Crédito presumido de ICMS e PIS/Cofins: resistência à nova ofensiva arrecadatória federal?

Por Raphael Okano Pinto de Oliveira, Joelson Vitor Ramos dos Santos

11/08/2025 12:00 am

A tentativa da União de tributar, por meio dos tributos federais, valores relativos a créditos presumidos de ICMS concedidos por estados-membros não é novidade no ordenamento jurídico brasileiro. O tema retorna ao centro do debate em virtude da edição da Lei nº 14.789/2023, que, ao revogar o artigo 30 da Lei nº 12.973/2014, institui um novo regime jurídico para as subvenções para investimento, determinando a inclusão desses incentivos nas bases de cálculo das contribuições sociais.

Ao revogar a norma que expressamente autorizava a exclusão das subvenções para investimento do critério material do IRPJ, da CSLL, do PIS e da Cofins, a nova lei impõe ao contribuinte a obrigatoriedade de incluir os valores decorrentes de benefícios fiscais estaduais como receita tributável federal. Trata-se, na prática, de um cenário em que a atuação legislativa e arrecadatória da União colide frontalmente com a competência dos estados para estruturar sua própria política fiscal.

Mais do que uma divergência interpretativa sobre a extensão da base de cálculo dos tributos federais, a controvérsia expõe um problema estrutural: a erosão da racionalidade do sistema federativo e a ameaça à autonomia tributária dos entes subnacionais. A tributação federal sobre incentivos fiscais estaduais, especialmente os créditos presumidos de ICMS, compromete os instrumentos de desenvolvimento regional e distorce a lógica da descentralização fiscal prevista na Constituição.

Tratando mais especificamente do PIS e da Cofins, em contexto recente, a 1ª Vara Federal de Taubaté, ao julgar mandado de segurança, reconheceu de forma expressa que os créditos presumidos de ICMS não integram a base de cálculo do PIS e da Cofins, por não representarem acréscimo patrimonial e por afrontarem o pacto federativo. A sentença aplicou, com precisão, a exegese desenvolvida no EREsp nº 1.517.492/PR, marco jurisprudencial da 1ª Seção do STJ sobre a natureza dos créditos presumidos.

Nessa senda, propõe-se a demonstrar, com base em leitura sistemática do ordenamento jurídico e da jurisprudência dos tribunais superiores, a precisão técnica e constitucional da sentença proferida pela Justiça Federal de Taubaté, ao considerar que a inclusão dos créditos presumidos de ICMS nas bases das contribuições sociais é juridicamente indevida, por ausência de fato jurídico válido, e economicamente desestabilizadora, em razão do desincentivo à política fiscal descentralizada em um modelo federativo que pressupõe autonomia e cooperação entre os entes.

Natureza jurídica do crédito presumido de ICMS: receita tributável?
O crédito presumido de ICMS constitui, por definição, uma modalidade de renúncia fiscal unilateralmente concedida pelos estados e pelo Distrito Federal, no exercício legítimo de sua competência tributária, com o objetivo de fomentar atividades econômicas estratégicas. Sua função precípua é extrafiscal: estimula o desenvolvimento regional, atrai investimentos e promove a geração de empregos, integrando um conjunto de políticas públicas de indução econômica no espaço federativo.

Como assentado pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do EREsp nº 1.517.492/PR, a incidência de tributos federais sobre valores decorrentes de créditos presumidos de ICMS equivale, na prática, à supressão indireta do incentivo fiscal estadual.

Spacca
Trata-se de uma indevida “intromissão da União na política fiscal dos Estados-membros”, nos termos da relatoria da ministra Regina Helena, apta a comprometer o pacto federativo e esvaziar a autonomia tributária assegurada constitucionalmente aos entes subnacionais. Naquela oportunidade, a 1ª Seção do STJ deixou claro que a tributação pela União de incentivos fiscais estaduais gera desequilíbrio concorrencial entre os entes e contraria os princípios da cooperação e da paridade federativa.

Exemplo concreto pode ser identificado no caso do Estado de São Paulo. O Anexo III do RICMS/SP prevê a concessão de crédito presumido nas saídas de malte promovidas por fabricante localizado em território paulista, com variação da alíquota conforme a destinação da operação. Tal benefício, como corretamente reconhecido na sentença proferida pela 1ª Vara Federal de Taubaté, não representa ingresso financeiro, mas desoneração fiscal indireta, configurando um mecanismo de redução da carga tributária estadual sobre operações específicas.

A Constituição, em seu artigo 195, I, ‘b’, dispõe que as contribuições ao PIS e à Cofins incidirão sobre a “receita” ou o “faturamento”. Todavia, o texto constitucional não define diretamente essas expressões, o que exige do intérprete o recurso à doutrina e à jurisprudência para a fixação de seus contornos jurídicos.

Paulo de Barros Carvalho ensina que “receita é entrada que, integrando-se ao patrimônio sem quaisquer reservas ou condições, vem acrescer o seu vulto, como elemento novo e positivo”[1]. Por sua vez, Roque Antonio Carrazza conceitua faturamento como “ao somatório do valor das operações negociais realizadas pelo contribuinte. Faturar, pois é obter receita bruta proveniente da venda de mercadorias ou, em alguns casos, da prestação de serviços. Noutras palavras, faturamento é a contrapartida econômica, auferida como riqueza própria, pelas empresas em razão do desempenho de suas atividades típicas” [2].

