Incluir a ABDI e a Apex no Sistema S configura distorção jurídica

Paulo Henrique Queiroz P. Santos

O chamado Sistema S é um conjunto de pessoas jurídicas de direito privado, não integrantes da administração pública, criadas pelo sistema sindical e a ele vinculadas, que tem como objetivo o aperfeiçoamento de certas categorias profissionais.

Compõe o Sistema S[1], classicamente, o Senai, Sesi, Senac, Sesc, Sebrae, Senar, Sest e Sescoop. A autonomia que é conferida às entidades sindicais, indispensável para o bom exercício das funções que lhes são inerentes, alcança os serviços sociais autônomos por elas criados.

Como consequência, exercem seu mister sem a ingerência do Estado. Não devem, por exemplo, estrita observância aos procedimentos licitatórios[2], sendo necessário, neste particular, que se atenham apenas a princípios gerais relativos ao tema.

No que concerne ao regime de pessoal, não estão obrigados a fazer concurso público. Detém autonomia para contratar livremente, conforme decido no RE 789.784. Alguns dos entes optam por fazer processos de seleção simplificados, conforme normativos internos, nos quais são recorrentes entrevistas, análise prévia de currículo e dinâmicas de grupo[3].

A autonomia para demitir é paralela àquela de contratar. Possuem a discricionariedade para rescindir o contrato de trabalho com seus empregados que é inerente às empresas privadas, sendo necessária, unicamente, observância da legislação regente do vínculo empregatício.

A ABDI (Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial) e a Apex-Brasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos) são entidades recentemente criadas e enquadradas no Sistema S, na forma de serviço social autônomo.

Com amparo nesse enquadramento, vem exercendo a autonomia conferida aos entes clássicos do Sistema S, conforme apontado. Em rápida análise, seria de se compreender pela pertinência técnica do procedimento, o que implicaria, quanto ao tema ora tratado, na legalidade de atos demissionais feitos de modo unilateral e independente.

Ocorre que a ordem jurídica que reveste esses novos entes é excessivamente diversa daquela regente dos entes clássicos.

As novas entidades foram criadas por lei[4][5] e implementadas pelo Poder Executivo Federal com orçamento composto de dotação da União[6].

Tais características, por si[7], seriam suficientes para impor ressalvas ao exercício, pelas novas entidades, da irrestrita autonomia reservada às pessoas jurídicas criadas pelas entidades sindicais — entes clássicos — que detém orçamento proveniente das contribuições sindicais correspondentes. Mas as divergências não se limitam a essas.

Como consequência de sua composição orçamentária, os novos entes divergem dos clássicos por se submeterem ao controle do Tribunal de Contas da União[8].

A finalidade das novas entidades é a promoção de política pública setorial de caráter nacional, em cooperação com o poder público, diversamente dos entes clássicos, responsáveis pelo aperfeiçoamento de certas categorias profissionais e criados por entidades sindicais que, precipuamente, fazem frente às políticas de governo segundo diretrizes internas.

O objetivo da ABDI, por exemplo, é “promover a execução de políticas de desenvolvimento industrial, especialmente as que contribuam para a geração de empregos, em consonância com as políticas de comércio exterior e de ciência e tecnologia”[9].

O Poder Executivo Federal exerce controle finalístico[10] do desempenho das atribuições desses entes.

Os conselhos Deliberativo e Fiscal das entidades são compostos, em sua maioria, de representantes do Poder Executivo. Os presidentes das diretorias executivas, que são os presidentes das agências, e seus diretores são nomeados pelo presidente da República, demissíveis ad nutum[11].

O entendimento é corroborado pelo acórdão do referenciado Recurso Extraordinário 789.784, admitido em repercussão geral, da relatoria do ministro Teori Zavascki, que, ao reafirmar a autonomia dos entes clássicos para demitir seus empregados, excluiu expressamente os novos entes da decisão em razão de suas relevantes diferenças jurídicas[12].

Os pontos de divergência apresentados implicam em acentuada aproximação das novas entidades à administração pública.

O exercício das suas funções está submetido à política econômica nacional planejada pelo Estado[13]. Essa vinculação, além de afastar os novos entes dos clássicos, que não se vinculam ao planejamento econômico do Estado, impõe sua aproximação ao setor público, por força do artigo 174 da Constituição Federal[14].

