O recall do Novo CPC
Andre Vasconcelos Roque, Fernando da Fonseca Gajardoni, Luiz Dellore e Zulmar Duarte
O recall é um instituto do direito do consumidor, utilizado quando algum produto apresenta defeito e, por isso, precisa passar por alguma correção, para que não cause dano ou risco ao consumidor – seja quanto à sua saúde ou segurança. Sua base legal está no CDC, no direito à informação e segurança (arts. 6º e 10)[1].
Nesta coluna no JOTA, desde seu início, apontamos algumas situações de inovações do Novo Código de Processo Civil (CPC) que trarão problemas para a prestação jurisdicional. Ou seja, que poderiam ser corrigidas antes que causassem danos aos consumidores do Poder Judiciário, os jurisdicionados.
Em 21/10/15 a Câmara dos Deputados aprovou o PL 2384/15[2]. Esse projeto já está no Senado, renomeado como PL 168/15[3]. Trata-se, portanto, de verdadeira correção de rumos antes mesmo do término da vacatio no NCPC. Em síntese, um verdadeiro recall legislativo do Novo Código[4].
Pois bem, o projeto aprovado altera 13 artigos do NCPC: 12, 153, 521, 537, 966, 988, 1.029, 1.030, 1.035, 1.036, 1.038, 1.041 e 1.042, além de revogar outros dispositivos[5].
Neste momento, faremos uma breve análise de quatro alterações, em três itens (que envolvem, principalmente, os arts. 12, 153, 988, 1.030, 1.041 e 1.042), as quais tratam de temas que já foram objeto de discussão nesta coluna.
A par disso, facilitando a análise, doravante utilizaremos 3 siglas, da seguinte forma: CPC73, NCPC (na sua versão original, de março de 2015) e NNCPC (ou seja, o Novo NCPC, com as propostas legislativas ainda em tramitação).
1) A mudança dos arts. 12 e 153: ordem cronológica
Apontada como uma das principais inovações do NCPC, o art. 12 original prevê que os julgamentos deverão ser realizados em ordem cronológica de conclusão; o art. 153, por sua vez, estabelece que o cartório deverá publicar e cumprir os pronunciamentos judiciais também em ordem cronológica.
A medida, sem dúvidas de intenção elogiável sob a ótica da isonomia e da impessoalidade, na verdade é muito criticável sob o ponto de vista prático, pois acabará com qualquer gestão por parte do magistrado, acarretando, na verdade, muito mais morosidade que celeridade. Vale destacar que a 1ª coluna sobre o NCPC publicada no Jota tratou, exatamente, desta inovação – apontando seus efeitos nefastos[6], inclusive considerando o dispositivo inconstitucional[7].
A redação original (NCPC) dos dispositivos é a seguinte:
Art. 12. Os juízes e os tribunais deverão obedecer à ordem cronológica de conclusão para proferir sentença ou acórdão.
Art. 153. O escrivão ou chefe de secretaria deverá obedecer à ordem cronológica de recebimento para publicação e efetivação dos pronunciamentos judiciais.
Já a redação proposta no projeto em trâmite (NNCPC):
Art. 12. Os juízes e os tribunais atenderão, preferencialmente, à ordem cronológica de conclusão para proferir sentença ou acórdão.
Art. 153. O escrivão ou chefe de secretaria deverá obedecer, preferencialmente, à ordem cronológica de recebimento para publicação e efetivação dos pronunciamentos judiciais.
Como se vê, deixa de existir uma determinação, uma norma cogente, para que haja o julgamento (pelo juiz) ou cumprimento (pelo servidor) em ordem cronológica. Há, tão somente, uma sugestão para que haja o julgamento/cumprimento em ordem cronológica. Sem qualquer sanção explícita nos dispositivos.
Contudo, não se trata de uma volta ao sistema anterior (do CPC73), pois o art. 12 segue existindo – a cronologia segue como critério preferencial de gestão, o qual poderá ser afastado – e, principalmente, não deixa de existir o comando legislativo para que a lista de processos conclusos seja elaborada e divulgada pela internet.
O importante no momento é constatar que, com a alteração do art. 12, a inconstitucionalidade antes existente é reconhecida[8] pelo próprio legislativo e o novel texto – se aprovado, por certo – não mais ostenta esse vício. Ou seja, o recall cumpriu seu papel.
