IOF: o regime constitucional e a recente decisão do STF
Por Sergio André Rocha
12/08/2025 12:00 am
Recentemente, um imposto que usualmente não é dos mais populares ganhou espaço em todos os veículos de mídia. Naturalmente, estamos nos referindo ao Imposto sobre Operações Financeiras (IOF).
Acompanhando as muitas manifestações sobre o regime constitucional do IOF identificamos mitos e equívocos que ganharam grande repercussão, o que nos motivou a escrever este pequeno texto.
Considerando que a matéria chegou ao STF (Supremo Tribunal Federal) por meio da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 96 (ADC 96) e das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 7.827 e 7.839 (ADIs 7.827 e 7.839), nas quais foi proferida decisão liminar conjunta pelo Ministro Alexandre de Moraes, apontaremos os pontos de aproximação e distanciamento entre nossa posição e a que foi acolhida naquela decisão.
Neste texto vamos focar nossa atenção apenas na alteração de alíquotas, não abordando outros temas que foram também tratados na decisão, como a incidência do IOF sobre operações de entidades abertas de previdência complementar e o caso do chamado “risco sacado”.
Imposto regulatório?
Um dos mitos repetidos reiteradamente sobre o IOF é que ele seria uma espécie da “imposto regulatório”, que somente poderia ser utilizado para finalidades extrafiscais.
A leitura da Constituição revela que não existe, no texto constitucional, qualquer menção a um “imposto regulatório”. Até mesmo as Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico têm finalidade arrecadatória. A revisão dos impostos previstos nos artigos 153, 155, 156 e 156-A da Constituição esclarece que não há referência a um imposto que não possa arrecadar. Como tenho insistido, imposto que não arrecada é uma contradição de termos. [1]
Nessa linha de ideias, todos os impostos previstos na Constituição Federal podem ser utilizados para arrecadar, sem exceção. Da mesma maneira, todos os impostos previstos na Constituição podem ser manejados para fins extrafiscais, ou seja, para que se realize alguma indução, positiva ou negativa, na sociedade. [2]
Dessa forma, segundo vemos é simplesmente equivocado fazer-se referência a “impostos regulatórios”, caso se pretenda, com esta classificação, denotar a existência de um conjunto de impostos que só poderia ser utilizado com finalidades extrafiscais. Portanto, rejeitamos a possibilidade jurídica de um conceito forte de “imposto regulatório”.
Spacca
Por outro lado, se não existem impostos cuja finalidade exclusiva seja extrafiscal, é verdade que há impostos em relação aos quais a extrafiscalidade é típica e não excepcional. Este é o caso do Imposto de Importação, do Imposto de Exportação, do IPI e do IOF. Embora não seja a posição que vimos sustentando (ver aqui e aqui), a maioria dos autores e autoras parece incluir o Imposto Seletivo neste conjunto.
Assim sendo, entendemos ser possível a utilização da expressão “impostos regulatórios” para referência aos aludidos impostos caso ela denote um conceito fraco, no sentido de que há impostos em relação aos quais a extrafiscalidade lhes é típica e não excepcional.
Analisando o voto do ministro Alexandre de Moraes, notamos que ele não se posicionou de forma explícita sobre este tema.
Com efeito, embora Alexandre de Moraes tenha destacado que o IOF é um “importantíssimo instrumento de regulação do mercado financeiro e política monetária” (p. 5) e tenha citado precedentes do STF nos quais ressaltou-se a “função precipuamente regulatória e extrafiscal” deste imposto (p. 6-7), nada em seu voto nos parece negar que o IOF poderia ser utilizado com fim exclusivamente arrecadatório. Segundo vemos, a manifestação do Ministro Alexandre de Moraes se aproxima do conceito fraco de extrafiscalidade que defendemos acima.
No único parágrafo em que tratou desta questão, o voto do Ministro Alexandre de Moraes pareceu se alinhar ao que vimos sustentando, [3] no sentido de que o problema de utilização do IOF para “fins meramente arrecadatórios” estaria relacionado a um possível “desvio de finalidade” na utilização do regime tributário constitucional excepcional deste tributo. Voltaremos a este tema adiante.
Delegação legislativa limitada e condicionada do § 1º do Artigo 153 da CF
Em recente artigo sobre delegações legislativas em matéria tributária, [4] defendi que a Constituição Federal somente aceita delegações limitadas e condicionadas, no sentido de que o Poder Executivo nunca tem uma competência ampla para inovar o ordenamento jurídico, devendo sempre observar o critério de decisão estabelecido pelo Poder Legislativo.
Com efeito, sabe-se que no caso do II, do IE, do IPI e do IOF, tendo em vista sua função regulatória potencial, [5] a Constituição estabeleceu um regime jurídico próprio, que destoa daquele aplicável aos demais impostos, uma vez que esses tributos estão excluídos da aplicação das regras gerais de legalidade e anterioridade.