O entendimento é confirmado pela recente alteração da Lei 8.112/1990, promovida pela Medida Provisória 765/2016[15], que incluiu os serviços sociais autônomos instituídos pela União no rol de entidades aptas ao exercício da cessão de servidores públicos federais.

É inafastável que tais entidades estejam submetidas aos princípios da administração pública, insertos no artigo 37 da Constituição Federal[16]. A autonomia reservada às entidades sindicais e às entidades por elas criadas não alcança a Apex-Brasil e a ABDI, o que, por si, implica em acentuadas restrições no que concerne à demissão de seus empregados[17].

É de se ressaltar que a submissão a tais princípios se impõe não só pelo citado artigo 37 da CF, como pelas próprias leis de instituição das entidades[18].

Os novos entes poderiam ser enquadrados como integrantes da administração pública[19], especificamente da administração pública indireta, sob a forma de empresas públicas federais.

O fato de tais entidades estarem submetidas aos princípios da administração pública, ou até mesmo enquadradas como dela integrantes, implica no dever de motivar os atos demissórios por elas praticados, vez que o regime de pessoal não se limita aos atos admissionais, alcançando, igualmente, os demissionais. Isso deve se dar, inclusive, em atenção ao princípio administrativo do paralelismo das formas[20], intrínseco ao princípio da razoabilidade[21].

Corrobora o entendimento quanto à necessidade de motivação do ato demissional o acórdão em Recurso Extraordinário 589.998[22], de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski, que reconheceu a necessidade de “resguardar o empregado de uma possível quebra do postulado da impessoalidade por parte do agente estatal investido do poder de demitir”.

Quanto à referida motivação, impõe-se que não seja abstrata, mas fundada em elementos sólidos, sob critérios objetivos, pré-estabelecidos e públicos, em atenção à teoria dos motivos determinantes.

As razões da motivação devem ser aferidas em procedimento administrativo formal que oportunize ao empregado a concretização dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.

Desse modo, atos de demissão unilateral sem motivação, ou com motivação amparada em elementos abstratos, sem aferição objetiva de critérios, ou sem procedimento interno formal que possibilite ao empregado contraditar e se defender, devem ser declarados nulos.

A criação dessas entidades sob a forma de serviço social autônomo e seu enquadramento no Sistema S configura distorção jurídica que, no que concerne ao tema estudado, cria ampla discricionariedade aos gestores do dinheiro público, que passam a ter permissivo para agir em desconformidade com os valores republicanos, violando frontalmente o postulado da impessoalidade.

