Pá de cal no ‘jeitinho brasileiro’: STJ consolida impossibilidade de substituir CDA para alterar fundamento legal

Por Thiago Conhasca

17/11/2025 12:00 am

A 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça decidiu por unanimidade, em outubro de 2025, que a Fazenda Pública não pode substituir a certidão de dívida ativa (CDA) para incluir, complementar ou modificar o fundamento legal do crédito tributário durante a execução fiscal. A tese fixada no Tema 1.350 dos recursos repetitivos (REsp 2.194.708/SC e conexos) põe uma pá de cal em prática que se consolidava em alguns tribunais estaduais: o “jeitinho brasileiro” a serviço da administração pública, travestido de interesse público e legitimado por argumentos sedutores de eficiência arrecadatória.

O julgamento encerra divergência jurisprudencial que permitia às Fazendas Públicas “corrigir” no Judiciário aquilo que deveria ter sido feito corretamente na esfera administrativa. A decisão consolida que o fundamento legal não é mero dado periférico corrigível a qualquer tempo, mas elemento nuclear que define a própria natureza da exação e integra o ato de constituição do crédito tributário.

Para a Fazenda Pública, o recado é inequívoco: vícios substantivos na inscrição em dívida ativa devem ser corrigidos na esfera administrativa, com novo lançamento e observância do contraditório. Para contribuintes, a tese inviabiliza definitivamente a prática de “aperfeiçoamento” progressivo da CDA durante o curso da execução fiscal, impedindo que o processo judicial se transforme em laboratório de correção de deficiências do aparato fazendário.

A distinção entre erro formal e vício substancial
O cerne da decisão do ministro Gurgel de Faria reside na diferença qualitativa entre corrigir erros formais ou materiais (dados cadastrais, digitação, cálculos aritméticos) e alterar o fundamento legal do crédito tributário. Esta segunda hipótese não configura mero erro formal sujeito à Súmula 392/STJ, mas vício substancial que contamina o próprio ato de constituição do crédito.

A fundamentação assenta-se na natureza jurídica da inscrição em dívida ativa como ato de controle administrativo da legalidade do crédito, conforme estabelece o artigo 2º, §3º, da Lei 6.830/1980. Por consequência, a certidão de dívida ativa, como espelho fiel dessa inscrição (artigo 2º, §6º da LEF), não pode apresentar elementos que divirjam do termo de inscrição original. Quando há deficiência na indicação do fundamento legal, o vício não reside apenas na certidão, mas no próprio ato administrativo subjacente.

O tribunal distinguiu com precisão cirúrgica: a substituição da CDA permanece possível para correção de CPF, CNPJ, endereços, valores identificáveis por simples cálculo aritmético e outros ajustes que não atinjam os elementos essenciais do lançamento tributário. Exemplos práticos: a correção de um dígito errado no CPF do devedor, a atualização de endereço para fins de citação, ou a retificação de cálculo de juros e correção monetária.

O que se veda categoricamente é utilizar o processo judicial como oportunidade para suprir deficiências do procedimento administrativo de constituição do crédito. Permitir tal prática transformaria a execução fiscal, que deve ser processo de satisfação de crédito previamente constituído, em verdadeiro processo de conhecimento travestido. Nas palavras do acórdão, a execução fiscal não pode servir como “laboratório de aperfeiçoamento” do lançamento tributário.

A divergência jurisprudencial: o “jeitinho” legitimado pelo interesse público
O conflito que levou à afetação do Tema 1.350 tinha contornos bem definidos e revelava, no fundo, um embate entre dois modelos de atuação estatal. De um lado, o STJ mantinha desde 2009 uma linha restritiva consolidada na Súmula 392 e no Tema Repetitivo 166, vedando alterações que não fossem meramente formais.

Essa jurisprudência havia estabelecido que não se pode corrigir, na certidão de dívida ativa, vícios do lançamento ou da inscrição, sendo exemplo paradigmático a ausência ou incorreção do fundamento legal.

Do outro lado, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por meio do IRDR Tema 24 julgado em outubro de 2021, firmou tese que legitimava verdadeiro “jeitinho brasileiro” fazendário: seria possível incluir, retificar ou complementar os fundamentos jurídicos atrelados ao fato gerador, desde que este não fosse alterado e não houvesse prejuízo à defesa. O tribunal catarinense fundamentou sua posição em princípios de instrumentalidade das formas, economia processual e, especialmente, no status peculiar da Fazenda Pública como representante do interesse público arrecadatório.

