Entre a parceria rural e o arrendamento: a eterna novela entre os contribuintes e o Fisco Federal
Por Fábio Pallaretti Calcini, Gabriel Hercos da Cunha
21/11/2025 12:00 am
Apesar de serem institutos plenamente conhecidos, os contratos agrários têm sido objeto de relevantes reflexos em matéria tributária, merecendo constante análise.
Sendo assim, mais uma vez, voltamos ao tema [1].
Os contratos de parceria rural e arrendamento rural, muito utilizados no agronegócio brasileiro, estão dispostos no Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1964). Apesar de ambos os tipos de contrato estarem regulamentados desde 1964 – ou seja, há mais de 60 anos —, ainda existem debates sobre o assunto entre os contribuintes e a Receita Federal.
No que diz respeito à tributação, a forma como o contrato é classificado é crucial. Dependendo de sua natureza, a renda recebida pelo proprietário rural pessoa física pode ser considerada como resultado da atividade rural — o que permite um regime fiscal mais vantajoso — ou como aluguel, que é tributado pela tabela progressiva do Imposto de Renda da Pessoa Física. Essa última situação, frequentemente aplicada pelo Fisco, pode levar a autuações, multas e juros.
Nos últimos anos, as decisões da Receita Federal e do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) têm, supostamente, buscado esclarecer quais critérios práticos a Receita Federal considera aceitáveis para diferenciar as duas figuras. A atenção se concentra, especialmente, em casos de requalificação de contratos: situações em que documentos formalmente elaborados como parcerias rurais, na verdade, estariam, segundo o Fisco, disfarçando arrendamentos (aluguéis). Essas decisões têm reforçado a posição do Fisco Federal, nem sempre correta, de que a forma do contrato deve refletir a substância econômica da relação entre as partes.
Contratos agrários: arrendamento e parceria rural
Em relação ao contrato de arrendamento rural, conforme o artigo 95 do Estatuto da Terra, trata-se do contrato agrário pelo qual o proprietário (arrendador) concede a outra pessoa (arrendatário), o uso e gozo de um imóvel rural, mediante pagamento em dinheiro ou em produtos, por um período determinado ou não, para fins de exploração agrícola, pecuária, agroindustrial, extrativa vegetal ou mista.
De acordo com o artigo 95 do Estatuto da Terra, o arrendamento rural deve seguir uma série de requisitos e condições (vale observar que não é o intuito desse artigo exaurir os requisitos dos contratos de parceria rural e de arrendamento rural). O contrato de arrendamento deve sempre terminar após a colheita, incluindo as plantas forrageiras temporárias, e pode ser prorrogado automaticamente em situações de força maior. Se o contrato for por tempo indeterminado, presume-se que ele tenha um prazo mínimo de três anos.
Spacca
Caso o arrendatário queira iniciar uma cultura cujos frutos não possam ser colhidos antes do fim do contrato, ele deve negociar previamente com o arrendador o pagamento pelo uso da terra durante esse período extra. Além disso, o arrendatário tem prioridade na renovação do contrato em igualdade de condições com terceiros, e o proprietário deve notificá-lo extrajudicialmente até seis meses antes do vencimento. Se essa notificação não ocorrer, o contrato é renovado automaticamente, a menos que o arrendador se manifeste contrariamente dentro de trinta dias.
Outros pontos importantes incluem (1) a proibição do subarrendamento sem a autorização expressa do proprietário e a possibilidade de substituir a área arrendada por outra equivalente dentro do mesmo imóvel, respeitando as condições originais; (2) o arrendatário tem direito a ser indenizado por benfeitorias necessárias e úteis, podendo permanecer no imóvel até receber essa indenização, e só será responsável por danos ou deteriorações que ele mesmo tenha causado; e (3) quando o contrato envolver animais de cria, corte ou trabalho, eles devem ser devolvidos em igual número, espécie e valor.
Ainda, a lei também exige que os contratos de arrendamento incluam cláusulas sobre remuneração, prazos mínimos, formas de pagamento, critérios de renovação e indenização por benfeitorias. A remuneração, por sua vez, não pode ultrapassar 15% do valor cadastral do imóvel, exceto em casos de glebas de exploração intensiva, onde o limite é de 30%.
