O chief justice do Brasil

Por André Mendes Moreira

07/11/2025 12:00 am

Ao ensejo da passagem de bastão da presidência da mais alta corte do país, ocorrida ao final do mês de setembro deste ano, os holofotes se voltaram — como ocorre a cada biênio — para o novo ocupante do cargo.

Antonio Augusto/STF
A razão não é de somenos. À frente do Supremo Tribunal Federal, do Conselho Nacional de Justiça e atuando como chefe de um dos três Poderes – ombreando-se com os presidentes da República e do Congresso — o presidente do STF tem a capacidade de influenciar os rumos, embora jamais o conteúdo das decisões, do Poder Judiciário brasileiro.

Assim ocorre não apenas no Brasil, mas, em alguma medida, também nos EUA, de onde veio a inspiração para o modelo constitucionalista federativo que pauta a organização republicana nacional.

Visando a evidenciar os elevados misteres que a função traz, as linhas a seguir demonstram que o presidente da corte lega ao tribunal marca pessoal indelével, justificando toda a atenção que a mídia confere ao cargo.

Escolha da Presidência do STF e distinções em relação aos EUA
A federação brasileira, tal como hoje se estrutura, remonta à Constituição de 1891, promulgada dois anos após a queda da monarquia. Sob a liderança intelectual de Rui Barbosa, elaborou-se um texto que, emulando a experiência norte-americana, instituiu a República dos Estados Unidos do Brasil — denominação singelamente convolada para Brasil em 1967.

A Carta republicana inaugural criou o Supremo Tribunal Federal, então composto por 15 ministros. O número de integrantes variou ao longo do tempo, estabilizando-se, há décadas, nos atuais 11. O que não sofreu mutação, entretanto, foi o modo de ingresso e de escolha do líder da corte.

A indicação presidencial, seguida da aprovação pelo Senado, sempre constituiu a via de acesso ao tribunal. Uma vez empossados, os ministros elegem, por voto secreto, o presidente, cujo mandato atualmente é de dois anos, sem reeleição. Inteligentemente, desde cedo, os membros da corte perceberam que a disputa aberta pela chefia poderia gerar desnecessárias fricções internas. Diante disso, firmou-se um acordo tácito, ainda hoje observado, segundo o qual o cargo cabe ao ministro mais antigo que ainda não o tenha exercido.

O sistema brasileiro, portanto, prestigia o colegiado na escolha do presidente do tribunal — ao contrário do modelo norte-americano. Nos Estados Unidos, o presidente da República indica não apenas os associate justices (em número de oito), mas também o chief justice, o nono integrante da Suprema Corte, ali designado primus inter pares (“o primeiro entre seus pares”).

Aprovado pelo Senado americano, o magistrado recebe mandato vitalício, podendo servir enquanto o desejar ou enquanto a saúde o permitir (uma evolução em relação ao modelo brasileiro, que impõe precoce aposentadoria compulsória aos 75 anos). Assim, o chief justice ingressa diretamente na função e nela permanece por tempo indeterminado. O mais longevo exerceu o munus por 34 anos; o atual, já o faz há duas décadas.

Poderes do chief justice norte-americano
As funções do chief justice que evidenciam sua influência nas discussões judiciais norte-americanas são essencialmente quatro.

A primeira consiste no processo de seleção dos temas que serão efetivamente julgados. O presidente escolhe, dentre os aproximadamente 7.000 casos que chegam à corte todo ano, alguns poucos que ingressam na chamada “lista de discussão”, que será objeto de debate entre os nove. Os que não entram nessa categoria são enviados para a “lista morta” — a qual, conforme indica o nome, contempla os processos que nunca serão julgados pela corte.

Os demais justices podem pedir inclusões na “lista de discussão” — e efetivamente o fazem. Conforme o costume, se quatro juízes aceitarem o caso, ele será julgado posteriormente. O número de aceitações é baixo, gravitando entre 1% e 2%. Como é o chief justice que elabora inicialmente a lista e, ainda, preside as sessões internas nas quais a triagem ocorre, há sutil primazia do ponto de vista do presidente.

O segundo atributo é o de conduzir os debates durante a discussão com as partes. Por lá, os justices intervêm constantemente nas sustentações orais, instaurando verdadeiro contraditório verbal, no qual os advogados são os alvos. Nesse cenário, a função de árbitro do chief justice permite-lhe moderar excessos, ordenar as falas e, com isso, influir no desencadear dos fatos.

Para compreender o terceiro pilar da influência do chief justice, é preciso saber que, diferentemente do Brasil, nos EUA não se decide na frente do público, mas sim a portas fechadas. As sustentações orais são parte do procedimento que se inicia com a aceitação do caso. A opinião da corte, entregue a posteriori, resulta de diálogo interna corporis entre os magistrados. Esse debate também é conduzido pelo presidente.

