Modulação no caso Difal e o erro do STF ao privilegiar a inadimplência
Por Arthur M. Ferreira Neto
24/10/2025 12:00 am
Não é de hoje que a modulação de efeitos em matéria tributária tem sido justificada com base no argumento recorrente — porém falacioso — de que, ao garantir o direito a alguns contribuintes — ao invés de estender os efeitos da decisão a todos os prejudicados pela inconstitucionalidade reconhecida —, o STF (Supremo Tribunal Federal) estaria, de forma razoável e equilibrada, tanto preservando a segurança jurídica, quanto promovendo a isonomia.
Ocorre que, como já amplamente criticado pela doutrina, esse tipo de decisão no campo tributário, além de reproduzir o que há de mais distorcido no pensamento utilitarista, acaba por agredir — ao invés de promover — tanto o ideal da confiança/previsibilidade/estabilidade, quanto a busca pelo tratamento isonômico que deveria alcançar todos contribuintes em situação semelhante.
Grande parte dessa disfunção decorre da escolha, quase sempre casuística e imprevisível, de critérios modulatórios distintos para cada caso, o que surpreende os operadores do Direito e seleciona arbitrariamente aqueles poucos contribuintes que poderão usufruir dos efeitos econômicos das decisões do STF.
Ocorre que não há, hoje, um aspecto criticável da nossa jurisdição tributária que não possa ficar ainda pior.
É o que se vê na surpreendente proposta de modulação de efeitos apresentada, semana passada, no julgamento — ainda pendente de conclusão — do Tema 1.226, no qual a maioria dos ministros do STF reconheceu a constitucionalidade da LC 190/2022, que estabeleceu novos critérios para a cobrança do Diferencial de Alíquotas do ICMS (Difal), permitindo a sua exigência a contar de abril de 2022, observando apenas a anterioridade nonagesimal.
Colocando de lado as críticas ao mérito do julgado, a real preocupação surge quando analisamos o novo critério modulatório sugerido pelo ministro Flávio Dino e já acompanhado por outros cinco ministros (Fux, Mendonça, Mendes, Barroso e Fachin).
No seu voto, aderindo “integralmente à tese proposta pelo Relator”, entendeu que seria plausível, em nome da segurança jurídica e da proteção confiança, preservar os interesses do “contribuinte médio” que “não podia prever que seria compelido a recolher o diferencial com efeitos retroativos dentro do mesmo exercício financeiro” e “puniria justamente os agentes econômicos que agiram de boa-fé ao buscar o Poder Judiciário antes da consolidação jurisprudencial”.
Com base nesses fundamentos, propôs ele que apenas os contribuintes que cumprirem dois requisitos cumulativos fossem beneficiados com a não exigência do Difal em 2022, quais sejam: o já conhecido critério temporal no ajuizamento da ação, que no caso restou fixado até 29 de novembro de 2023 (data do julgamento da ADI 7066) e o novo parâmetro de modulação pautado no fato de ter “deixado de recolher o tributo naquele exercício”.
Inadimplência
Assim, além da instabilidade que já caracteriza as decisões de modulação de efeitos do STF, inaugura-se agora mais uma hipótese de separação irracional daqueles que poderão efetivamente se beneficiar do julgamento final proferido pela Corte Suprema: a classe de contribuintes que escolheu (ou conseguiu) ficar inadimplente em relação ao tributo discutido em juízo. Se prevalecer esse entendimento, dividir-se-á, de forma arbitrária, os contribuintes em dois grupos: de um lado, aqueles que observaram a ordem natural das coisas, confiaram na presunção de validade das leis e recolheram os tributos enquanto discutiam sua constitucionalidade; de outro, os que, desconfiando da efetividade da proteção judicial, não pagaram — seja por estratégia, negligência ou pela sorte de terem obtido liminar. Em última análise, separa-se o joio do trigo… para proteger o joio.
Aliás, esse julgado reacende uma discussão milenar: seria possível fazer justiça cortando o direito “pela metade”? O dilema remete ao célebre episódio bíblico do Rei Salomão [1], em que duas prostitutas reivindicam a maternidade do mesmo bebê. Diante do impasse entre as duas no provar quem seria a mãe, Salomão propõe uma solução pretensamente proporcional, mas marcada por brutalidade: cortar a criança em duas partes, dando metade a cada mulher.
A verdadeira mãe, tomada por amor, implora que a criança seja entregue à outra, desde que com vida, enquanto a falsa aceita a divisão. A deliberação inicial de Salomão, porém, havia sido planejada, pois apenas propôs cortar em partes o neném para poder alcançar aquilo que era efetivamente justo, ou seja, entregar a criança inteira e viva àquela que demonstrou verdadeiro instinto maternal. A moral dessa história é clara: há casos em propor dividir os direitos dos envolvidos em partes apenas é forma de promover um injusto ainda maior — ou até absurdo! Em outras palavras, há situações em que dar parte do que é devido não é fazer justiça — mas é justamente negá-la.
Infelizmente, ao que tudo indica, essa proposta de modulação de efeitos que hoje reúne maioria no STF parece não compreender bem a lição essencial do julgamento do Rei Salomão. Tal proposta de modulação divide os contribuintes em grupos distintos a partir de dois filtros arbitrários: o critério temporal (ajuizamento até 29/11/2023), que já foi objeto de crítica no passado, e agora um inédito critério material [2] — o não pagamento do tributo. E esse segundo critério é o que penaliza precisamente o comportamento daquele indivíduo que agiu com cautela e boa-fé, buscando a desejável conformidade fiscal. De outro lado, parece que temos um reforço na sinalização de que, na prática, o nosso sistema tributário não apenas protege, mas efetivamente privilegia o relutante em cumprir a lei, premiando, inclusive, o inadimplente contumaz.