2) A restrição do cabimento da reclamação (art. 988).
Uma das principais novidades do NCPC é a tentativa de que os precedentes jurisprudenciais sejam estáveis e respeitados pelo próprio Poder Judiciário[9].
Nesse sentido, há os arts. 926 e 927, sendo que este último traz um comando para que os magistrados de hierarquia inferior observem os precedentes jurisprudenciais dos tribunais[10].
Mas, e se os juízes não observarem a jurisprudência dos tribunais, o que ocorre?
O NCPC prevê, para algumas situações (não todas aquelas do art. 927) o uso da reclamação, ou seja, uma ação (não um recurso), a ser proposta diretamente no tribunal. Ou seja, há uma ampliação no cabimento da reclamação, para além das hipóteses já previstas anteriormente – de violação a decisão proferida em controle concentrado de constitucionalidade e súmula vinculante e preservação da competência da Corte Constitucional (situações já previstas na CF e que, inclusive, são repetidas no NCPC).
Comparemos os textos, para melhor compreensão da questão.
NCPC:
Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para:
(…)
IV – garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de precedente proferido em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência.
NNCPC:
Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para:
(…)
III — garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
IV — garantir a observância de precedente de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência;
Como se percebe, na redação original do inciso IV, temos o cabimento da reclamação para qualquer hipótese de julgamento repetitivo – seja o REsp repetitivo, RE repetitivo ou incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR)[11]. Porém, na redação do NNCPC, há uma limitação, podendo se concluir, à primeira vista, que possível o uso da reclamação somente para a hipótese de julgamento do IRDR – mas não para o caso de REsp ou RE repetitivo.
A se interpretar dessa forma, haveria, infelizmente, claro enfraquecimento do precedente firmado no repetitivo. E, aqui, até mesmo uma incongruência. Pois o IRDR em si é julgado originalmente nos tribunais inferiores, sendo apreciado pelos tribunais superiores apenas em sede recursal (NCPC, art. 987).
Mas essa interpretação encontra óbice em outra alteração proposta, no § 5º do art 988. Comparemos as redações.
NCPC:
Art. 988. (…) § 5º É inadmissível a reclamação proposta após o trânsito em julgado da decisão.
NNCPC:
Art. 988. (…) § 5° É inadmissível a reclamação:
I — proposta após o trânsito em julgado da decisão reclamada;
II — proposta perante o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça para garantir a observância de precedente de repercussão geral ou de recurso especial em questão repetitiva, quando não esgotadas as instâncias ordinárias.
A partir do § 5º do NNCPC, é de se concluir que a reforma proposta também permite o uso da reclamação para as situações de REsp e RE repetitivos – ainda que isso não esteja expressamente previsto no art. 988, IV. Ou seja, o novo inciso IV deve ser lido de forma sistemática com o § 5º, de modo a ser interpretado de forma ampliativa.
Logo, é fácil concluir que não andou bem o recall, nesse ponto…
De qualquer forma, o uso da reclamação para essas hipóteses é limitado pelo legislador reformador, somente sendo admitido quando “esgotadas as instâncias ordinárias”. Ou seja, a reclamação (que é ação) passa a se aproximar de um recurso excepcional, sendo, portanto, somente cabível quando couber o próprio REsp ou RE.
Logo, pela redação proposta pelo NNCPC, se uma sentença violar uma tese firmada em repetitivo, só será cabível apelação. Somente se um acórdão violar a tese repetitiva é que será possível utilizar, ao mesmo tempo, REsp/RE e reclamação – tendo a reclamação a vantagem de ser apresentada diretamente no juízo de destino.
A proposta, claramente, busca diminuir o número de reclamações no âmbito dos tribunais superiores. Contudo, limita a força da tese fixada em sede repetitiva. Ao invés de se se atacar o problema (juízes que não observam precedentes), ataca-se a solução (uso da reclamação).
Portanto, nesse particular, não nos parece uma boa alteração – seja na forma (pela incongruência entre o inciso IV e o § 5º), seja no conteúdo (por limitar a força do precedente).
3) A volta dos que não foram: juízo de admissibilidade do REsp/RE no tribunal de origem (art. 1.030).