Por fim — e provavelmente o mais relevante – o chief justice tem a prerrogativa de designar o redator da decisão majoritária sempre que seu voto integrar a corrente vencedora. A escolha do redator, a quem incumbe dar forma à decisão, possui alcance expressivo: embora a tese se fixe no julgamento, é o texto que a perpetua. Caso o chief justice figure na minoria, a redação caberá ao juiz mais antigo entre os vencedores.

Presidência do STF
Durante seu primeiro século de existência, o papel da Presidência do STF foi menos visível do que na contemporaneidade. Isso se deve não apenas às previsões regimentais restritivas da sua atuação, mas também do status da própria corte como representante de um Poder que lutava para ser aceito como tal.

O Regimento Interno de 1891 conferia ao presidente atribuições essencialmente organizacionais, sem maiores luzes. O subsequente, de 1909, previu o dever presidencial de elaborar e apresentar relatório anual circunstanciado das atividades da corte — tarefa que subsiste até hoje e que se consolidou como elo de comunicação institucional com a sociedade. O Regimento de 1940 manteve substancialmente as regras anteriores. O de 1970 outorgou ao presidente o poder de decidir medidas judiciais urgentes, inclusive em processos sob relatoria de outros ministros, durante o recesso.

Essa faculdade, ainda em vigor, expande as funções judicantes da Presidência em comparação com os demais ministros. Inobstante, até a década de 1970, o presidente do STF era mais administrador do que chefe de Poder. Ademais, o tribunal carecia de orçamento próprio, compelindo seu dirigente a negociar com o presidente da República as verbas indispensáveis ao funcionamento do colegiado.

A configuração moderna da Presidência do STF emergiu com o Regimento Interno de 1980 — ainda vigente, com alterações — e consolidou-se com a Constituição de 1988, que, dentre outras medidas, conferiu autonomia orçamentária ao Poder Judiciário.

Atualmente, incumbe ao presidente definir as pautas das sessões presenciais e híbridas do plenário. Ao contrário dos EUA, em que a admissão do caso por quatro dos nove magistrados obriga ao seu julgamento, no STF, uma vez admitida a causa, o seu desfecho depende da inclusão em pauta. Em outras palavras, o colegiado elabora o cardápio, mas a escolha do prato é da Presidência.

Tal prerrogativa, entretanto, era mais decisiva antes da criação do plenário virtual, que hoje responde por 99,5% dos julgamentos. No ambiente digital, cabe ao relator — e não ao presidente — pautar o caso que lhe foi distribuído. Em sessão assíncrona e sem debates virtuais, cada ministro adere ou diverge do relator. Findo o prazo de seis dias úteis, proclama-se o resultado.

Todavia, a qualquer tempo, qualquer ministro (inclusive o presidente) pode destacar o processo, remetendo-o ao plenário físico ou híbrido — o que devolve à Presidência o controle da pauta.

Outrossim, o papel administrativo da presidência de uma corte amparada por sólida estrutura física, de pessoal e orçamentária tomou contornos que, desde sua criação e ao longo de todo o século 20, eram impensáveis.

A criação da TV Justiça por iniciativa da Presidência, em 2002, ilustra o alcance dessa autoridade. Com isso, os representantes máximos do Judiciário passaram a fazer parte do cotidiano dos cidadãos, indo muito além dos muros jurídicos que até então cercavam o que se fazia naquele recinto. Nesse cenário, sentar-se na cadeira central, distribuir a palavra e organizar o julgamento, muito embora não influa no resultado da decisão, colabora para a formação, no público, da imagem da instituição – e, em especial, de seu líder.

No plano institucional, cumpre lembrar que o presidente do STF acumula a chefia do Conselho Nacional de Justiça. Criado em 2004, o CNJ, composto por 15 membros com mandato bienal oriundos do Judiciário, do Ministério Público e da advocacia, tem por atribuição “o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes” (artigo 103-B, §4º, da Constituição). Trata-se, portanto, de órgão de relevo singular, que alargou de forma inédita o papel da Presidência do STF.

Em suma
Desde sua criação, o Supremo contou com 51 presidentes. O número aproxima-se do de presidentes da República, que foram 39 no mesmo período – proximidade reveladora da importância do cargo.

Nos Estados Unidos, a designação oficial é chief justice of the United States, e não chief justice of the Supreme Court. A escolha das palavras denota a multidimensionalidade de seu papel. Também entre nós, o impacto do que se faz na Presidência da Corte Constitucional repercute não apenas sobre o Poder Judiciário, mas sobre as estruturas do Estado e a própria tessitura social que amalgama 200 milhões de patrícios em torno de um projeto comum de nação.

Mini Curriculum

é professor da Faculdade de Direito da USP, advogado e parecerista, sócio de Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados.

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