O que cabe na caixa do ‘regime de caixa’? Uma análise de caso
Por Carlos Augusto Daniel Neto, Jorge Ricardo da Silva Júnior
06/11/2025 12:00 am
O Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (IRPF) é amplamente caracterizado por se subordinar, usualmente, ao denominado “regime de caixa” (em oposição ao “regime de competência”, velho conhecido da contabilidade). A despeito de ser um termo recorrente no debate tributário, ele carece de uma definição legal expressa ou mesmo de uma uniformidade terminológica na sua caracterização, a exemplo das expressões “receita recebida” (LC 123/03) ou “rendimentos (…) percebidos” (Lei 7.713/88).
De modo geral, o regime de caixa costuma ser descrito como o regime temporal de reconhecimento de rendimento com base no efetivo recebimento dos recursos ou a sua disponibilização ao beneficiário. Não obstante, há situações no ordenamento em que ele abrange mais do que isso, como no caso das coligadas, em que o “pagamento de lucros” inclui “o emprego do valor, em favor da beneficiária, em qualquer praça” (artigo 452, §2º, II, “d” do RIR/2018).
Na maioria dos casos, a aplicação do regime de caixa não gera grandes controvérsias e coincide com o recebimento dos rendimentos diretamente pelo beneficiário. No entanto, há hipóteses em que se obtém um ganho indireto, sem a percepção ou recebimento direto de rendimentos.
Afinal, o regime de caixa exige necessariamente que o contribuinte tenha recebido diretamente a riqueza ou rendimento, ou tido disponibilidade financeira sobre esses valores?
Trataremos dessa questão na coluna de hoje, usando como fio condutor o acórdão nº 2201-011.946, (22/11/2024), que concluiu que “o pagamento de multa, decorrente de acordo de colaboração premiada, por terceiros configura acréscimo patrimonial ao beneficiário, sujeito à incidência do imposto de renda”. Além disso, no recente Recurso Especial nº 2.052.858/RJ, em caso análogo, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça adotou a mesma conclusão.
Fato gerador do IRPF
O Código Tributário Nacional (CTN) dispõe que o IR tem como fato gerador a aquisição de disponibilidade jurídica ou econômica de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos (artigo 43, I), e de proventos de qualquer natureza, que compreende todos os demais acréscimos patrimoniais não compreendidos anteriormente (artigo 43, II). Além disso, estabelece-se, no §1º, que a tributação da renda independe da “denominação da receita ou do rendimento, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção”. É perceptível, nesse sentido, a intenção do legislador de alcançar a totalidade de incrementos patrimoniais do contribuinte, independentemente de sua origem, denominação ou da forma jurídica que se apresentem.
A Lei nº 7.713/88, estabelece que constitui rendimento bruto todo o produto do capital, do trabalho, o ou da combinação de ambos, os alimentos e as pensões percebidos em dinheiro, os proventos de qualquer natureza e os acréscimos patrimoniais não correspondentes aos rendimentos declarados (artigo 3º, §1). O artigo 3º, §4º refere que, para a incidência do imposto, é suficiente que se constate “o benefício do contribuinte por qualquer forma e a qualquer título“. Há nesses dispositivos um evidente paralelismo com o disposto no CTN.
Spacca
Ainda, ao definir os rendimentos do trabalho assalariado e assemelhados, o artigo 16 da Lei nº 4.506/64, deixa claro que o conceito abrange todas as espécies de remunerações por trabalho ou serviços prestados, incluindo pagamentos feitos diretamente ao trabalhador (salários, gratificações, comissões etc.), mas também pagos a terceiros, em benefício daquele (“pagamento de despesas pessoais do assalariado” e “aluguel do imóvel ocupado pelo empregado e pago pelo empregador a terceiros”).
