Modulação, DIFAL e o risco de premiar o inadimplente

Por Marcelo Magalhães Peixoto

27/10/2025 12:00 am

1. O problema: quem pagou, pagou; quem não pagou, não paga

Nos últimos dias, li com atenção o artigo do professor Arthur M. Ferreira Neto, publicado em 24 de outubro de 2025, intitulado “Modulação no caso Difal e o erro do STF ao privilegiar a inadimplência.”
É uma leitura obrigatória para quem se preocupa com o sentido de justiça nas decisões tributárias, especialmente quando o Supremo Tribunal Federal decide modular efeitos de seus próprios julgamentos.
Arthur expõe com precisão um fenômeno que se repete: a modulação, usada sob o pretexto de garantir segurança jurídica, termina por distribuir a injustiça de forma seletiva. O caso do DIFAL (Tema 1.226) é emblemático.
A proposta que hoje reúne maioria no STF, liderada pelo ministro Flávio Dino, estabelece que apenas os contribuintes que ajuizaram ação até 29/11/2023 e não recolheram o tributo em 2022 seriam beneficiados pela não exigência do DIFAL naquele exercício.
Em outras palavras:

– quem pagou, mesmo discutindo judicialmente, fica sem direito à restituição;
– quem não pagou, por estratégia, liminar ou sorte, é premiado com o benefício da modulação.
É o tipo de raciocínio que inverte a lógica da boa-fé e da conformidade fiscal. A mensagem é perigosa: cumprir a lei vira um mau negócio.

2. Um padrão que se repete e o falso dilema da segurança jurídica

O mais grave é que não se trata de um caso isolado. O STJ, em 2023, seguiu linha semelhante no Tema 1.079, que tratava da limitação das contribuições de terceiros (Sistema S, INCRA etc.) a 20 salários mínimos.
Na ocasião, o Tribunal reconheceu a tese favorável aos contribuintes, mas restringiu seus efeitos apenas a quem já tinha decisão judicial ou administrativa favorável até 25/10/2023, data do início do julgamento.
Mais uma vez, quem já havia pago, perdeu; quem não pagou, ganhou.
Esse padrão, de premiar a inadimplência e punir a prudência, mina a confiança no sistema, tornando as decisões imprevisíveis e arbitrárias.
Em nome da “segurança jurídica”, o que se produz é insegurança permanente.
Arthur chama isso de falácia utilitarista: o discurso da segurança jurídica, na prática, serve para dividir o direito em partes, como na metáfora do Rei Salomão, só que sem a sabedoria do rei bíblico.
Dividir o bebê, aqui, é matar o próprio princípio da justiça.
A verdadeira segurança não nasce da limitação do direito, mas da coerência e integridade das decisões judiciais, e da certeza de que agir corretamente nunca será um erro.

3. O risco institucional e a lógica do jogo

Ao premiar o inadimplente, o STF cria um incentivo perverso. O contribuinte passa a entender que pagar tributo discutido em juízo é arriscado: se perder, o pagamento é definitivo; se ganhar, dificilmente será restituído.
Logo, o comportamento racional passa a ser não pagar e esperar a modulação.
Essa lógica pode ser explicada à luz da Teoria dos Jogos, como mostram Cristiano Carvalho e Bradson Camelo em Análise Econômica do Direito Tributário (JusPodivm, 2025).
Quando o sistema jurídico sinaliza que quem não paga tende a ser premiado, o agente econômico reage de modo estratégico, buscando maximizar o próprio ganho e adotando uma postura de free rider, aquele que se beneficia do esforço alheio sem contribuir.
O resultado é previsível: rompe-se o equilíbrio cooperativo entre Estado e contribuinte.
O jogo, que deveria ser de confiança recíproca, transforma-se em um jogo de desconfiança e oportunismo, corroendo a legitimidade do sistema tributário.
Em vez de estimular a conformidade fiscal, a modulação deseduca o contribuinte e institucionaliza a descrença.

4. Conclusão: justiça não se faz pela metade

A justiça tributária exige isonomia, previsibilidade e boa-fé.
Não é justo, nem constitucional, proteger quem desobedeceu à lei, punindo quem a cumpriu.
Ao modular dessa forma, o STF fere a confiança legítima e os próprios pilares da segurança jurídica.
Como alerta Arthur Ferreira Neto, não se faz justiça cortando o direito pela metade.
E a própria Teoria dos Jogos, traduzida em linguagem simples, chega ao mesmo resultado: quando o sistema recompensa o comportamento oportunista, todos os jogadores acabam perdendo.
O contribuinte deixa de confiar, o Estado arrecada menos, e a relação jurídica, que deveria ser de cooperação, se transforma num tabuleiro de desconfiança mútua.
Em síntese: não há segurança jurídica possível quando o próprio sistema ensina que cumprir a lei é desvantagem.
Essas decisões corroem a confiança, transformam o contencioso em estratégia e premiam o inadimplemento como virtude.
É urgente restabelecer a integridade das decisões judiciais e lembrar que a verdadeira justiça não se mede pela economia do Estado, mas pela coerência do Direito.

Referências

FERREIRA NETO, Arthur M. “Modulação no caso Difal e o erro do STF ao privilegiar a inadimplência.” 24/10/2025.
STJ, Tema 1.079 — Limitação das contribuições de terceiros a 20 salários mínimos. Julgado em 25/10/2023.
CARVALHO, Cristiano; CAMELO, Bradson. Análise Econômica do Direito Tributário. Salvador: JusPodivm, 2025.

Mini Curriculum

Presidente Fundador da APET – Associação Paulista de Estudos Tributários. Mestre e Doutorando pela PUC/SP.

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