O argumento subjacente era claro: como a Fazenda atua em nome do interesse coletivo, seria desproporcional extinguir execuções fiscais por vícios corrigíveis, ainda que tais vícios decorressem de deficiências do próprio aparato administrativo estatal.

Os três recursos especiais selecionados como paradigmas ilustram a natureza das “correções” que se pretendia legitimar: CDAs de IPTU com fundamentação genérica (apenas citando “Código Tributário Municipal” sem especificar artigos aplicáveis), CDAs com contradição flagrante entre o tributo cobrado e a legislação indicada (cobrança de ISS fundamentada em dispositivos legais de IPTU), e ausência completa de números de processos administrativos que teriam dado origem ao crédito. O TJ-SC permitia a correção desses vícios por simples substituição da CDA, o STJ, decisivamente, rechaçou essa possibilidade.

A posição do tribunal catarinense revelava o núcleo perverso desse “jeitinho” travestido de interesse público: transfere-se ao Poder Judiciário e ao contribuinte o ônus de deficiências do aparato administrativo fazendário. A ideia de que não se deve extinguir execuções fiscais “sem prévia concessão de prazo ao exequente para adequação do título” e que “entre as possibilidades de ajuste” estariam as modificações de fundamentação legal transformava o processo judicial em válvula de escape para a ineficiência administrativa.

Esse raciocínio, embora seduzido pela eficiência arrecadatória de curto prazo, confunde os planos do direito material (lançamento tributário) e do direito processual (título executivo), permitindo que deficiências estruturais do primeiro fossem sistematicamente corrigidas no segundo.

Fundamentação normativa e constitucional
A base normativa é sólida. Os artigos 783 e 803, I, do CPC/2015 estabelecem que a execução deve fundar-se em título de obrigação certa, líquida e exigível, sendo nula a execução cujo título não corresponda a tais requisitos. A ausência de fundamento legal compromete a certeza do título.

No direito tributário, o artigo 202, III, do CTN exige que o termo de inscrição indique obrigatoriamente “a origem e natureza do crédito, mencionada especificamente a disposição da lei em que seja fundado”. A Lei 6.830/1980 replica esse comando (artigo 2º, §5º, III). Embora o artigo 203 do CTN e artigo 2º, §8º da LEF prevejam emenda até a decisão de primeira instância, o STJ sempre interpretou restritivamente, limitando a erros que não contaminem a constituição do crédito.

O Parecer SEI 15695/2022/ME da PGFN reconheceu expressamente a jurisprudência contrária à Fazenda, concluindo pela impossibilidade de substituição diante de erro substancial. A própria PGFN já admitia a improcedência da tese favorável à substituição ampla.

Os princípios do contraditório e ampla defesa (artigo 5º, LV, CF/88) são centrais. Sem conhecer o fundamento legal preciso, o executado não pode questionar a constitucionalidade da norma, verificar a subsunção ou impugnar erros de direito. A possibilidade de alteração violaria a segurança jurídica ao permitir que a Fazenda “testasse” bases legais.

Impactos práticos para Fazenda e contribuintes
A decisão produz efeitos imediatos no contencioso fiscal. Para execuções com CDAs viciadas no fundamento legal, a consequência é extinção sem resolução de mérito, devendo a Fazenda retornar à esfera administrativa para novo lançamento. O risco de decadência é concreto: transcorrido o prazo do artigo 173 do CTN, há perda definitiva da receita.

As Fazendas municipais, especialmente de pequeno porte, enfrentam desafios operacionais significativos. A decisão exige controle de qualidade desde a inscrição, não podendo contar com “correção” posterior. Isso implica capacitação de servidores, reformulação de procedimentos, investimento em tecnologia e rotinas de verificação prévia.

Para contribuintes, a exceção de pré-executividade ganha força para questionar vícios manifestos sem garantia do juízo. Execuções pendentes devem ser revisadas para identificar CDAs com fundamento ausente, genérico ou contraditório. Tais vícios são insanáveis, levando à extinção.

Estrategicamente, a Fazenda precisará implementar checklists de qualidade, validações automáticas, revisão prévia ao ajuizamento e priorização de casos com melhor perspectiva. A transação tributária ganha relevância para evitar extinções por vícios identificados tardiamente.