O contrato de parceria rural, conforme o artigo 96 do Estatuto da Terra, é um tipo de contrato agrário onde uma pessoa, chamada de proprietário ou “parceiro-outorgante”, permite que outra, conhecida como “parceiro-outorgado”, utilize um imóvel rural, seja ele total ou parcialmente, com ou sem melhorias, para realizar atividades agrícolas, pecuárias, agroindustriais, extrativas vegetais ou uma combinação delas.
Essa cessão pode incluir também a entrega de animais para reprodução, engorda ou extração de produtos de origem animal, com a divisão dos frutos ou dos riscos da atividade. Em essência, é uma forma de cooperação econômica que se baseia na união de esforços e na divisão justa dos resultados, mantendo a autonomia legal de cada parte.
O artigo 96 do Estatuto da Terra, também, define os principais requisitos e condições que regem esse tipo de contrato. O prazo mínimo da parceria, a menos que acordado de outra forma, é de três anos, garantindo ao parceiro o direito de finalizar a colheita que estiver em andamento. Após o término do contrato, o parceiro tem prioridade na renovação, desde que esteja em condições iguais às de terceiros. As despesas relacionadas ao cuidado e criação dos animais, na falta de um acordo diferente, ficam a cargo do parceiro criador.
O proprietário deve garantir ao parceiro que reside no imóvel uma moradia adequada e espaço suficiente para uma horta e criação de pequenos animais, que servirão para a alimentação da família. A legislação complementa o artigo, exigindo que os contratos incluam cláusulas obrigatórias sobre a limitação da participação do proprietário nos frutos, os prazos mínimos de duração, as bases para renovação e rescisão, além das regras de indenização por melhorias e danos.
A parte que o proprietário recebe dos frutos não pode ultrapassar certos limites, que variam de 20% (quando ele oferece apenas a terra nua) até 75%. Além disso, o proprietário pode cobrar do parceiro, ao custo, os insumos que fornecer, como fertilizantes e defensivos. Nos casos em que não houver especificações, sua participação adicional não pode passar de 10% do valor das melhorias feitas.
Um precedente do Carf: parceria agroflorestal
Para exemplificar longuíssima discussão entre os contribuintes e o Fisco Federal, vamos analisar o Acórdão nº 2102-003.752, julgado pelo Carf, recentemente em 6 de junho de 2025. O contribuinte envolvido firmou um contrato chamado “Parceria Agroflorestal” com uma empresa de reflorestamento, com o intuito de exploração de áreas de plantio de pinus e eucalipto.
Apesar do nome do contrato, a fiscalização concluiu que, na verdade, se tratava de um arrendamento rural disfarçado, com pagamentos mensais fixos que não estavam ligados ao sucesso da produção e sem qualquer partilha de riscos.
Essa interpretação foi aceita pela turma julgadora, que reconheceu a descaracterização da parceria rural e decidiu que os valores recebidos deveriam ser tributados como rendimento de aluguel, afastando o regime tributário específico da atividade rural.
Segundo o voto vencedor do acórdão, o contrato não tinha cláusulas de partilha de riscos e lucros – elementos essenciais para caracterizar uma verdadeira parceria rural, bem por isso, seria, na verdade, um arrendamento disfarçado, pelo qual o contribuinte recebia uma remuneração fixa pela cessão do uso da terra, o que o enquadraria como locação e, não, como atividade produtiva.
De acordo com a conselheira relatora do caso, Vanessa Kaeda Bulara de Andrade, o que realmente importava era a realidade econômica do contrato, e não apenas o nome que lhe foi dado.
O acórdão ressaltou vários aspectos do contrato que evidenciariam a falta de risco e de gestão compartilhada por parte do proprietário da terra. Isto porque, segundo consta da decisão, o contrato previa um pagamento mensal fixo, durante 14 anos, no valor de R$ 10.133 por árvore, independentemente da produção real. A empresa responsável pela reflorestação arcaria com todos os custos do projeto, incluindo insumos, mão de obra, e riscos ambientais e trabalhistas.
