Lições de Paulo de Barros Carvalho no Conselho de Contribuintes
Por Alexandre Evaristo Pinto
20/08/2025 12:00 am
AcademiaTributário
Na última sexta-feira, morreu aos 86 anos Paulo de Barros Carvalho. Dono de um dos currículos mais impressionantes do Direito Tributário brasileiro, o professor é um dos poucos a alcançar a posição de titular tanto na Faculdade Paulista de Direito da PUC-SP quanto na Faculdade de Direito da USP, tendo sido agraciado com o título de professor emérito em ambas as universidades.
Além de se destacar pela sua rigidez metodológica, as obras do professor Paulo possuem um alcance ímpar, sendo citadas em milhares de dissertações de mestrado, teses de doutorado, artigos científicos, livros, precedentes administrativos e judiciais.
Embora todos os fatos acima descritos sejam notórios, é importante mencionar que o professor Paulo foi auditor fiscal da Receita Federal entre os anos de 1963 e 1993, tendo um importante papel enquanto autoridade fazendária na implementação e consolidação tanto do Código Tributário Nacional (que é de 1966), quanto da Secretaria da Receita Federal (que é de 1968).
Todavia, neste artigo busco destacar uma atuação menos comentada do professor Paulo, mas extremamente relevante: a de conselheiro julgador do então Conselho de Contribuintes, indicado pela Fazenda Nacional.
Nesse sentido, ao final da década de 1970 do século passado, o professor Paulo foi conselheiro da 4ª Câmara do 1º Conselho de Contribuintes, sendo que já era possível identificar o mesmo rigor metodológico aplicado na atividade doutrinária também em sua atuação como conselheiro.
Caso do arbitramento dos rendimentos com base na renda presumida, mediante utilização dos sinais exteriores de riqueza e a atuação do professor Paulo como conselheiro julgador
O arbitramento de rendimentos do contribuinte com base na renda presumida, identificada a partir de sinais exteriores de riqueza, foi instituído pelo artigo 9º da Lei nº 4.729/65, nos seguintes termos:
“Art 9º. O lançamento ex offício relativo às declarações de rendimentos, além dos casos já especificados em lei, far-se-á arbitrando os rendimentos, com base na renda presumida, através da utilização dos sinais exteriores de riqueza que evidenciem a renda auferida ou consumida pelo contribuinte.”
Tal dispositivo legal foi reproduzido em Regulamentos do Imposto de Renda, tais como nos artigos 55, “e”, do Decreto nº 58.400/65 (RIR/65), 39, “e”, do Decreto nº 76.186/75 (RIR/75) e 39, V, do Decreto nº 85.450/80 (RIR/80).
Spacca
No Recurso nº 28.853 (de 24/10/77), a turma decidiu de forma unânime por dar provimento ao recurso voluntário afastando a tributação da renda presumida decorrente do recebimento de depósitos bancários de origem não comprovada, visto que ainda que tais montantes pudessem ser considerados sinais exteriores de riqueza, não haveria previsão legal de determinação da alíquota a ser aplicada sobre essa base de cálculo presumida.
O então conselheiro julgador Paulo de Barros Carvalho apontava que a fiscalização solicitava os extratos bancários da pessoa física, cujo patrimônio e rendimentos estavam sendo investigados, requerendo que o contribuinte demonstrasse a procedência de todos os depósitos, calculando a renda arbitrada a partir das parcelas não comprovadas.
O rigor metodológico do referido professor é demonstrado no seguinte trecho:
“Impõe-se, contudo, a observância de pequena inversão no labor interpretativo, como proposta metodológica que se arma ao escopo de facilitar a compreensão da mensagem normativa. Excogitaremos, primeiramente, do tópico: poderão os depósitos bancários, de origem não comprovada, exprimir sinais exteriores de riqueza, hábeis para evidenciar a renda auferida ou consumida pelo contribuinte?”
Ao analisar o tema, Paulo de Barros Carvalho assinalou que o conceito de “sinais exteriores de riqueza” é extremamente vago e impreciso, visto que é demasiadamente amplo, abrangente e fluído. Ainda assim, prossegue afirmando que isso não impediria que houvesse um mínimo de conteúdo significativo que permitisse a formação de um juízo sobre a situação patrimonial de um determinado indivíduo, de modo que poderiam se enquadrar como tais sinais a aquisição de um automóvel de luxo, de uma casa ampla e suntuosa ou de joias de grande valor, assim como os depósitos bancários de procedência desconhecida ou não satisfatoriamente explicitada poderiam representar uma manifestação de riqueza do indivíduo.