A base deste regime especial pode ser encontrada no § 1º do artigo 153 da Constituição, cuja redação é a seguinte:
“§ 1º É facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V.” (destacamos)
Este parágrafo evidencia que o regime constitucional atípico do II, do IE, do IPI e do IOF não é arbitrário nem aleatório, mas que depende efetivamente de terem sido atendidas “as condições e os limites estabelecidos em lei”.
Nem esse dispositivo, nem qualquer outro previsto na Constituição Federal, estabelece regra sobre os fins que devem ser perseguidos para que seja legítima a majoração do IOF por ato do Poder Executivo, sem atenção às regras de anterioridade e da legalidade.
Logo, não nos parece que a própria Constituição tenha previsto este ou aquele objetivo para que o IOF seja majorado por decreto. O que a Constituição fez foi delegar ao legislador infraconstitucional a competência para estabelecer tais condições e limites.
Nesse ponto, divergimos da manifestação do ministro Alexandre de Moraes quando afirma que “a finalidade do IOF, que permite a fixação de suas alíquotas excepcionalmente por ato do Chefe do Poder Executivo, portanto, é constitucionalmente estabelecida” (p. 6).
Quando muito é possível afirmar que a Constituição estabelece que deve haver uma finalidade. Nada obstante, essa determinação constitucional foi delegada ao Poder Legislativo, não tendo assento no texto constitucional.
Condições legais para alteração da alíquota do IOF
O Código Tributário Nacional (CTN), ao tratar do IOF, estabelece, em seu artigo 65, que “o Poder Executivo pode, nas condições e nos limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas ou as bases de cálculo do imposto, a fim de ajustá-lo aos objetivos da política monetária”. (Destaque nosso)
Por sua vez, o artigo 1º da Lei nº 8.894/1994 estabelece as alíquotas máximas do IOF sobre operações de crédito e de títulos e valores mobiliários. Segundo o § 2º deste artigo, “o Poder Executivo, obedecidos os limites máximos fixados neste artigo, poderá alterar as alíquotas tendo em vista os objetivos das políticas monetária e fiscal”. (destaque nosso)
Note-se que a redação deste § 2º é certamente vaga e imprecisa. Se “política monetária” é um conceito mais restrito, relacionado à moeda e a sua circulação, presente na Lei nº 4.595/1964, que “dispõe sobre a Política e as Instituições Monetárias, Bancárias e Creditícias, cria o Conselho Monetário Nacional e dá outras providências”, a expressão “política fiscal” é demasiado ampla.
O artigo 5º da mesma Lei nº 8.894/1994 prevê a alíquota máxima do IOF sobre operações de câmbio e determina, em seu parágrafo único, que “o Poder Executivo poderá reduzir e restabelecer a alíquota fixada neste artigo, tendo em vista os objetivos das políticas monetária, cambial e fiscal”. Neste caso, razões de “política cambial” também autorizam a atuação do Poder Executivo.
Embora o ministro Alexandre de Moraes tenha feito uma referência explícita aos dispositivos da Lei nº 8.894/1994 (p. 7-8), ele não apresentou em seu voto uma interpretação das expressões “política monetária”, “política fiscal” e “política cambial”, o que dificulta a compreensão sobre a adequação da atuação do Poder Executivo neste caso específico.
De outra parte, Alexandre de Moraes deixou bastante claro em seu voto que, embora exista uma espécie de discricionariedade técnica a ser exercida pelo Poder Executivo, no que tange à alteração das alíquotas do IOF, ela é pautada pelos objetivos que seriam determinantes de sua validade (p. 6).
Sobre o dever de motivação
Faz tempo que sustentamos que o exercício da competência prevista no § 1º do artigo 153 da Constituição requer uma motivação transparente do Poder Executivo, [6] sem a qual a atividade de controle do Poder Judiciário fica comprometida.
Dessa forma, deveria haver uma exposição de motivos vinculante na qual o Poder Executivo apresentaria, de forma expressa e explícita, os motivos do exercício da competência delegada.
Esta obrigação se torna ainda mais necessária diante das imposições do princípio da transparência, que se tornou um princípio constitucional explícito no § 3º do artigo 145 da Constituição Federal (sobre o tema, ver o artigo publicado em coautoria com Carmen Silvia Lima de Arruda, aqui).
A ausência de uma motivação explícita que permita conhecer o fundamento do exercício da competência delegada pelo Poder Executivo representa uma quebra na segurança jurídica dos contribuintes e torna dificílima a atividade de controle do Poder Judiciário.
O voto de Alexandre de Moraes não tratou deste tema longamente, porém, ao ressaltar que a discricionariedade do Poder Executivo é pautada por certas finalidades, ressaltou o Ministro que a “função regulatória e extrafiscal deve estar bem fundamentada” (p. 6).