Esse tema foi objeto de coluna específica anterior no JOTA[12], exatamente porque, desde a aprovação do NCPC, houve grande resistência dos tribunais superiores quanto ao assunto – supressão da admissibilidade do REsp/RE na origem –, existindo diversos projetos de lei para tratar do assunto[13].
Diante desse problema, duas seriam as possíveis soluções: alteração do NCPC ou aumento da vacatio[14].
Em relação às duas possibilidades, a que está mais próxima da aprovação, como se vê, é a modificação do texto legislativo.
As justificativas para o fim da admissibilidade na origem seriam (i) a diminuição de um recurso – ao argumento de que na maior parte das vezes a parte interpõe o agravo contra a inadmissão na origem e (ii) a maior celeridade que isso traria na tramitação. Ademais, afirmou-se que a ideia teria partido de um ministro do STJ – o que, contudo, foi rechaçado pelo próprio magistrado[15].
No texto anterior no JOTA, foram apontadas razões pelas quais não se entendia a novidade conveniente[16], de modo que isso não é aqui repetido.
O fato é que o NNCPC traz a volta ao sistema do CPC73. Vejamos as redações, em que há uma brutal alteração.
NCPC:
Art. 1.030. Recebida a petição do recurso pela secretaria do tribunal, o recorrido será intimado para apresentar contrarrazões no prazo de 15 (quinze) dias, findo o qual os autos serão remetidos ao respectivo tribunal superior.
Parágrafo único. A remessa de que trata o caput dar-se-á independentemente de juízo de admissibilidade.
NNCPC:
Art. 1.030. Recebida a petição do recurso pela secretaria do tribunal, o recorrido será intimado para apresentar contrarrazões no prazo de quinze dias, findo o qual os autos serão conclusos ao presidente ou ao vice-presidente do tribunal recorrido, que deverá:
I — negar seguimento a recurso extraordinário que trate de controvérsia a que o Supremo Tribunal Federal tenha negado a repercussão geral;
II — negar seguimento a recurso extraordinário ou a recurso especial interposto contra acórdão em conformidade com o precedente de repercussão geral ou de recurso especial em questão repetitiva;
III — encaminhar o processo ao órgão julgador para juízo de retratação, se o acórdão recorrido divergir de precedente de repercussão geral ou de recurso especial em questão repetitiva;
IV — sobrestar o recurso que versar sobre controvérsia de caráter repetitivo ainda não decidida por tribunal superior;
V — selecionar o recurso como representativo de controvérsia constitucional ou infraconstitucional de caráter repetitivo, nos termos do § 6° do art. 1.036;
VI — realizar juízo de admissibilidade e, se positivo, remeter o feito ao tribunal superior correspondente, desde que:
a) o recurso ainda não tenha sido submetido ao regime da repercussão geral ou do recurso especial repetitivo;
b) o recurso tenha sido selecionado como representativo da controvérsia; ou
c) o tribunal recorrido tenha refutado o juízo de retratação.
Como se percebe, há profunda modificação. Não só volta para a origem a admissibilidade e a competência para atribuir efeito suspensivo aos recursos excepcionais, como o tribunal intermediário fica responsável pela aplicação do precedente fixado em sede de repetitivo, (r)estabelecendo uma espécie de parceria entre os tribunais intermediários e os tribunais superiores.
E, consequentemente, com a volta da admissibilidade na origem, retorna ao sistema o agravo contra decisão denegatória nos moldes do CPC73 (art. 1.042 do NNCPC[17]).
Nesse particular, muito bem vindo o recall.
É certo que há dificuldades como, por exemplo, o que fazer quando se está diante de um sobrestamento indevido, ou de incorreta aplicação da tese repetitiva ao caso concreto. Contudo, isso é tema para outra coluna.
Conclusão
Para concluir, é de se verificar que o próprio Legislativo percebeu que a redação original do NCPC traria uma série de problemas. Tanto que já aprovou, em uma das Casas, em típica situação de recall, diversas modificações no Código – e que ora pende de apreciação na outra Casa Legislativa.
E, das alterações aprovadas no NNCPC e aqui tratadas, em nosso entender três delas são absolutamente pertinentes (mudanças nos arts. 12, 153 e 1.030). Além disso, diversos outros projetos legislativos tramitam no Congresso para alterar o NCPC.