[1] www12.senado.leg.br/noticias/glossario-legislativo/sistema-s. Acesso em 15 de maio de 2017.
[2] EMENTA: PRESTAÇÃO DE CONTAS. IMPROPRIEDADES NA ADMISSÃO DE PESSOAL E EM LICITAÇÕES. CONTAS REGULARES COM RESSALVA. DETERMINAÇÕES. Os entes paraestatais estão obrigados a efetuar processo seletivo para a admissão de pessoal, devendo realizá-lo conforme seus normativos internos e em observância aos princípios da legalidade, da moralidade, da impessoalidade, da isonomia e da publicidade.
[3] EMENTA: Minuta de Regulamento de Licitações e Contratos dos Órgãos integrantes do Sistema “S” encaminhada pela Confederação Nacional da Indústria. Cumprimento de decisão do TCU que determinou a apreciação do referido documento por Grupo de Trabalho, com vistas a que os órgãos daquele Sistema obtivessem pelo TCU tratamento compatível com suas características próprias, em razão de os Serviços Sociais Autônomos não estarem sujeitos à Lei 8.666/93. Alterações propostas pelo Grupo aceitas pela CNI. Recebimento. Arquivamento. TC 907-97. Relator Lincoln Rocha. 11.12.1997.
[4] ABDI: Lei 11.080/2004. Apex-Brasil: Lei 10.668/2003.
[5] (…) “tem havido hipóteses de entidades criadas com a denominação de serviços sociais autônomos, porém com características diferenciadas, por serem criadas diretamente por lei. São exemplos: o serviço social autônomo Agência de Promoção de Exportações do Brasil (APEX-Brasil)”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 28ª Ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 611-612.
[6] Artigo 13, Lei 10.668/2003. Artigo 17, Lei 11.080/2004.
[7] “Nesses casos, em que a entidade é instituída por lei e vive de dotações do orçamento do Estado, a figura do serviço social autônomo constitui-se em desvirtuamento do instituto, porque ela apresenta praticamente as características das entidades da Administração Indireta, razão pela qual deveriam submeter-se às normas pertinentes da Constituição”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. “Das entidades paraestatais e das entidades de colaboração”, in PAULO MODESTO (org ). Nova Organização Administrativa Brasileira. Belo Horizonte, Editora Fórum, 2009, 226- 244, p. 233.
[8] Artigos 17 e 18. Lei 10.669/2003. Artigos 9º e 14 da Lei 10.669/2003.
[9] Artigo 1º da Lei 11.080/2004.
[10] Artigo 9º da Lei 10.668/2003. Artigo 8º da Lei 11.080/2004.
[11] Artigos 3º ao 6º da Lei 10.669/2003 e artigos 2º ao 6º da Lei 11.080/2004.
[12] É importante não confundir essas entidades nem equipará-las com outras criadas após a Constituição de 1988, cuja configuração jurídica tem peculiaridades próprias. É o caso, por exemplo, da Associação das Pioneiras Sociais – APS (serviço social responsável pela manutenção da Rede SARAH, criada pela Lei 8.246/91), da Agência de Promoção de Exportações do Brasil – APEX (criada pela Lei 10.668/03) e da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial – ABDI (criada pela Lei 11.080/04). Diferentemente do que ocorre com os serviços autônomos do Sistema “S”, essas novas entidades (a) tiveram sua criação autorizada por lei e implementada pelo Poder Executivo, não por entidades sindicais; (b) não se destinam a prover prestações sociais ou de formação profissional a determinadas categorias de trabalhadores, mas a atuar na prestação de assistência médica qualificada e na promoção de políticas públicas de desenvolvimento setoriais; (c) são financiadas, majoritariamente, por dotações orçamentárias consignadas no orçamento da própria União (artigo 2º, parágrafo 3º, da Lei 8.246/91, artigo 13 da Lei 10.668/03 e artigo 17, I, da Lei 11.080/04); (d) estão obrigadas a gerir seus recursos de acordo com os critérios, metas e objetivos estabelecidos em contrato de gestão cujos termos são definidos pelo próprio Poder Executivo; e (e) submetem-se à supervisão do Poder Executivo, quanto à gestão de seus recursos. […] Bem se vê, portanto, que ao contrário dos serviços autônomos do primeiro grupo, vinculados às entidades sindicais (Senac, Senai, Sest, Senat e Senar), os do segundo grupo (APS, Apex e ABDI) não são propriamente autônomos, pois sua gestão está sujeita a consideráveis restrições impostas pelo poder público, restrições que se justificam, sobretudo, porque são financiadas por recursos do próprio orçamento federal. Essas limitações atingem, inclusive, a política de contratação de pessoal dessas entidades. Tanto a lei que autorizou a criação da APS, quanto aquelas que implementaram a Apex e a ABDI têm normas específicas a respeito dos parâmetros a serem observados por essas entidades nos seus processos seletivos e nos planos de cargos e salários de seus funcionários (exemplo: artigo 3º, VIII e IX, da Lei 8.246/91, artigo 9º, V e VI da Lei 10.668/03 e artigo 11, parágrafos 2º e 3º da Lei 11.080/04) (g.n.).
[13] Artigo 2º da Lei 10.669/2003.
[14] Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.
