Os novos fundos da reforma tributária e seu custo federativo
Por Fernando Facury Scaff
26/08/2025 12:00 am
A Emenda Constitucional 132, além de aprovar uma verdadeira revolução na tributação do consumo, âmbito das relações fisco-contribuinte, também aprovou novas regras para a distribuição dos recursos arrecadados por meio de fundos, âmbito das relações financeiras internas aos entes federados. Esta segunda dimensão da reforma é o foco do presente texto, que está alinhado com o que escrevi sobre o jardim e a praça, entre o Direito Financeiro e o Tributário no texto de estreia desta coluna, no remotíssimo ano de 2012.
Para análise dessa vertente financeiro-tributária, é adequado dividir entre: (1) os novos fundos, (2) ajustes nos velhos fundos e (3) prorrogação de desvinculação. Sob a ótica proposta para este texto, serão analisados apenas os novos fundos.
Foram criados pela EC 132/24: (1) o Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), (2) o temporário Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais ou Financeiro-Fiscais, (3) o Fundo de Sustentabilidade e Diversificação Econômica do Estado do Amazonas, (4) o Fundo de Desenvolvimento Sustentável dos Estados da Amazônia Ocidental e do Amapá.
O recém-criado Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (artigo 159-A) tem por objetivo reduzir as desigualdades regionais e sociais mediante a entrega de recursos da União aos estados e ao Distrito Federal para realização de estudos, projetos e obras de infraestrutura, fomento a atividades produtivas com elevado potencial de geração de emprego e renda, e para a promoção de ações com vistas ao desenvolvimento científico e tecnológico e à inovação.
Esse fundo não possui correlação direta com a arrecadação do IBS ou a CBS, sendo seus recursos oriundos do orçamento da União. Os municípios ficaram de fora da fruição desses recursos, tal como se vê em outras partes da reforma. Ao que tudo indica, faz parte da composição política para a aprovação da reforma, que em determinado momento ficou paralisada no Congresso. Isso reforça a compreensão da complementariedade entre o direito tributário e o financeiro, revelando a transação federativa realizada para a aprovação da EC 132 em 2024, que projetará seus efeitos para muitas décadas por força da dependência da trajetória (path dependence). Não é o único dos novos fundos com esse perfil político, sendo que neste aflora na transação a contrapartida que a União pagará a todos os estados pelos votos que foram necessários à aprovação da EC 132.
Outra novidade é o temporário Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais ou Financeiro-Fiscais (ADCT, artigo 125, §3º, II), cujo objetivo está relacionado aos benefícios fiscais ou financeiros concedidos no âmbito do ICMS, tributo em extinção. Visa compensar, entre 2029 e 2032, as pessoas físicas ou jurídicas beneficiárias de isenções, incentivos e benefícios fiscais ou financeiro-fiscais de ICMS, desde que concedidos por prazo certo e sob condição.
Esse fundo também tem perfil claramente político, sem nenhuma correlação direta com a arrecadação do IBS ou a CBS, uma vez que os recursos são oriundos do orçamento da União, na fantástica soma de R$ 160 bilhões, a ser corrigida pelo IPCA, com desembolso previsto entre 2025 e 2032.
A despeito da norma afirmar que tais recursos serão utilizados para compensar a redução do nível de benefícios onerosos do ICMS em razão de sua substituição pelo IBS, não está claro como isso será realizado, uma vez que as transferências ocorrerão entre a União e os estados, mas os alegados beneficiários serão as empresas que foram atraídas para desenvolver suas atividades nesses locais, por meio da guerra fiscal. Mais uma vez se revela a transação federativa realizada em 2024, embora tenha ocorrido sob o argumento de compensação às empresas, que devem ficar atentas à sua regulamentação, a fim de que os recursos sejam utilizados conforme o escopo estabelecido, e não caiam no poço sem fundo das contas públicas estaduais e sigam por outros caminhos – basta ver o que ocorreu com o fundo da Lei Kandir, no qual as empresas acabaram sem receber quase nada.