Desvio de finalidade e o regime constitucional excepcional do IOF
O IOF, assim como o IPI, o Imposto de Exportação e o Imposto de Importação, tem dois regimes constitucionais tributários: o regime regular, no qual estão sujeitos a todas as limitações ao poder de tributar que se aplicam aos demais impostos, e o regime excepcional, que se aplica quando estiverem presentes as condições estabelecidas pelo legislador infraconstitucional.
Isso nos parece uma consequência lógica e inafastável da própria redação do § 1º do artigo 153 da Constituição. Ao estabelecer que o Poder Executivo pode alterar as alíquotas dos referidos tributos quando atendidas as condições legais, ele prevê, a contrário senso, que o Poder Executivo não pode alterar as alíquotas desses tributos quando não forem atendidas tais condições.
Logo, é evidente que se Poder Executivo alterar a alíquota do IOF, ou de qualquer dos demais tributos que mencionamos, sem atender às condições legais, agirá com desvio de finalidade.
Note-se que, como vimos insistindo, o problema não é, em si, a pretensão de utilização do IOF para fins arrecadatórios. O IOF, sendo um imposto, pode ser utilizado para arrecadar. O problema que se apresenta é a utilização do regime tributário excepcional aplicável ao IOF em uma situação na qual não se encontra presente o viés extrafiscal definido pelo Poder Legislativo, notadamente no que se refere à necessidade de observância da regra da anterioridade.
Este era o tema central da ADC 96 e das ADIs 7.827 e 7.839: definir se as alterações de alíquota promovidas no IOF pelo Poder Executivo teriam sido, ou não, realizadas com desvio de finalidade, diante do objetivo exclusivamente arrecadatório.
Analisando o voto do ministro Alexandre de Moraes, notamos que em nenhum momento ele sustentou que o regime constitucional tributário do IOF seria aplicável mesmo em casos nos quais este imposto fosse utilizado para fins fiscais. O que entendeu o Ministro foi que, naquele caso, teria sido demonstrado, pelo Poder Executivo, o atendimento às condições legais, o que afastaria a alegação de desvio de finalidade (p. 7-9).
Cremos que esta questão deve ser mais bem analisada no seguimento do julgamento da ADC 96 e das ADIs 7.827 e 7.839.
De fato, tudo indica que a majoração do IOF foi, em verdade, uma decorrência da necessidade de ajuste fiscal na receita por parte do Poder Executivo federal, o que acarretaria, pela própria construção do voto do ministro Alexandre de Moraes, o desvio de finalidade dos decretos editados pelo presidente da República. Se, em um juízo de cognição sumária, não houve conforto para a suspensão da exigência do imposto, talvez após uma análise mais detida da matéria fosse possível uma decisão final nesse sentido.
Caracterizado o desvio de finalidade, cremos que a consequência última de sua verificação seria a necessidade de observância da regra da anterioridade, protegendo-se, assim, a previsibilidade do contribuinte em relação à incidência do IOF.
Conclusão
Das considerações anteriores, parece-nos possível concluir que, em primeiro lugar, não há nenhum problema na utilização do IOF para fins arrecadatórios, desde que, neste caso, submeta-se este imposto ao regime constitucional tributário geral aplicável aos demais impostos. De outra parte, é importantíssimo que se supere a opacidade que impera na utilização, pelo Poder Executivo, da competência que lhe foi outorgada pelo § 1º do artigo 153 da Constituição, principalmente em um contexto no qual a transparência foi transformada em princípio explícito que deve ser observado pelo Sistema Tributário Nacional.
O foco deste texto foi limitado à análise dos limites da majoração das alíquotas do IOF por meio de decreto. Pretendemos comentar outros temas, como as consequências do desvio de finalidade e a inter-relação entre as competências dos Poderes Executivo e Legislativo em coluna futura.
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[1] ROCHA, Sergio André. Fundamentos do Direito Tributário Brasileiro. 3 ed. Belo Horizonte: Letramento, 2024. p. 121-122.
[2] ROCHA, Sergio André. Fundamentos do Direito Tributário Brasileiro. 3 ed. Belo Horizonte: Letramento, 2024. p. 117-120.
[3] ROCHA, Sergio André. Fundamentos do Direito Tributário Brasileiro. 3 ed. Belo Horizonte: Letramento, 2024. p. 126-127.
[4] ROCHA, Sergio André. Legalidade Tributária e Delegação Legislativa, Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, n. 59, 2025, p. 782-807.
[5] ROCHA, Sergio André. Fundamentos do Direito Tributário Brasileiro. 3 ed. Belo Horizonte: Letramento, 2024. p. 121-122.
[6] ROCHA, Sergio André. Fundamentos do Direito Tributário Brasileiro. 3 ed. Belo Horizonte: Letramento, 2024. p. .
Mini Curriculum
é professor titular de Direito Financeiro e Tributário da Uerj, livre-docente em Direito Tributário pela USP, diretor vice-presidente da ABDF, advogado e parecerista.
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