Todavia, destaca Paulo de Barros Carvalho que em tal hipótese de tributação arbitrada, o legislador se utilizou do mecanismo de presunção relativa. Merece transcrição o seguinte trecho de seu voto:
“O arbitramento é esquema singelo de obtenção de quantias aproximadas, utilizável, por via de regra, quando se não pode captar, de forma adequada, os índices e valores normais estabelecidos para a composição da dívida tributária. Nesse sentido, arbitra-se o lucro da pessoa jurídica, na impossibilidade de apurar-se o lucro real, base do cálculo do gravame.
A técnica do arbitramento consiste na aplicação de fator percentual sobre um valor conhecido. É a conjugação de dois elementos numéricos, do quais um é estabelecido no plano normativo, enquanto outro é referido também na norma, mas colhido na análise circunstancial do evento tributado.”
Como se observa, a distinção entre norma geral e abstrata e a norma individual e concreta já podia ser vislumbrada nos votos do professor Paulo. Prossegue ainda discorrendo sobre o arbitramento nos seguintes termos:
“A taxa do arbitramento está sempre fixada no próprio texto normativo, enquanto os valores da base não são conhecidos, mas simplesmente referidos ‘in genere’, significa dizer, há menção a determinado valor que será colhido, especificamente, na pesquisa das condições fáticas do sucesso tributado.”
A partir das premissas muito bem fixadas em seu voto, o professor Paulo corajosamente aponta que embora o legislador tenha definido a base de cálculo do arbitramento, não definiu a alíquota a ser aplicável sobre tal base, conforme se depreende do seguinte trecho:
“Esdrúxulo o desenho típico representado pela fórmula literal do art. 39, alínea “e”, do Decreto n. 76.186/75. Estatui inequívoca hipótese de arbitramento, sem, todavia, firmar o coeficiente da operação. Estipula a base, mas não alude à percentagem; discrimina o suporte, porém omite a taxa. (…)
Salta aos olhos que a base do arbitramento será a renda presumida, através da utilização de sinais exteriores de riqueza. Mas qual a percentagem, taxa ou coeficiente que haverá de aplicar-se sobre essa base, em ordem à obtenção dos rendimentos arbitrados? Aqui reside a falha legislativa. Olvidou-se o legislador, compelido, talvez, pelo açodo de tarefa tão implexa, tolhido pelas dificuldades ingentes de disciplinar o enredo cósmico do imposto de renda, de estabelecer qual seria a percentagem aplicável sobre o suporte já determinado. Discrepou do tratamento dado a situações consímiles, em que não só descreveu a base, como precisou a taxa.”
Conclui o professor Paulo pela procedência do recurso voluntário, mas antes assevera sobre os limites da atuação da autoridade fazendária, ao assim escrever:
“Ora, se o art. 9º, da Lei n. 4.729/65, por lapso, incorreu na cinca de não aludir à percentagem ou ao coeficiente do arbitramento, ressalta à mais pura evidência que tal tarefa não seria suprível por disposição regulamentar, como verdadeiramente não o foi. Permaneceu impraticável a tributação dos sinais exteriores de riqueza, à míngua de expressa referência legal. (…)
E seria anti-tético afirmar que diante da omissão legal e regulamentar, pudesse caber ao funcionário autuante estipular a grandeza percentual que o legislador tributário não determinou.”
O papel do Conselho de Contribuintes como órgão de controle da legalidade dos atos administrativos de lançamento tributário fica nítido por meio da leitura dos excertos aqui trazidos do voto do então conselheiro julgador Paulo de Barros Carvalho, indicado pela Fazenda Nacional.
É fundamental que essa lição ministrada pelo professor Paulo fora dos bancos acadêmicos seja levada adiante por todos que atuam diretamente na construção de um Direito Tributário mais previsível e justo.
Evolução da legislação e dos precedentes sobre arbitramento dos rendimentos com base na renda presumida, mediante utilização dos sinais exteriores de riqueza
Embora o arbitramento de rendimentos do contribuinte com base na renda presumida, identificada a partir de sinais exteriores de riqueza, estivesse previsto no artigo 9º da Lei nº 4.729/65, a jurisprudência se firmou no sentido da não legitimidade de tal tributação, inclusive com a edição da Súmula nº 182 do Tribunal Federal de Recursos, cujo teor era o seguinte: “é ilegítimo o lançamento do imposto de renda arbitrado com base apenas em extratos ou depósitos bancários”.
