PL nº 1.087/2025 – “Estoque” de lucros nunca deveria ser tributado pela nova lei
Por Diego Miguita
11/11/2025 3:53 am
“Se queres prever o futuro, estuda o passado” (Confúcio). A tributação da distribuição de lucros e dividendos, veiculada pelo PL nº 1.087/2025, aprovado ontem pelo Senado Federal, carrega consigo inconstitucionalidade/ilegalidade e incompatibilidade com o CTN camufladas de benesse: desde que os lucros e dividendos em “estoque” sejam deliberados até 31 de dezembro de 2025, permanecerão isentos de imposto de renda (há variação conforme o beneficiário seja pessoa física residente no Brasil – cujo pagamento, crédito, entrega ou emprego pode ocorrer até 2028 – ou residente/domiciliado no exterior, cujo pagamento deve ocorrer até 31 de dezembro de 2025).
Sem entrar no mérito sobre outras iniquidades e inconsistências do PL como um todo, o ponto central dessa breve reflexão é o seguinte: é indiscutível que lucros e dividendos decorrentes de resultados apurados entre 1º de janeiro de 1996 e 31 de dezembro de 2025 não podem se submeter à tributação pelo IR quando do seu pagamento, crédito, emprego ou remessa prevista na lei que decorrerá da conversão do PL nº 1.087/2025.
Indo direto ao ponto: pouco importa a utilização – ultimamente, bastante usual – de mecanismos de opção de regime de transição como tentativa de esfumaçar inconstitucionalidades ou superar previsões legais claras que não poderiam ser superadas pelo peso de uma caneta. O histórico de tributação de lucros e dividendos no Brasil é longo, e passa por diversas particularidades conforme a sistemática de apuração da pessoa jurídica, o seu tipo societário e o beneficiário. De todo modo, seria possível dizer que, em 1993, foi instituída isenção mais ampla para a distribuição de lucros e dividendos, superando a discussão sobre a (in)constitucionalidade do ILL, nos termos do artigo 75 da Lei nº 8.383/1991:
Art. 75. Sobre os lucros apurados a partir de 1° de janeiro de 1993 não incidirá o imposto de renda na fonte sobre o lucro líquido, de que trata o art. 35 da Lei n° 7.713, de 1988, permanecendo em vigor a não-incidência do imposto sobre o que for distribuído a pessoas físicas ou jurídicas, residentes ou domiciliadas no País.
Em seguida, o artigo 2º da Lei nº 8.849/1994 previu que “os dividendos, bonificações em dinheiro, lucros e outros interesses, quando pagos ou creditados a pessoas físicas ou jurídicas, residentes ou domiciliadas no País, estão sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte à alíquota de quinze por cento”. Destaque para o “quando”: o referencial que importa é a formação do resultado, e não o momento (quando) em que pago ou creditado na forma de lucro ou dividendo.
Retomando: surgiu à época dúvida, tal como suscita o PL nº 1.087/2025, sobre o tratamento a ser conferido aos lucros formados a partir de 1º de janeiro de 1993: afinal, como visto, eram isentos. Eis que o artigo 1º da Lei nº 9.064/1995 esclareceu que “o disposto no art. 2º da Lei nº 8.849, de 28 de janeiro de 1994, somente se aplica aos dividendos, bonificações em dinheiro, lucros e outros interesses, apurados a partir de 1º de janeiro de 1994, pagos ou creditados por pessoa jurídica tributada com base no lucro real a sócios ou acionistas, pessoas físicas ou jurídicas, residentes ou domiciliadas no País.”.
Nada mais evidente. A tributação da renda sempre recai sobre a pessoa física. Pessoa jurídica é uma ficção. Quem assume o ônus é sempre o CPF, não o CNPJ. Por isso mesmo, os mecanismos de integração entre tributação da PJ e da PF são tão relevantes. E, nesse contexto, as regras de tributação aplicáveis à formação do lucro da pessoa jurídica estão intrinsecamente relacionadas à sua distribuição.
