O Direito Aduaneiro e a ‘cereja do bolo’: bodas do DL 37/1966

Por Fernanda Kotzias, Fernando Pieri, Leonardo Branco, Liziane Angelotti Meira, Rosaldo Trevisan

18/11/2025 12:00 am

Datas especiais merecem colunas especiais. Eis a razão de todos(as) os(as) colunistas de Território Aduaneiro se reunirem, nesta semana, para comemorar as “bodas de cereja” da principal norma aduaneira de ordem legal do Brasil.

Divulgação
“Bodas” são comemorações (matrimoniais) que remetem a tempos longínquos, inicialmente apenas para determinadas datas especiais, como 25 anos (“prata”) e 50 anos (“ouro”) [1]. Mas logo a cultura popular, principalmente influenciada por razões comerciais (em grande parte de joalheiros [2]), buscou colmatar com pedras e outros símbolos as demais datas, tentando materializar a evolução da relação no tempo segundo características e/ou raridade de cada material. Listas com as datas festivas de bodas e respectivos materiais podem ser encontradas desde o início do século passado, havendo pouco consenso internacional em relação à maioria delas [3].

No Brasil, a maioria das listas disponíveis relaciona a comemoração do jubileu de 59 anos à “cereja”, apesar de o registro das razões da eleição de tal fruta serem pouco uniformes. A dificuldade de identificação precisa da origem e das razões, aliás, é inerente não só à cultura popular e às tradições, mas às próprias normas jurídicas derivadas do costume.

De qualquer modo, é essencial registrar que há exatos 59 anos nascia o Decreto-Lei 37, de 18/11/1966, fruto de trabalho a cargo de equipe coordenada por Gerson Augusto da Silva [4], que, àquela mesma época histórica, compunha ainda a equipe elaboradora do Código Tributário Nacional (Lei 5.172), que teve seu texto concluído pouco antes, em 25/10/1966, mas que entrou em vigor na mesma data da “lei aduaneira”, em 1o de janeiro de 1967.

O Decreto-Lei 37/1966 é o mais próximo que chegamos de uma codificação aduaneira no último século, em um cenário político e democrático absolutamente distinto do atual, mas que, paradoxalmente, por isso mesmo favoreceu “reformas completas de sistemas”, de forma relativamente célere, como a que ocorreu na área tributária, com a Emenda Constitucional 18/1965, que alastra efeitos até os dias atuais.

Falamos sobre o Decreto-Lei 37/1966, de forma igualmente conjunta, e também remetendo a “bodas”, em 23/11/2021, na primeira coluna aqui nesta ConJur, intitulada “O Território Aduaneiro e as bodas de ametista da Lei Aduaneira” [5].

Voltaire(?) e o ‘Território Aduaneiro’
Naquela primeira coluna, prometemos “conteúdo semanal relevante e atualizado sobre Direito Aduaneiro e Comércio Internacional, sob os aspectos doutrinário, jurisprudencial e prático, buscando apontar as principais questões que afligem a temática aduaneira no cenário brasileiro e internacional”, alertando que as distintas experiências e visões dos(das) colunistas, culminaria em pontos de vista não necessariamente coincidentes, o que demandaria um disclaimer permanente, no sentido de que o posicionamento expresso em cada coluna não se confunde com o dos(das) demais colunistas nem com o de instituições em órgãos em que eventualmente atuem.

Eis os ingredientes para a materialização da máxima atribuída (provavelmente de forma errônea) a Voltaire: “discordo veementemente do que dizes, mas defendo até a morte o direito de que o digas” [6]. As divergências de posicionamento respeitosas, eventualmente existentes entre os(as) colunistas, só enriquecem o debate sobre o Direito Aduaneiro, permitindo ao leitor assíduo das colunas acompanhar as diferentes correntes hermenêuticas que permeiam a temática, e, a partir delas, ter sua própria compreensão do fenômeno aduaneiro.