A leitura do CTN e da legislação ordinária não deixa dúvidas que o IRPF busca alcançar diversos incrementos no patrimônio da pessoa física em determinado período, seja por meio direto, tal como o ingresso de valores na conta do indivíduo, ou por meio indireto, tal como pagamentos em favor do beneficiário. A própria exigência do “ingresso de caixa” para a qualificação do rendimento tributável parece não ser absoluta, a exemplo do artigo 47, IV do RIR/2018, que estende o IRPF aos rendimentos recebidos na forma de bens ou direitos, avaliados em dinheiro, na data da sua percepção pelo contribuinte.
Por outro lado, também não é toda espécie de benefício que deve ser objeto de tributação na pessoa física, a exemplo do perdão de dívida, desde que não se dê em troca de serviços prestados, conforme o artigo 47, I, do RIR/2018, SC Cosit nº 70/2013 e SC Disit/SRRF03 3010/2021. Nesse caso, o legislador optou por deixar de fora da tributação os perdões de dívidas incondicionados – o que não significa dizer que não haja um benefício monetariamente quantificável no perdoado.
A despeito da tendência de equiparar o “regime de caixa” com o racional de um Livro Caixa, onde se escrituram as entradas e saídas efetivas de dinheiro, o regime jurídico de reconhecimento de rendimentos ao qual se submete o IRPF vai além, não se limitando às hipóteses de percepção direta, por meio de ingresso financeiro que represente a posse da renda.
O “regime de caixa”, enquanto conceito construído pelo Direto Positivo, vai além da percepção mais intuitiva, abrangendo qualquer tipo de benefício econômico que seja efetivamente percebido pelo contribuinte, afetando imediatamente o seu patrimônio, seja na forma de dinheiro, bens, serviços ou direitos, ou mesmo de maneira indireta, pela realização de pagamentos em favor dele. Ressalvem-se, por óbvio, as hipóteses em que a legislação restrinja a tributação desses benefícios, como no caso do perdão de dívida incondicional.
Em suma, o conteúdo jurídico do “regime de caixa” não pode ser intuído exclusivamente por sinonímia com o “Livro Caixa”, mas deve ser construído especificamente em relação ao IRPF, a partir das diversas regras que determinam os tipos de rendas e proventos tributáveis, por meio de um raciocínio indutivo que permita construir um critério aglutinante de todas as hipóteses, sem prejuízo das exceções trazidas pelo próprio ordenamento (que, antes de infirmar o critério geral, ratificam-no).
Estabelecidas essas premissas, a seguir analisaremos a discussão do Acórdão nº 2201-011.946.
Discussão no Acórdão nº 2201-011.946
No caso analisado, o contribuinte recolheu IRPF sobre multa devida, em decorrência de delação premiada, que foi paga pela empresa da qual era presidente e, posteriormente, realizou o pedido de restituição por entender que a tributação desses valores seria indevida, pois o valor nunca lhe teria sido entregue pela empresa, tampouco transitado por seu patrimônio.
Diante do despacho decisório desfavorável, ele apresentou manifestação de inconformidade, que foi julgada improcedente, sob o argumento de que quitar uma dívida relativa a um terceiro equivale a situação de lhe fornecer recursos para que arque com o pagamento desta. Ou seja, o fato de os recursos não terem sido diretamente transferidos ao contribuinte não descaracterizaria o fato gerador do imposto de renda, que é o aumento patrimonial. Diante da decisão, o contribuinte interpôs recurso voluntário.
O voto do relator, no entanto, apontou que a multa foi imputada em caráter individual à pessoa física, e que o pagamento realizado pela empresa não foi em nome próprio, mas em favor do contribuinte. Além disso, afirmou que ao ter a dívida paga por terceiro, o recorrente deixou de despender parcela do seu patrimônio para cumprimento da obrigação que era de sua responsabilidade, obtendo ganho patrimonial.
No que diz respeito a natureza do pagamento, o relator descaracterizou o caráter indenizatório, com base na ausência de prova de dano, bem como no fato de que o contribuinte era o próprio diretor-presidente, não sendo crível que fosse “vítima de sua própria gestão”. Da mesma forma, foi descaracterizado o caráter de doação dos valores pagos, já que não houve mera liberalidade, visto que a empresa tinha interesse na celebração do acordo de delação entre as partes.