O próprio Poder Executivo editou o Decreto-Lei nº 2.471/88, que previu em seu artigo 9º, VII, que ficam cancelados os processos administrativos, os débitos para com a Fazenda Nacional, inscritos ou não em Dívida Ativa da União, ajuizados ou não, que tenham tido origem na cobrança do imposto de renda arbitrado com base exclusivamente em valores de extratos ou de comprovantes de depósitos bancários.
Dois anos depois, foi editada a Lei nº 8.021/90, que trouxe, em seu artigo 6º, a possibilidade de arbitramento dos rendimentos com base na renda presumida, mediante utilização dos sinais exteriores de riqueza, incluindo em sua definição a realização de gastos incompatíveis com a renda disponível do contribuinte. O §5º do referido artigo dispunha ainda que o arbitramento poderia ser efetuado com base em depósitos ou aplicações realizadas junto a instituições financeiras, quando o contribuinte não comprovasse a origem dos recursos utilizados nessas operações.
A vagueza relativa ao conceito de sinais exteriores de riqueza foi diminuída com a publicação do artigo 9º, §1º, da Lei nº 8.846/94, que enumerou como bens representativos de sinais exteriores de riqueza: automóveis, iates, imóveis, cavalos de raça, aeronaves e outros bens que demandem gastos para sua utilização.
Ainda assim, a aplicação de tal arbitramento era bastante complexa, o que levou à edição do artigo 42 da Lei nº 9.430/96, que caracterizou como omissão de receita ou de rendimento os valores creditados em conta de depósito ou de investimento mantida junto à instituição financeira, em relação aos quais o titular, pessoa física ou jurídica, regularmente intimado, não comprove, mediante documentação hábil e idônea, a origem dos recursos utilizados nessas operações.
No que tange especificamente às pessoas físicas, o § 4º do referido artigo dispõe que os rendimentos omitidos serão tributados no mês em que considerados recebidos, com base na tabela progressiva vigente à época em que tenha sido efetuado o crédito pela instituição financeira.
Este é o cenário jurídico que vem sendo analisado por centenas de acórdãos do Carf nos últimos 20 anos em que se discute a omissão de rendimentos decorrentes de depósitos bancários não identificados.
Não é à toa que os julgamentos envolvendo depósitos bancários de origem não comprovada acabaram servindo de base para a formação de diversas Súmulas do Carf, dentre as quais podemos destacar as de número 25, 26, 29, 30, 32, 34, 38, 61 e 120.
Cabe a menção expressa tanto ao teor da Súmula Carf nº 26, que dispõe que: “a presunção estabelecida no artigo 42 da Lei nº 9.430/96 dispensa o Fisco de comprovar o consumo da renda representada pelos depósitos bancários sem origem comprovada”, quanto ao teor da Súmula Carf nº 38, cujo teor é o seguinte: “o fato gerador do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física, relativo à omissão de rendimentos apurada a partir de depósitos bancários de origem não comprovada, ocorre no dia 31 de dezembro do ano-calendário”.
Conclusões
Esta é uma singela homenagem ao professor Paulo de Barros Carvalho, de quem tive a honra de ser aluno nos bancos da pós-graduação “stricto sensu” da Faculdade de Direito da USP. Como se observa ao longo do artigo, a contribuição do professor Paulo ao Direito Tributário não ficou adstrita à sua atividade docente e doutrinária, mas também enquanto conselheiro do antigo Conselho de Contribuintes, ele sempre primou por um rigor metodológico extremo e pela importância do controle de legalidade do lançamento tributário, enquanto norma individual e concreta.
Mini Curriculum
é professor concursado da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP) e da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (Eaesp/FGV), conselheiro do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN), diretor financeiro da Fundação de Apoio aos Comitês de Pronunciamentos Contábeis e de Sustentabilidade (FACPCS), vice-presidente executivo da Apet, ex-conselheiro do Carf, doutorando em Controladoria e Contabilidade pela Universidade de São Paulo (USP), doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP, mestre em Direito Comercial pela USP e ex-presidente da Aconcarf.
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