A curto prazo, espera-se aumento de contestações. A médio prazo, a elevação da qualidade na constituição dos créditos deve reduzir litígios formais, concentrando debates no mérito.

Significado estrutural: o fim do ‘jeitinho’ travestido de interesse público
A decisão do STJ no Tema 1.350 não representa propriamente inovação jurisprudencial, mas consolidação definitiva e especificação cirúrgica de entendimento que já permeava a Súmula 392 e o Tema Repetitivo 166.

O que o tribunal fez foi colocar uma pá de cal no “jeitinho brasileiro” a serviço da administração pública fazendária, rechaçando interpretações flexibilizadoras que vinham sendo adotadas por alguns tribunais estaduais sob o argumento sedutor, mas equivocado, da instrumentalidade das formas, da economia processual e, especialmente, da supremacia do interesse público arrecadatório.

A ratio decidendi revela escolha consciente e corajosa entre dois modelos de atuação estatal. O primeiro, mais permissivo e aparentemente pragmático, privilegia a efetividade arrecadatória de curto prazo e permite o aperfeiçoamento progressivo do título no curso do processo, transformando a execução fiscal em espaço de correção de deficiências administrativas.

Esse modelo, embora se apresente travestido de defesa do interesse público, na verdade institucionaliza a ineficiência administrativa ao sinalizar que erros estruturais podem ser corrigidos posteriormente no Judiciário, transferindo ao contribuinte e aos juízes o ônus da desorganização fazendária.

O segundo modelo, adotado pelo STJ, privilegia a segurança jurídica, o contraditório efetivo e a responsabilidade administrativa, exigindo que o título executivo seja perfeito desde sua origem, representando fielmente um crédito validamente constituído na esfera administrativa.

A opção pela segunda via não decorre de formalismo excessivo ou processualismo estéril, mas de compreensão adequada de que o verdadeiro interesse público não está na arrecadação a qualquer custo, mas na atuação administrativa correta, respeitosa dos direitos fundamentais e da estrutura bifásica do sistema tributário brasileiro.

O verdadeiro significado da decisão transcende o debate técnico sobre vícios formais da CDA. Está em jogo a recusa em legitimar o “jeitinho brasileiro” institucionalizado: a prática de fazer errado e corrigir depois, contando com a complacência do sistema.

Ao preservar a distinção estrutural entre lançamento tributário (ato administrativo de constituição do crédito) e execução fiscal (processo de cobrança judicial de crédito previamente constituído), o STJ deixa claro que permitir a alteração do fundamento legal via substituição da CDA seria franquear indevidamente à Fazenda a possibilidade de revisar o próprio lançamento no curso da execução, subvertendo a lógica do sistema e esvaziando as garantias do procedimento administrativo prévio.

Para o direito tributário brasileiro, a decisão reafirma que o princípio da legalidade estrita e do devido processo legal administrativo não pode ser relativizados em nome de uma suposta supremacia do interesse público arrecadatório.

O contribuinte tem direito não apenas a ser cobrado com fundamento em lei, mas a conhecer com precisão, desde o momento da constituição do crédito, qual é exatamente o fundamento legal invocado pela Fazenda Pública.

Esse conhecimento não é mera formalidade burocrática ou tecnicismo processual, mas pressuposto inafastável para o exercício qualificado da defesa administrativa e judicial, bem como para o controle jurisdicional da legalidade da exigência tributária.

A provocação final que a decisão deixa para os gestores públicos é sobre o modelo de Estado que se deseja construir: um que atua com rigor técnico e precisão desde a fase administrativa, assumindo as consequências de seus erros, ou um que perpetua a lógica do “jeitinho”, transferindo ao Judiciário e ao cidadão o ônus de deficiências estruturais do aparato administrativo.

O STJ fez sua escolha, e ela aponta inequivocamente para o primeiro modelo. O verdadeiro interesse público não está em proteger a Fazenda de suas próprias deficiências, mas em exigir que ela atue corretamente desde a origem.

Portanto, resta aos entes federativos adaptarem suas estruturas administrativas a esse standard de qualidade, sob pena de verem bilhões em créditos tributários legitimamente constituídos perecerem por vícios evitáveis na inscrição em dívida ativa.

Fonte Conjur

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advogado especialista em Direito Tributário pelo IBET/RJ, L.LM em Estado e Regulação pela FGV e consultor legislativo/RelGov.

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