Pragmaticamente, basta supor que, se a alíquota conjugada de IRPJ e CSLL fosse 40% em 2010, de modo que o lucro desse ano (2010) tenha se submetido às regras de IRPJ e CSLL vigentes à época, e a reserva de lucro referente a 2010 fosse distribuída em 2026, estaria sujeita ao IRRF de 10%: uma tributação conjugada, assimétrica, legal e temporalmente incompatíveis – não há quem sustente que, naquele período de formação, a intenção do legislador fosse uma tributação conjugada de 50% entre PJ/PF, sem qualquer crédito ou outro mecanismo de alívio.
Não há política fiscal de integração entre PF e PJ que comporte aplicação de direito intertemporal tão esdrúxula: ainda mais quando se nota que, no intervalo entre a isenção e a retomada de tributação de lucros e dividendos, a própria sistemática de apuração do lucro real passou por profunda alteração com a adoção das IFRS e a sua respectiva disciplina tributária pela Lei nº 12.973/2014. Não é por outra razão que o Ato Declaratório Normativo COSIT nº 49/1994 esclareceu o seguinte:
Declara, em caráter normativo às Superintendências Regionais da Receita Federal e aos demais interessados, que:
I – os dividendos, bonificações em dinheiro, lucros e outros interesses, oriundos de lucros apurados, até 31 de dezembro de 1993, por pessoas jurídicas tributadas combase no lucro real submetem-se às normas de incidência aplicáveis à êpoca da formação dos lucros;
II – o disposto no item anterior aplica-se também aos lucros e dividendos redistribuídos por pessoas jurídicas, auferidos em decorrência de participação societária em outra pessoa jurídica, que os tenha apurado até 31 de dezembro de 1993;
III – em qualquer hipótese, será considerada êpoca de formação dos lucros aquela constante dos registros da primeira pessoa jurídica que os tenha apurado.
Observe-se que o período de formação de lucro foi considerado o aspecto relevante para a isenção, assim como a legislação já previa, isto é, não assumia qualquer relevância a data do pagamento ou crédito dos lucros ou dividendos.
Em seguida, a partir de 1º de janeiro de 1996, o artigo 10 da Lei nº 9.249/1995 estabeleceu a isenção até então em vigor, deixando claro que somente se aplica a “resultados apurados a partir do mês de janeiro de 1996”. Sempre houve a necessidade de controle da distribuição de lucros e dividendos apurados antes de 1996 – exceto para os períodos abrangidos por isenção – justamente porque o período de formação é o marco temporal relevante, e não o pagamento ou crédito (e demais figuras alternativas incluídas pelo PL nº 1.087/2025).
Uma forma mais simples de ler a regra isentiva é a seguinte: o resultado formado a partir de 1º de janeiro de 1996, quando pago ou creditado na forma de lucros ou dividendos, está isento de IR. Por isso, ainda que pago em 2026, 2027 ou qualquer ano subsequente, deveria ser preservada a isenção.
Quer se dizer com isso que as regras de transição do referido PL servem, quando muito, à teoria dos jogos ou, num português mais claro, um convite a não submissão ao sabor lotérico do Poder Judiciário: vale mais a pena adotar estratégias sofisticadas, complexas e custosas ou apostar numa disputa sobre inconstitucionalidade/ilegalidade que, conquanto clara, absolutamente incerta?
As legislações mais recentes têm se valido da insegurança jurídica e do apelo ao custo de oportunidade: vide, por exemplo, as regras de transição de rendimentos acumulados de em fundos de investimentos prevista na Lei nº 14.754/2023, ou, indo um pouco mais longe no tempo, a adoção inicial facultativa da Lei nº 12.973/2014.
Embora a tendência da pragmática tenha sido buscar soluções que acomodem cenários dentro das regras de transição, é comum que as complexidades subjacentes criem obstáculos que não permitirão o seu pleno atendimento: seja como for, as regras de transição são quase como uma solução amigável proposta unilateralmente pelo Governo, porque, baseado no histórico-evolutivo da legislação tributária, a sua interpretação finalística e sistemática, assim como manifestações das autoridades fiscais em situações semelhantes, é difícil sustentar que é válida a tributação de estoque de lucros formados até 31 de dezembro de 2025.
Mini Curriculum
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica PUC/SP. MBA em Gestão Tributária pela FIPECAFI. Mestre em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo.
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