Por isso, o uso efetivo dos instrumentos jurídicos e econômicos disponíveis deve ser visto como indispensável para os terminais públicos e privados brasileiros. ecursos não reembolsáveis, assistência técnica e cooperação com universidades e empresas. Contudo, embora o setor portuário dialogue com missões da política industrial (transformação digital, bioeconomia e defesa), resta avaliar se os editais e programas contemplam adequadamente as especificidades do setor.
Cabe também às Autoridades Portuárias e órgãos reguladores reforçar sua atuação, incorporando cláusulas de investimento em P&D e compensação tecnológica (offset) nos contratos, além de políticas internas de inovação, propriedade intelectual, compras públicas e incentivo ao empreendedorismo. Essas medidas podem agilizar convênios, fortalecer práticas de inovação aberta e ampliar a cooperação com universidades, startups, órgãos governamentais e associações do setor.
Por fim, a adoção de sandboxes regulatórios desponta como importante ferramenta para testar soluções inovadoras em ambiente controlado e acelerar a modernização normativa. Somada à inclusão de cláusulas contratuais que assegurem investimentos em tecnologia e eficiência logística, essa agenda pode posicionar os portos brasileiros de forma mais competitiva e reduzir a dependência de soluções estrangeiras em um setor vital para a soberania e o desenvolvimento nacional.
A necessidade de integração entre instrumentos de fomento e políticas setoriais não é inédita. Como já observamos nesta coluna, medidas isoladas, ainda que bem-intencionadas, tendem a produzir efeitos limitados quando não articuladas a um projeto nacional consistente de infraestrutura e desenvolvimento.
Conclusão
Consolidar uma política portuária de inovação exige mais do que programas pontuais: requer o uso coordenado dos instrumentos jurídicos e econômicos já disponíveis, associado a cláusulas contratuais de P&D e mecanismos regulatórios modernos. A recente iniciativa da Antaq, com o sandbox da “Outorga Verde”, mostra que a regulação pode ir além da mera fiscalização e se tornar indutora de projetos sustentáveis e de investimentos estratégicos.
Se integradas a uma agenda consistente de competitividade, sustentabilidade e soberania tecnológica, essas medidas têm potencial para transformar os portos brasileiros de gargalos logísticos em vetores de desenvolvimento nacional.
Mini Curriculum
Eduardo Ariente
é doutor e mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), advogado em São Paulo, professor da Faculdade de Direito e Coordenador do Núcleo de Inovação Tecnológica (NIT) da Universidade Presbiteriana Mackenzie, líder do Grupo de Pesquisa cadastrado no CNPQ Direito e Inovação (GEDI), autor da obra Curso de Direito da Inovação pela Editora RT (2025), revisor de artigos do International Review of Intellectual Property and Competition Law, do Max Planck Institute for Innovation and Competition e pesquisador do Núcleo Jurídico do Observatório da Inovação e Competitividade (NJ-OIC) do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.
Alexandre Euzebio
é doutorando em Engenharia Elétrica na área de Sistemas de Potência com Ênfase em Automação Portuária pela Escola Politécnica da USP, mestre em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para Inovação, Profnit/UFSC, MBA em Master Management pela Institute D’administration des Entreprises (França), MBA em Gestão de Negócios, Comércio e Operações Internacionais pela FIA 2008, engenheiro mecatrônico, diretor de Ensino, Pesquisa e Extensão da Fundação Centro de Excelência Portuária de Santos, diretor de Ciência, Tecnologia e Inovação na Associação de Engenheiros e Arquitetos de Santos, project management professional pelo Project Management Institute, professor convidado da FIA no MBA em Gestão de Negócios, Comércio e Operações Internacionais, professor convidado da Universidade Católica de Santos no MBA em Gestão Portuária; Mentor na Sinova UFSC, mentor na InovAtiva MDIC (2024-2025), conselheiro Fórum Nacional de Gestores de Transferência de Tecnologia para Inovação, conselheiro-suplente do Condesb Baixada Santista, co-lead do Tech Brazil Advocates e conselheiro do Parque Tecnológico de Santos.
Leonardo Branco
é professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), pós-doutorando, doutor, mestre e especialista pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), com estágio doutoral pela Westfälische Wilhelms-Universität (WWU), presidente do Instituto de Pesquisas em Direito Aduaneiro (IPDA) e da Comissão de Estudos em Direito Aduaneiro do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), membro do Conselho Deliberativo da Associação Paulista de Estudos Tributários (Apet), ex-conselheiro titular e vice-presidente de Turma no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e sócio do Daniel, Diniz & Branco Advocacia Tributária e Aduaneira (DDTax).
Continue lendo
Constituição do crédito tributário no executivo fiscal e o contraditório
Por Débora Maria Teixeira Augusto Grandmasson
Contencioso do IVA-Dual: entre unificação possível e caos institucional
Por Andrea Hitelman
Carf reacende debate sobre tributação na distribuição de dividendos
Por Adauto Lúcio S. Dutra
Crédito presumido na cadeia do agronegócio para IBS/CBS (parte 1)
Por Fábio Pallaretti Calcini
Aspectos gerais da reforma tributária: EC 132/2023 e LCP 214/2025
Por Fernando Capez, Suiane Aparecida Coelho Pinto