Portanto, até a entrada em vigor do NCPC, continuaremos na expectativa sobre a continuidade do recall. Esperando que as alterações eventualmente efetuadas não justifiquem a aquisição de um novo produto (no caso, o Código).
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[1] Há, também, no âmbito do direito constitucional / eleitoral, a figura do recall, em que se busca revogar o mandato de algum político antes eleito. Mas a figura do direito do consumidor se aproxima mais do que se quer tratar nesta coluna.
[2] http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1580174
[3] http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/123769
[4] O paralelo na utilização da expressão foi realizado por Andre Roque, em grupo de debates virtual que reúne 200 processualistas de todo o Brasil que discutem o NCPC.
[5] Confira a íntegra aqui: http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1405050&filename=Tramitacao-PL+2384/2015
[6] Fernando Gajardoni assinou a primeira coluna (http://jota.info/o-novo-cpc-e-o-fim-da-gestao-na-justica).
[7] O mesmo autor, posteriormente, afirmou a inconstitucionalidade do artigo 12 do NCPC (Gajardoni, Dellore, Roque e Duarte, Comentários ao CPC de 2015 – Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 71-78)
[8] Expressa ou implicitamente, pouco importa.
[9] A respeito do tema, nesta coluna do Jota, Luiz Dellore (http://jota.info/novo-cpc-5-anos-de-tramitacao-e-20-inovacoes, item viii) e Zulmar Duarte (http://jota.info/precedentes-no-novo-cpc-fast-food-brasileiro).
[10] Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II – os enunciados de súmula vinculante;
III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
[11] A respeito do tema, conferir, novamente, coluna de Zulmar Duarte (http://jota.info/precedentes-no-novo-cpc-fast-food-brasileiro) e, também, de Andre Roque (http://jota.info/abracadabra).
[12] Escrita por Luiz Dellore (http://jota.info/novo-cpc-ja-a-reforma-da-reforma).
[13] A propósito, em pesquisa realizada pelo processualista Antonio Carvalho (PR), chegou-se ao surpreendente resultado de mais de 25 projetos de leis tramitando na Câmara e 6 no Senado para alterar o NCPC (número do início de novembro/15).
[14] Já há proposta de lei nesse sentido: PL 2.913/2015 (http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1712716 ). Relembre-se que, na história do Brasil, já houve caso de adiamento de vacatio de Código, que depois nunca entrou em vigor (CP/1969)
[15] Conferir manifestação do Ministro Beneti no seguinte texto: http://www.conjur.com.br/2015-jul-14/stj-restabelecer-regras-admissibilidade-cpc
[16] Vide, novamente, http://jota.info/novo-cpc-ja-a-reforma-da-reforma.
[17] Art. 1.042. Cabe agravo contra decisão de presidente ou de vice-presidente do tribunal recorrido que inadmitir recurso extraordinário ou recurso especial, salvo quando fundada na aplicação de precedente de repercussão geral e de recurso especial repetitivo.
Fonte: Jota.Info
Andre Vasconcelos Roque, Fernando da Fonseca Gajardoni, Luiz Dellore e Zulmar Duarte
Andre Vasconcelos Roque
Doutor e mestre em Direito Processual pela UERJ. Professor Adjunto em Direito Processual Civil da FND-UFRJ. Membro do IIDP, IBDP, CBAr, IAB e CEAPRO. Advogado.
Fernando da Fonseca Gajardoni
Professor Doutor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP (FDRP-USP). Doutor e Mestre em Direito Processual pela USP (FD-USP). Juiz de Direito no Estado de São Paulo.
Luiz Dellore
Mestre e Doutor em Direito Processual pela USP. Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP. Professor de Direito Processual do Mackenzie, EPD, IEDI e IOB/Marcato e professor convidado de outros cursos em todo o Brasil. Advogado concursado da Caixa Econômica Federal. Ex-assessor de Ministro do STJ. Membro da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP, do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual) e diretor do CEAPRO (Centro de Estudos Avançados de Processo).
Zulmar Duarte
Advogado. Professor. Pós-Graduado em Direito Civil e Processual Civil. Membro do IAB (Instituto dos Advogados Brasileiros) e do CEAPRO (Centro de Estudos Avançados de Processo).