A maturidade argumentativa surge quando se conhece bem cada uma das posições sobre um tema, propiciando ao leitor formar de forma embasada suas conclusões. Portanto, a coluna não busca “doutrinar” o leitor, ou mostrar uma pretensa “verdade”, mas inseri-lo no universo aduaneiro, de modo que ele próprio possa encontrar a “saída da caverna”.

Sistematização do Direito Aduaneiro
O principal mérito do Decreto-Lei 37/1966 foi a busca pela sistematização do Direito Aduaneiro, no País, aproximadamente na mesma época em que se sistematizou o Direito tributário brasileiro. O desejo de que o Decreto-Lei 37/1966 fosse um “Código Aduaneiro”, já conhecido por quem acompanha esta coluna, estava expresso na Exposição de Motivos [7], que, no item 2, informava que o texto objetivava “…atualizar toda a legislação aduaneira do país”, e no item 15, revelava que “…a exemplo de Códigos Aduaneiros modernos, o projeto dispõe tão somente sobre matéria de natureza substantiva”.

De lá para cá, muita coisa mudou no cenário nacional e internacional. A título ilustrativo, tem-se um novo texto constitucional em 1988, a abertura da economia brasileira na década de 1990, a participação em bloco regional (Mercosul) desde 1991, e a maior inserção no comércio internacional, com adesão a importantes tratados modernos como a Convenção de Quioto Revisada (CQR/OMA) e o Acordo sobre a Facilitação do Comércio (AFC/OMC).

Nesse cenário, o Decreto-Lei 37/1966 foi sendo substancialmente alterado, com impactos na sistematização. Hoje, apenas 42 de seus 172 artigos (o que equivale a aproximadamente 24% do texto) estão totalmente vigentes na redação original [8].

A parte processual aduaneira (artigos 118 a 136 — contencioso administrativo), por exemplo, foi engolida pelos ritos estabelecidos posteriormente estabelecidos no Decreto 70.235/1972, no Decreto-Lei 1.455/1976 e no artigo 76 da Lei 10.833/2003. Regimes, tributos e penalidades foram alterados pontualmente por mais de uma dezena de vezes, nem sempre com preocupação sistematizadora [9]. Ademais, não foram incorporados ao texto do Decreto-Lei 37/1966 os preceitos de importantes tratados internacionais celebrados posteriormente, como a CQR/OMA e o AFC/OMC.

Assim, o que se tem hoje é uma mitigação da sistematização, principal característica do Decreto-Lei 37/1966, a reclamar exercício hermenêutico mais complexo para visualizar o Direito Aduaneiro como regulador de um sistema.

A ‘cereja do bolo’
O início do resgate desse caráter sistematizador do universo aduaneiro teve impulso recente, com a apresentação do PL 4.423/2024, bastante comentado nesta coluna [10], que supre, em grande parte, o distanciamento temporal entre a legislação aduaneira brasileira e a evolução tecnológica e procedimental identificadas no cenário nacional e internacional.

O PL, conhecido como “Lei Geral de Comércio Exterior”, não é um “Código Aduaneiro”, por ter postergado, em função de fatores conjunturais, o tratamento de temas que ainda não encontram disciplina uníssona internacional, e estão sendo objeto de outras reformas internas paralelas (como a reforma tributária do consumo, que afeta a tributação niveladora [11] na importação, e a reforma do contencioso administrativo, que tramita em PL distintos, que, mesmo sem ter preocupação específica com a temática aduaneira, a abrangem).

Ademais, o PL não revoga todo o Decreto-Lei 37/1966, em função dos três temas não consolidados (tributos, infrações e contencioso) e de outras matérias que, embora consolidadas, foram entendidas como não afetas a uma codificação, pelo que continuarão a existir disposições vigentes do Decreto-Lei 37/1966 por tempo que certamente excederá as “bodas de cereja” [12].

É claro que a “cereja do bolo”, nesse cenário, seria a codificação, ainda que paulatina, das três matérias hoje excluídas da Lei Geral de Comércio Exterior, considerando, inclusive, as diretrizes estabelecidas em seu artigo 4o, que não encontra limitações materiais.