Além do voto do relator, foram apresentadas duas declarações de voto, acompanhando o relator pelas conclusões: (1) a primeira delas reiterou que não era possível afirmar corretamente a natureza do pagamento sem a leitura do acordo de delação celebrado, o qual era sigiloso e não constava no processo; e (2) a segunda esclareceu a ausência de doação no caso, pois haveria o propósito da empresa em pagar para o beneficiário por alguma vantagem que haja recebido dele, em razão da prestação de serviços, e enquanto interessada na delação premiada, afastando-se a mera liberalidade.
Ao final, foi negado provimento ao recurso voluntário, por unanimidade.
Análise crítica da decisão
Desde a leitura da argumentação do contribuinte, se verifica a adoção de uma premissa excessivamente estreita para a compreensão do regime de caixa, a entrega de valores da empresa para o contribuinte, e o ingresso ou trânsito desses valores no seu patrimônio. Tal posição, entretanto, não tem guarida na legislação, que determina a tributação, como rendimentos, dos benefícios do contribuinte obtidos por qualquer forma e a qualquer título.
A própria decisão da DRJ, nesse ponto, acaba compartilhando da premissa “estreita” e se socorre a um raciocínio analógico para enquadrar a situação concreta na tributação do IRPF, ao equiparar o pagamento em favor do terceiro à entrega dos valores diretamente, para que pague ele mesmo. A ginástica, todavia, foi despicienda, pois a legislação já contempla ambas as situações, como esclarecido acima.
O entendimento manifestado no acórdão, em nosso entender, é correto.
Em primeiro lugar, demonstrou-se que à luz da legislação do IRPF e a sua configuração jurídica do “regime de caixa” [1], resta claro que o fato de o contribuinte não auferir diretamente o acréscimo patrimonial não é relevante para definir a incidência do tributo, havendo também a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica na hipótese de benefícios concedidos indiretamente, como na forma de pagamentos feitos a terceiro, em seu favor.
Como bem apontado, o fato de a dívida pessoal do contribuinte ter sido quitada por um terceiro, implica em acréscimo patrimonial, como estabelece o artigo 16, VI, da Lei nº 4.506/64. Trata-se do pagamento de uma despesa pessoal do diretor-presidente, exatamente em função do cargo que exerce na empresa-pagadora, devendo tal valor ser classificado como rendimento desse trabalho.
Como já afirmado, a exigência de ingresso financeiro para ocorrência do fato gerador do IRPF desvirtuaria a lógica de incidência do imposto, além de confundir disponibilidade econômica/jurídica (exigida pelo CTN) com disponibilidade financeira (que é a posse sobre o rendimento líquido). Para a legislação é irrelevante a forma de percepção, bastando o benefício do contribuinte por qualquer forma e a qualquer título, o que é evidenciado pelas hipóteses de rendimento que independem desse ingresso financeiro.
Entender de forma contrária e condicionar a incidência ao ingresso financeiro levaria a uma consequência absurda, qual seja, a possibilidade de as empresas passarem a remunerar funcionários e executivos por meio do pagamento direto de suas despesas pessoais, sem quaisquer ingressos de valores para os beneficiários, de forma a supostamente “evitar” a tributação dos salários e remunerações. Ou, para sair do âmbito da relação empresa-funcionário, regida pelo artigo 16 da Lei nº 4.506/64, seria o mesmo que uma pessoa vendesse um bem a outra, mas ao invés de ocorrer o pagamento direto ao vendedor, este orientasse o comprador que pagasse dívida dele com terceiro.
Tal conclusão, além de ilógica e falaciosa, esbarra frontalmente na legislação do IRPF, que expressamente estabelece a tributação das remunerações por trabalho prestado por cargos e funções e “quaisquer proventos ou vantagens percebidos”, conforme artigo 34 e 36 do RIR/18.