[15] MP 765/2016. Artigo 45: A Lei nº 8.112, de 1990, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 93. O servidor poderá ser cedido para ter exercício em outro órgão ou entidade dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios ou em serviço social autônomo instituído pela União que exerça atividades de cooperação com a administração pública federal, nas seguintes hipóteses: (omissis).
[16] Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (omissis).
[17] “Dá-se-lhe a roupagem de ‘ente privado’, batiza-se-lhe de ‘serviço social autônomo’, transfere-lhe verbas públicas através do sistema orçamentário e, em um passe de mágica, os controles públicos são afastados — ou pelo menos reduzidos. Não parece que este tipo de procedimento acate o mandamento constitucional da moralidade administrativa, inserido no art. 37, caput, da Carta de 1988”. SCAFF, Fernando Facury. “Contrato de gestão, Serviços sociais autônomos e intervenção do Estado”, in Revista de Direito Administrativo, nº 225: 273-297, p. 287.
[18] Lei 10.669/2003. Art. 9º, V. O processo de seleção para admissão de pessoal efetivo da Apex-Brasil deverá ser precedido de edital publicado no Diário Oficial da União, e observará os princípios da impessoalidade, moralidade e publicidade; Lei 11.080/2004. Art. 11. §2º. O processo de seleção para admissão de pessoal efetivo da ABDI deverá ser precedido de edital publicado no Diário Oficial da União e observará os princípios da impessoalidade, moralidade e publicidade.
[19] “Cumpre anotar, no entanto, que estas últimas entidades, conquanto tenham sido qualificadas nas respectivas leis como ‘serviços sociais autônomos’, têm regime e perfil jurídicos bem diversos dos atribuídos tradicionalmente às entidades da mesma natureza. Eis alguns aspectos distintivos: (a) nas entidades mais recentes, o Presidente é nomeado pelo Presidente da República; nas anteriores, a autoridade maior é escolhida por órgãos colegiados internos; (b) naquelas, a supervisão compete ao Poder Executivo; nestas, inexiste tal supervisão; (c) de outro lado, é prevista a celebração de contrato de gestão com o governo, o que também não existe para os serviços sociais anteriores; (d) por fim, contempla-se, para aquelas, a inclusão de dotações consignadas no Orçamento-Geral da União; os serviços sociais clássicos, todavia, não recebem recursos diretos do erário. Na verdade, esses serviços sociais autônomos mais recentes afastaram-se do modelo clássico e mais se aproximaram do sistema da Administração Pública descentralizada”. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 28ª Edição. São Paulo: Atlas, 2015, págs. 556-557. (g.n.)
[20] “Assim como não é livre a admissão de pessoal, também não se pode admitir que os dirigentes tenham o poder de desligar seus empregados com a mesma liberdade com que o faria o dirigente de uma empresa particular. É preciso que haja uma razão prestante para fazê-lo, não se admitindo caprichos pessoais, vinganças ou quaisquer decisões movidas por mero subjetivismo e, muito menos, por sectarismo político ou partidário. (…) Logo, para despedir um empregado é preciso que tenha havido um processo regular, com direito à defesa, para apuração da falta cometida ou de sua inadequação às atividades que lhe concernem. Desligamento efetuado fora das condições indicadas é nulo”. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 220-221.
[21] “É que, aos agentes do Estado, não se veda apenas a prática de arbitrariedades, mas se impõe também o dever de agir com ponderação, decidir com justiça e, sobretudo, atuar com racionalidade OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no Direito Administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 155.
[22] Ementa: EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS ECT. DEMISSÃO IMOTIVADA DE SEUS EMPREGADOS. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO DA DISPENSA. RE PARCIALEMENTE PROVIDO. I – Os empregados públicos não fazem jus à estabilidade prevista no art. 41 da CF, salvo aqueles admitidos em período anterior ao advento da EC nº 19/1998. Precedentes. II – Em atenção, no entanto, aos princípios da impessoalidade e isonomia, que regem a admissão por concurso público, a dispensa do empregado de empresas públicas e sociedades de economia mista que prestam serviços públicos deve ser motivada, assegurando-se, assim, que tais princípios, observados no momento daquela admissão, sejam também respeitados por ocasião da dispensa. III – A motivação do ato de dispensa, assim, visa a resguardar o empregado de uma possível quebra do postulado da impessoalidade por parte do agente estatal investido do poder de demitir. IV – Recurso extraordinário parcialmente provido para afastar a aplicação, ao caso, do art. 41 da CF, exigindo-se, entretanto, a motivação para legitimar a rescisão unilateral do contrato de trabalho. (STF – RE: 589998 PI, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 20/03/2013, Tribunal Pleno, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO) (g.n).

Paulo Henrique Queiroz P. Santos

Advogado no Mendonça Neiva Advocacia

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