‘Bodas de flores e frutas’ do ‘Território Aduaneiro’
Coincidentemente, as “bodas de cereja” do Decreto-Lei 37/1966 coincidem com as comemorações de quatro anos desta coluna, que chega ao seu 194º artigo, homenageando a troca de ideias promovida nas 55 colunas registradas em 2021/2022 (transformadas em livro [13], reorganizado e atualizado em 2023), as 49 colunas veiculadas em 2023 (vertidas em livro [14], também reorganizado e atualizado em 2024), as 47 colunas publicadas em 2024, e as 42 colunas já disponibilizadas em 2025.

Para variar, não há, também, uniformidade na denominação das bodas de quatro anos, em geral designadas por bodas de “flores e frutas”, mas também por “bodas de cera”, “bodas de seda” ou “bodas de linho”, que o leitor encontra, na grande rede, sem critério científico. Igualmente acientífico, mas por mera afinidade com a “cereja”, protagonista desta coluna, optamos pelas “bodas de flores e frutos”, e aproveitamos para fazer um convite: no dia 4 de dezembro de 2023, será lançado o terceiro volume da coleção “Território Aduaneiro”, em São Paulo. Detalhes ainda serão divulgados nas redes sociais.

Esta coluna, múltipla em ideias e posições, mas única, no Brasil, na temática aduaneira, deseja que venham mais bodas, e mais cerejas (que, diga-se, são frutas!) em nosso “Território Aduaneiro”.

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[1] A tradição de presentear com ouro nos 25 anos e prata nos 50 anos de aniversário de casamento remonta à Idade Média, tempo em que a maioria das pessoas não vivia o suficiente para atingir essas datas importantes, e poucos tinham recursos para adquirir ouro e prata (disponível aqui).

[2] Em 1937, a American National Retail Jeweler Association apresentou uma lista mais completa de “presentes” para as bodas, associados a joias (LEE, Cookie. Wedding Anniversaries: From Paper to Diamond. Ryland Peters & Small, 2001).

[3] Veja-se, a título exemplificativo, as divergências entre os símbolos “tradicionais” e “modernos”, na lista constante na Chicago Public Library´s Information Center (aqui).

[4] Gerson Augusto da Silva era, sem sombra de dúvida, a figura mais importante na área de intersecção entre o tributário e o aduaneiro, na época do nascimento das referidas normas. Presidiu a Comissão de Reforma do Ministério da Fazenda (MF), em trabalho desenvolvido pela Fundação Getúlio Vargas (por iniciativa do próprio MF, em novembro de 1962), compôs a Comissão de Codificação do Direito Tributário (constituída em setembro de 1964, e integrada ainda por Gilberto Ulhôa Canto e Rubens Gomes de Souza), e a Comissão de Reforma do Sistema Tributário Nacional (formada pelos mesmos membros, em 1965, e que elaborou o anteprojeto que resultou na Emenda Constitucional no 18/1965) (COSTA E SILVA, Oswaldo. Introdução. A vida e a obra de Gerson Augusto da Silva. In: SILVA, Gerson Augusto da. Estudos de Integração e de Harmonização Tributária. Coleção Gerson Augusto da Silva, n. 8. Brasília: ESAF, 1983, p. 18-34).

[5] Disponível aqui.

[6] Apesar de haver dezenas de menções em obras nacionais e estrangeiras atribuindo essa frase a Voltaire, a obra “They never sad it” (p. 24), organizada pela Oxford University Press, em 1989, registra (p. 124-125), que Voltaire jamais a proferiu ou escreveu, e que o equívoco se origina de um livro publicado em 1906 (“The Friends of Voltaire”), de S.G. Tallentyre (codinome literário de Evelyn Beatrice Hall) conta que Voltaire se manifestou sobre o livro De l’esprit, de Helvétius, que estava sendo condenado pelo Parlamento e atacado pelo Papa, entre outros, dizendo “Que alvoroço por causa de uma omelete!”. Questionada sobre a autoria de Voltaire para “I disapprove of what you say, but I defend to the death your right to say it”, Emely reconhecer que não quis dizer que Voltaire tenha afirmado textualmente a frase, mas que esta apenas sumarizava seu raciocínio (disponível aqui). A tese é endossada aqui. Ademais, a citação não figura entre as 416 de Voltaire verificadas em estudo veiculado pelo jornal francês Le Figaro (aqui).