Nesse sentido, o entendimento desse acórdão não discrepa da jurisprudência da 2ª Seção do Carf, que entende pela tributação pelo IRPF de valores pagos a terceiros pela empresa em favor do beneficiário, já que configuram remuneração ou salário indireto (e.g. Acórdão nº 2201-010.742, j. 15/07/2023 e Acórdão nº 2202-008.419, j. 15/7/2021).
Em relação à alegada natureza de doação, vale ressaltar, conforme destacado em uma das declarações de voto, que o Carf tem entendido que “os valores recebidos a título de incentivo informados como tributáveis pela fonte pagadora não podem ser considerados doação”. Ou seja, é necessário verificar se a doação se deu em razão do vínculo de prestação de serviços ou efetivamente por mera liberalidade dos interessados, conforme demonstram os Acórdãos nº 2402-004.896, 2002-000.694, 2201-007.654 e 2201-007.362.
Por fim, deve-se mencionar que a 1ª Turma do STJ, ao julgar caso praticamente idêntico ao ora examinado (REsp nº 2.052.858/RJ), em 7/10/2025, por unanimidade, entendeu pela tributação dos valores pelo IRPF. Vejamos a conclusão do voto vencedor:
“Assim, para efeito de identificação do aspecto material da exação em exame, revela-se desinfluente verificar se determinada quantia foi creditada diretamente na conta do contribuinte ou, diversamente, se o respectivo montante restou empregado por terceiro para a quitação de obrigações passivas em nome daquele, porquanto, em ambas as situações, há acréscimo patrimonial tributável.
Nesse contexto, a quitação, por terceiros, de obrigação financeira do contribuinte representa liberação de despesa que este suportaria, gerando vantagem econômica mensurável, sem a correspondente contraprestação onerosa, traduzindo, assim, acréscimo patrimonial indireto, passível de tributação pelo Imposto sobre a Renda.”
A única ressalva que podemos fazer a esse entendimento, é o fato de que a liberação da despesa suportada pelo contribuinte não se dá de forma graciosa e incondicionada, mas em razão da sua condição de funcionário da empresa. Como esclarecido, caso houvesse um perdão incondicional de dívida, não haveria qualquer tributação no beneficiário, a despeito do acréscimo patrimonial, por opção legal.
Conclusão
A conclusão das decisões do Carf e do STJ explicitam o que buscou-se demonstrar até aqui: uma compreensão mais adequada do que é, efetivamente, o “regime de caixa” para o IRPF deve passar por um exame detido do Direito Positivo, para além de truísmos e fórmulas sintéticas, ou de sinonímias de rótulos.
A lei estabelece que o recebimento de rendimentos depende muito mais da existência de um benefício do contribuinte, por qualquer forma e a qualquer título, do que propriamente a entrega direta de valores.
A percepção dos rendimentos decorre do ingresso de benefícios econômicos no patrimônio do contribuinte, devendo ser tributada à medida em que ocorre e dentro das previsões legais existentes. Em diversas hipóteses, em especial nos pagamentos em favor do contribuinte, é irrelevante o ingresso de valores ou a posse da renda por parte do sujeito para configuração do acréscimo patrimonial e consequente tributação pelo IRPF.
[1] Nada impede que o regime de caixa assuma maior ou menor abrangência para outros tributos, a depender da configuração que lhe dê o direito vigente.
Fonte: Conjur
Mini Curriculum
Carlos Augusto Daniel Neto
é sócio do escritório Daniel, Diniz e Branco Advocacia Tributária e Aduaneira, com estágios pós-doutorais de pesquisa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e no Max-Planck-Instituts für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen (MPI), doutor em Direito Tributário pela USP, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf e professor permanente do mestrado profissional do Cedes, do IBDT e da Apet.
Jorge Ricardo da Silva Júnior
é advogado tributarista em Porto Alegre e São Paulo, pós-graduando em Direito Tributário no IBDT e associado do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF).
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