Além disso, segundo o voto da relatora, o contrato de parceria rural incluía cláusulas de compra e venda antecipada da produção, o que, na visão da relatora, eliminava qualquer variabilidade típica de uma parceria. Esses fatores indicariam que não havia uma comunhão de riscos, mas sim uma locação disfarçada do imóvel rural, segundo a relatora.
A decisão fundamentou-se no princípio da verdade material, previsto no artigo 142 do CTN, segundo o qual a administração tributária deve apurar a real natureza dos fatos, independentemente da forma jurídica adotada pelas partes. Mesmo que o negócio jurídico fosse denominado de “parceria agroflorestal”, sua essência econômica deveria prevalecer sobre a forma. O Carf também rejeitou a alegação de violação ao artigo 110 do CTN, que proíbe a alteração de conceitos de direito privado para fins tributários, argumentando que a análise não alterava conceitos jurídicos, mas apenas requalificava a realidade dos fatos.
Ademais, segundo referida decisão, a falta de provas documentais sólidas foi um fator que contribuiu para uma decisão desfavorável ao contribuinte. O livro caixa mostrava lançamentos sob a categoria “adiantamento venda de árvores” para a reflorestadora, mas sem notas fiscais ou comprovantes de despesas relacionadas ao contrato específico.
Assim, a relatora chegou à conclusão de que a remuneração recebida se referia ao arrendamento da terra, e não à divisão dos frutos da produção. O colegiado, de forma unânime, acompanhou o voto da relatora e manteve a autuação, reforçando a ideia de que, em contratos de arrendamento, os rendimentos são tributados como aluguéis, enquanto nas parcerias, as partes são tributadas de acordo com sua participação na atividade rural.
Considerações finais
Essa decisão destaca uma tendência do Carf em reclassificar contratos rurais que, mesmo sendo formalmente chamados de parcerias, mostram a falta de risco compartilhado. Esse precedente é especialmente relevante para produtores e empresas florestais que trabalham com reflorestamento ou integração, pois é necessário demonstrar que há uma partilha de riscos, um elemento fundamental para caracterizar a parceria rural e garantir o tratamento tributário adequado à atividade produtiva.
Naturalmente, é preciso sempre avaliar o caso concreto, não sendo possível estender este posicionamento para toda e qualquer situação.
Dada a quantidade de decisões sobre esse tema nos últimos anos, é crucial que produtores rurais e empresas do agronegócio, fiquem atentos aos critérios que a Receita Federal tem adotado. A assunção de um tipo de risco, seja de forma cumulativa ou não, prevista no §1º do artigo 96 do Estatuto da Terra, é essencial para que a estrutura contratual reflita a realidade econômica das operações, sob pena de consequências indesejadas, além de ter um ajuste do valor pago ao parceiro-outorgante pelo parceiro-outorgado.
Os precedentes do Carf, sem entrar no mérito se estão corretos ou não, reforçam a ideia de que a substância deve sempre prevalecer sobre a forma. Assim, diante disso, é fundamental que os contratos de parceria rural demostrem a divisão de riscos e resultados. Como já explanado, segundo a Lei que rege o tema, a parceria rural precisa envolver a comunhão de riscos e a corresponsabilidade entre as partes, e isso deve estar claramente definido no contrato para evitar que seja reclassificado como arrendamento, o que traria consequências tributárias indesejadas as partes.
Ainda, é recomendável que, ao final do contrato, as partes façam um ajuste de contas que reflita os lucros ou prejuízos reais, comprovando a divisão dos frutos e a natureza colaborativa da relação.
[1] Sobre o tema cf. CALCINI, Fábio Pallaretti. Efeitos fiscais para os contratos agrários de parceria e arrendamento e Contrato de parceria agrícola e aspectos fiscais
Fonte Conjur
Mini Curriculum
Fábio Pallaretti Calcini
é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), professor da FGV Direito SP e Ibet, sócio tributarista Brasil Salomão e Matthes Advocacia.
Gabriel Hercos da Cunha
é advogado associado do Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados, especialista em Direito Tributário Internacional pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário.
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