[7] Exposição de Motivos no 867, publicada no Diário do Congresso Nacional de 21/11/1966, p. 13403.

[8] Em relação aos demais artigos do Decreto-Lei no 37/1966, 39 tiveram nova redação dada por leis posteriores, como a Lei no 10.833/2003 e a Lei no 12.350/2010; 24 foram expressamente revogados; e 67 já não produzem efeitos, e sequer foram disciplinados no Regulamento Aduaneiro – TREVISAN, Rosaldo. Uma Contribuição à Visão Integral do Universo de Infrações e Penalidades Aduaneiras no Brasil, na busca pela Sistematização. In: TREVISAN, Rosaldo (Org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. São Paulo: Aduaneiras, 2022, p. 622.

[9] Para as três categorias (regimes, tributos e penalidades), houve a criação de vários ditames legais posteriores, às vezes em convivência e outras em sobreposição ou até conflito com as disposições antigas.

[10] A última delas (e que faz menção a outras), aqui.

[11] Sobre tributos niveladores na importação, remete-se a: TREVISAN, Rosaldo. Direito Aduaneiro e Direito Tributário – Distinções básicas. In: Rosaldo Trevisan. (Org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro. 1. ed. São Paulo: LEX Editora, 2008, v. , p. 48-50; e BRANCO, Leonardo. Normas Tributárias Niveladoras. São Paulo: IBDT, 2025.

[12] No texto original do PL, art. 170, são revogados apenas os arts. 33 a 36; 37, caput e §§ 1º, 2º e 4º; 38 e 39; 42 a 45; 46, caput; 47 e 48; 51 e 52; 54; 71 a 77; 78, II; e 89 a 93, do Decreto-Lei 37/1966.

[13] BRANCO, Leonardo; KOTZIAS, Fernanda; MEIRA, Liziane Angelotti; PIERI; Fernando; TREVISAN, Rosaldo (org.). Território Aduaneiro. V. 1. São Paulo: Amanuense, 2023.

[14] BRANCO, Leonardo; KOTZIAS, Fernanda; MEIRA, Liziane Angelotti; PIERI; Fernando; TREVISAN, Rosaldo (org.). Território Aduaneiro. V. 2. São Paulo: Amanuense, 2024.

ara Especializada Aduaneira do Carf e membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

Fonte: Conjur

Mini Curriculum

Fernanda Kotzias
é sócia do Veirano Advogados, doutora em Direito do Comércio Internacional, advogada e consultora especializada em Comércio Internacional e Direito Aduaneiro, professora de pós-graduação e ex-conselheira titular do Carf.

Fernando Pieri
é sócio fundador da HLL & Pieri Advogados, mestre em Direito pela UFMG, pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa, professor de Direito Aduaneiro e Tributário da PUC MG, Vice-presidente da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB, presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG, multiplicador do Programa OEA da Receita Federal, membro de nº 51 e da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.

Leonardo Branco
é professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), pós-doutorando, doutor, mestre e especialista pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), com estágio doutoral pela Westfälische Wilhelms-Universität (WWU), presidente do Instituto de Pesquisas em Direito Aduaneiro (IPDA) e da Comissão de Estudos em Direito Aduaneiro do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), membro do Conselho Deliberativo da Associação Paulista de Estudos Tributários (Apet), ex-conselheiro titular e vice-presidente de Turma no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e sócio do Daniel, Diniz & Branco Advocacia Tributária e Aduaneira (DDTax).

Liziane Angelotti Meira
é presidente da 2ª Seção do Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

Rosaldo Trevisan
é doutor em Direito (UFPR), professor, assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA), do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), auditor-fiscal da RFB, conselheiro da Câmara Superior de Recursos Fiscais do CARF, presidente da Câm

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