Dividendos, Justiça Tributária e o Espelho do Viés

Por Marcelo Magalhães Peixoto

28/09/2025 12:00 am

1. Introdução: um convite ao espelho

Quando falamos em tributação, não estamos apenas diante de cálculos ou alíquotas. Estamos diante de um tema que desperta paixões, divide opiniões e, sobretudo, expõe os vieses de cada grupo social.

Servidores públicos de alta renda, protegidos por estabilidade e benefícios, tendem a enxergar “justiça” em tributar dividendos.
Executivos e profissionais empregados de alta renda, embora também bem remunerados, vivem sob a pressão constante do mercado, sem as mesmas garantias, e se percebem já bastante onerados pelo imposto de renda retido na fonte.
Profissionais liberais, empresários e advogados organizam-se via sociedades, recolhem tributos pesados na pessoa jurídica e entendem como injusta uma nova incidência sobre os dividendos.
Todos, de algum modo, têm razão. E todos, de algum modo, estão presos a seus próprios filtros. O verdadeiro desafio é mais profundo: olhar para si mesmo e reconhecer até que ponto nossas convicções sobre justiça fiscal não são apenas conveniências disfarçadas.

2. Filosofia e psicologia do viés

A filosofia há muito nos alerta sobre esses limites:

Francis Bacon falou dos “ídolos da mente”, que distorcem nossa percepção.
Thomas Kuhn mostra que a ciência opera em paradigmas, moldando as visões de mundo do que parece verdadeiro.
John Rawls propôs o “véu da ignorância”, como exercício para julgar regras sem saber em que posição social estaríamos.

A psicologia reforça essa mesma intuição:

O self-serving bias leva cada grupo a justificar a posição que mais lhe favorece.
O status quo bias faz com que mudanças sempre pareçam ameaçadoras.
O framing effect mostra como aceitamos ou rejeitamos propostas conforme a forma como são apresentadas.
A comparação social nos faz olhar menos para o quanto pagamos e mais para o quanto o outro paga.
Em resumo: não existe olhar neutro. Reconhecer isso já é um avanço.

3. O caso brasileiro: dividendos e IRPF

Até 1995, os dividendos eram tributados no Brasil. O resultado era peculiar: as empresas acumulavam patrimônio, e os sócios usufruíam indiretamente dos ativos e benefícios, evitando a distribuição formal de lucros.

Com a isenção, dois efeitos ocorreram:

1. Mudou o comportamento, aumentou a distribuição, reduziu-se o uso de mecanismos indiretos.

2. Aumentou da arrecadação tributária, como reconheceu o então secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, a reforma que trouxe a isenção dos dividendos também ampliou a base de arrecadação, resultando em elevação significativa do ingresso global de recursos.

Hoje, a proposta de voltar a tributar dividendos reacende dilemas antigos.

Servidores públicos de alta renda: já sofrem tributação direta sobre salários e veem injustiça em deixar dividendos intocados.
Executivos e profissionais empregados de alta renda: são igualmente tributados e, ao contrário dos servidores, convivem com risco real de perda do emprego.
Empresários e profissionais liberais: alegam que já pagam IRPJ, adicional, CSLL, PIS, COFINS, ficando nos tributos federais, e que tributar dividendos significa bitributação e desincentivo ao investimento.
Trabalhadores assalariados comuns: enfrentam insegurança ainda maior e percebem diferenças gritantes.

O governo, por sua vez, apresenta a medida como forma de “dar isenção até R$ 5.000,00” para os trabalhadores em geral, mas, na prática, isso não é benefício novo, é apenas correção defasada da tabela do IR. O discurso vende como conquista aquilo que já deveria ser realidade. Um exemplo claro do efeito de enquadramento.

4. Comparar alhos com alhos, laranjas com laranjas

Se quisermos um debate honesto, não podemos confundir situações distintas:

O servidor público que recebe uma média de R$40 a R$ 60 mil com estabilidade vitalícia não está na mesma posição de um advogado que, por meio de sua sociedade, fatura o mesmo valor, mas arca com salários de funcionários, encargos e aluguel e risco de mercado.
Um executivo de alto escalão, embora bem pago, pode ser demitido a qualquer momento, sem as garantias do servidor público.
Um empresário que distribui dividendos já enfrentou múltiplas camadas de tributação na pessoa jurídica antes de chegar ao lucro líquido.
Misturar essas condições como se fossem equivalentes se aproxima ao que Bacon chamaria de “ídolos da mente”, confusões conceituais que distorcem a análise.

5. O chamado à autoconsciência

O debate não pode ser reduzido a slogans. Cada grupo constrói sua narrativa:

O servidor diz: “é justo tributar dividendos, já que tributo meu salário.”
O empresário responde: “é injusto, pois já pago muito na pessoa jurídica.”
O governo enquadra: “estamos favorecendo os mais pobres”, quando, de fato, apenas corrige uma distorção antiga.
Nenhum desses discursos é totalmente falso, mas todos são parciais. Por isso, a verdadeira tarefa é exercitar a autoconsciência: perceber onde termina o argumento racional e onde começa a defesa de interesses.

6. Conclusão: menos enviesamento, mais honestidade

O tema dos dividendos é complexo demais para ser resolvido por manchetes ou comparações fáceis. Ele exige um olhar histórico, estrutural e filosófico.

Exige coragem para encarar o próprio viés, seja ele de servidor, de executivo, de advogado, de empresário ou do trabalhador.

Se quisermos avançar, precisamos abandonar a ilusão da neutralidade absoluta, mas, ao mesmo tempo, recusar o comodismo de defender apenas o que nos beneficia.

O convite é simples e incômodo: olhe para si, reconheça o viés que o move e só então entre no debate.

Mini Curriculum

Especialista em Recuperação de Tributos na Tax Accounting | Presidente Fundador da APET

Continue lendo