A terceira novidade é o Fundo de Sustentabilidade e Diversificação Econômica do Estado do Amazonas (ADCT, artigo 92-B, §2º), a ser implantado por meio de lei complementar, também constituído com recursos da União e a ser por ela gerido, com a efetiva participação do estado do Amazonas na definição das políticas a serem adotadas.
Spacca
Mais uma vez aflora a transação federativa ocorrida, desta feita com benefícios para um único estado. Para quem não é familiarizado com geografia: esse fundo não se destina à Amazônia (região), mas ao Amazonas (estado da Federação). Tal transação decorre de o relator da reforma tributária no Senado ter sido o senador Eduardo Braga, que expôs a necessidade da criação de um fundo exclusivo para seu estado, para fomentar o desenvolvimento e a diversificação das atividades econômicas em seu território. A transação federativa decorreu da posição estratégica que o senador ocupava naquela ocasião.
Outra novidade é o Fundo de Desenvolvimento Sustentável dos Estados da Amazônia Ocidental e do Amapá (ADCT, artigo 92-B, §6º) que será constituído na forma da lei complementar com recursos da União e por ela gerido, com a efetiva participação desses estados na definição das políticas, com o objetivo de fomentar o desenvolvimento e a diversificação de suas atividades econômicas.
Aqui também é necessário analisar aspectos geográficos, pois existem conceitos superpostos, nem sempre bem conhecidos: (1) sob um conceito geográfico natural a região amazônica abrange diversos países nos quais se identifica esse tipo de floresta além do Brasil, como o Peru e a Colômbia; (2) também sob uma ótica geográfica natural, considerando apenas o Brasil, a região amazônica abrange integralmente seis estados: Acre, Amapá, Amazonas, Rondônia, Pará e Roraima, embora no território destes dois últimos existam outros biomas; (3) existe a Amazônia Legal, conceito jurídico-administrativo regido pela Lei 5.173/66, que em seu artigo 2º inclui os estados acima indicados e partes dos estados de Mato Grosso, Tocantins e Maranhão; e, por fim, (4) existe outro conceito jurídico-administrativo criado pelo art. 1º, §4º, do Decreto-lei 291/67, que divide a Amazônia entre Ocidental (estados do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima) e Oriental, critério definido por exclusão, que abrange os estados do Pará e do Amapá.
Discriminação federativa
Exposta a geografia, pode-se melhor compreender que o alcance do Fundo de Desenvolvimento Sustentável dos Estados da Amazônia Ocidental e do Amapá é de todos os estados da região amazônica, exceto o Pará. Esse fato aponta para um tipo de transação que revela uma discriminação federativa odiosa, jamais vista no direito brasileiro, pois afasta um único estado da fruição dos recursos desse fundo.
A análise destes quatro novos fundos indica a necessidade de obtenção de votos para a aprovação da EC 132, em 2024, fazendo composições políticas por conta do orçamento da União que resultarão em compensações financeiras: (1) para todos os estados da Federação (Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional); (2) para as empresas que perderão os benefícios fiscais concedidos pelos estados, embora existam riscos normativos para estas em sua regulamentação (Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais ou Financeiro-Fiscais); (3) para um único estado, o do Amazonas (Fundo de Sustentabilidade e Diversificação Econômica do Estado do Amazonas) e (4) para todos os estados da Amazônia, excetuado o Pará, o que se revela em uma discriminação federativa odiosa, sobre a qual certamente haverá discussão política ou judicial (Fundo de Desenvolvimento Sustentável dos Estados da Amazônia Ocidental e do Amapá).
Embora não totalmente quantificado, pois apenas foi divulgado o montante de R$ 160 bilhões de um dos fundos, o único temporário, esse é o preço que será orçamentariamente pago pela sociedade para a aprovação da revolução tributária veiculada pela EC 132/24, considerando o desequilíbrio federativo ocasionado na repartição dos benefícios.
Mini Curriculum
é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff – Advogados.
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