Princípio da justiça tributária
Ao consagrar esse questionável discrímen entre particulares (os que pagaram e os que deixaram de pagar seus tributos), a Corte acaba invertendo a axiologia constitucional, dando proteção exclusiva àqueles que abertamente não seguiram o padrão jurídico esperado de cumprir no prazo com suas obrigações tributárias.
Além disso, também veio a ignorar o novo princípio da justiça tributária que impõe não apenas um tratamento isonômico entre os contribuintes que estejam em posição equiparada, mas que exige que o Judiciário dê proteção efetiva (não apenas formal) a todos aqueles que sofrem lesão de acordo com a Constituição.
Em vez disso, a Corte ensaia aplicar uma espécie justiça distributiva excludente e seletiva, em que cada um receberá o seu conforme a sua habilidade de “deixar de pagar tributos”, minando a confiança daqueles contribuintes que ingressaram com antecedência e precaução no Judiciário com o propósito específico de ver resguardado não apenas a sua pretensão individual, mas o Estado de direito como um todo.
O contribuinte que, por prudência ou convicção, recolheu os valores em disputa, agora poderá se ver fora da proteção que a própria decisão do STF reconhece como devida. Já quem não pagou — por escolha estratégica, por ter obtido medida liminar ou ter conseguido depositar em juízo — será premiado.
Portanto, o efeito colateral dessa decisão poderá ser dramático, reconfigurando, no futuro, a atitude que jurisdicionados passarão a adotar. Isso porque essa modulação irá estimular o comportamento do contribuinte que aposta contra o sistema, que passará a não recolher tributo que discute em juízo. Toda a dinâmica do contencioso tributário poderá ser alterada por força desse critério de modulação, caso venha ele a prevalecer, na medida em que o litigante que ver a pagar o tributo que é objeto de demanda judicial estará assumindo o risco de tornar definitivo esse pagamento e inquestionável a respectiva exigência tributária.
Desincentivo à conformidade fiscal
Com isso, desestimula-se a confiança no Judiciário, na medida em que pune quem acreditou que poderia discutir e ainda assim manter seus deveres em dia. Na prática, essa modulação passará agora a forçar o contribuinte a não pagar tributos sub judice, na expectativa de que futuramente possa ser preservado em uma modulação semelhante. O sistema tributário brasileiro, já permeado por altos índices de judicialização e de desconfianças, ganha agora mais um desincentivo à conformidade fiscal.
Além disso, a aplicação desse requisito — o “deixar de pagar” — ignora as inúmeras dificuldades enfrentadas por milhares de contribuintes que, mesmo ajuizando ações, podem não obter liminares, tudo a depender de um fator externo e que foge ao seu controle: o entendimento casuístico e restritivo dos órgãos jurisdicionais da sua região.
O mesmo ocorre com aqueles que desejavam depositar valores judicialmente, na medida em que, ainda hoje, é possível encontrar alguns tribunais que negar ao contribuinte a possibilidade de livremente depositar em juízo, mesmo que se saiba que essa pretensão é um direito subjetivo do particular. Portanto, tribunais com jurisprudência mais protetiva ao contribuinte — e que possuem tendência de deferirem medidas liminares ou concederem autorização para livremente depositar — estarão ao final preservando o direito material desses indivíduos, ao passo que tribunais com alinhamento mais conservador e fiscalista estarão, desde o início, decretando o fim da pretensão desses particulares a não pagar tributo sub judice.
Veja-se, pois, que, nesse cenário, haverá um evidente desequilíbrio concorrencial, pois alguns agentes econômicos terão uma vantagem no mercado diante de redução fiscal nos seus custos e tudo pelo fator aleatório e incontrolável da interpretação da lei tributária adotada na jurisdição onde está sediado o contribuinte.
Nesse contexto, quem optou por agir de forma institucionalizada — ingressando com ação judicial e recolhendo os tributos — deveria receber, no mínimo, o mesmo tratamento conferido àqueles que não recolheram. Qualquer critério que diferencie essas posturas de forma tão assimétrica atenta diretamente contra os princípios constitucionais da isonomia, da segurança jurídica e da confiança legítima, pilares indispensáveis ao sistema tributário.
Essa proposta de modulação representa um “juízo salomônico“ mal interpretado, que parte da falsa noção de que se pode “dividir o direito“ em partes para fazer justiça. Mas, como no conto bíblico, há momentos em que dividir o bebê é matar o princípio jurídico que se pretende proteger. Como ensina o episódio bíblico, há situações em que consagrar só a alguns o direito significa destruir o próprio objeto da justiça. Modulações desse tipo não promovem equidade; apenas deformam o sistema.
Ao restabelecer o justo apenas a alguns — i.e., àqueles que “tiveram a sorte” de não pagar —, o STF incorre em contradição: afirma um direito que privilegiará o inadimplente, entregando o bebê a todos os demais contribuintes. Porque sabia que a justiça não se faz com retalhos de direito, mas com a preservação plena dos valores que o sustentam. Justiça verdadeira é aquela que protege todos os prejudicados com a mesma consideração e integridade — e isso é exatamente o que essa modulação, como proposta, falha em realizar.
[1] Esse episódio é narrado em 1 Reis 3:16-28.
[2] O STJ, em 2023, já veio a se valer de parâmetro modulatório semelhante ao preservar o direito de limitação de 20 Salários mínimos em contribuições de terceiros aos contribuintes que obtiveram decisões judiciais ou administrativas favoráveis até 25 de outubro de 2023, data do início do julgamento dos recursos repetitivos (Tema 1.079).
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é advogado, mestre e doutor em Direito e Filosofia, professor adjunto e professor permanente do PPGD da UFRGS e vice-presidente do TARF-RS
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