Ambos convergem na premissa de que a receita pressupõe efetivo acréscimo patrimonial, distinguindo-se dos meros ingressos financeiros ou vantagens fiscais.

Esse entendimento foi consagrado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE nº 574.706 (Tema 69), em que se firmou a tese de que o ICMS destacado na nota fiscal não constitui receita do contribuinte, por se tratar de valor repassado ao Estado. A ratio decidendi do case é ainda mais contundente no que tange aos créditos presumidos de ICMS, pois estes sequer representam entrada de recursos, mas simples redução da carga tributária. Sua tributação implica, portanto, violação ao conceito constitucional de receita/faturamento e aos princípios da capacidade contributiva, entre outros.

No plano infraconstitucional, como já aludido, a 1ª Seção do STJ reiterou, no EREsp nº 1.517.492/PR, que a inclusão de créditos presumidos de ICMS nas bases do IRPJ e da CSLL configura afronta ao pacto federativo, uma vez que tais créditos não representam lucro nem ingresso financeiro, mas instrumento de política pública fiscal estadual. Embora tenha se referido ao IRPJ e CSLL, a ratio decidendi também se aplica ao PIS e à Cofins.

Posteriormente, no julgamento do Tema 1.182 (REsp nº 1.945.110/RS), a mesma 1ª Seção reforçou a distinção entre créditos presumidos e outras espécies de benefícios fiscais, como isenção, redução de base de cálculo e diferimento. Reafirmou-se, assim, que o entendimento firmado no EREsp nº 1.517.492/PR permanece hígido e aplicável aos casos que envolvam créditos presumidos de ICMS.

A sentença proferida pela 1ª Vara Federal de Taubaté refletiu com fidelidade essa orientação jurisprudencial. O Juízo reconheceu que a Lei nº 14.789/2023 não revogou nem afastou o entendimento consolidado do STJ, tendo em vista que a referida norma não alterou a natureza jurídica dos créditos presumidos, mas apenas estabeleceu novo regime de apuração para outras modalidades de subvenção, não se admitindo a incidência de PIS e Cofins sobre créditos presumidos sob o pretexto de suposta revogação legislativa que, em verdade, não se operou no plano constitucional.

Inaplicabilidade da Lei 14.789 aos créditos presumidos
No ordenamento jurídico tributário, é comum a utilização dos termos “benefício fiscal” ou “incentivo fiscal” de forma ampla, nem sempre acompanhada de rigor técnico uniforme. Ainda assim, é possível identificar um traço semântico constante: essas expressões se referem, em essência, a mecanismos de desoneração tributária, isto é, à criação de condições normativas que visam reduzir, eliminar ou diferir o valor devido a título de obrigação tributária.

Ao aproximar o conteúdo conceitual de “benefício fiscal” do fenômeno da desoneração, compreende-se que seu efeito jurídico é sempre a mitigação do ônus financeiro do contribuinte por meio da alteração ou flexibilização da regra de incidência. Trata-se, portanto, de figuras eminentemente normativas, cujos efeitos se realizam na própria estrutura da relação jurídico-tributária, e não mediante transferência direta de recursos ou vantagens financeiras oriundas de entes públicos.

É nesse contexto que se insere a Lei nº 14.789, de 29 de dezembro de 2023, oriunda da conversão da Medida Provisória nº 1.185/2023. Essa norma representou uma alteração substancial no regime jurídico das subvenções governamentais concedidas a pessoas jurídicas com vistas à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos. Em seu bojo, estabeleceu-se novo tratamento tributário para tais subvenções, com revogação de dispositivos fundamentais das leis que regem o IRPJ, a CSLL, o PIS e a Cofins.

Dentre as alterações promovidas, destaca-se a revogação do artigo 1º, § 3º, X, da Lei nº 10.637/2002 e do artigo 1º, § 3º, IX, da Lei nº 10.833/2003, que autorizavam expressamente a exclusão das receitas oriundas de subvenções para investimento das bases de cálculo do PIS e da Cofins. Com isso, a nova legislação passou a impor, como regra, a inclusão dessas receitas nas bases das contribuições, estabelecendo um novo regime jurídico para o seu tratamento tributário.

Ademais, a nova normativa restringiu o conceito de “subvenção para investimento” àquelas vinculadas diretamente à implantação ou expansão de atividades econômicas, exigindo que a destinação específica dos valores conste expressamente em documentos e contabilizações aptas a demonstrar o caráter finalístico do incentivo. Nesse novo regime, passou-se a considerar que as subvenções constituem “receitas de incentivo”, aptas a integrar o patrimônio da pessoa jurídica beneficiária e, por consequência, passíveis de tributação pelas contribuições federais.

Contudo, essa reformulação legislativa, embora relevante, não alcança os créditos presumidos de ICMS, os quais possuem natureza jurídica própria, anterior e autônoma em relação à sistemática de subvenções instituída pela Lei nº 14.789/2023. Isso porque os créditos presumidos não configuram transferência de recursos ou entregas financeiras do Estado ao contribuinte, mas sim modificações na própria estrutura da obrigação tributária estadual, por meio da concessão de deduções estimadas ou fictícias do imposto devido.

A jurisprudência do STJ já reconheceu essa peculiaridade no julgamento do EREsp nº 1.517.492/PR, ao distinguir o crédito presumido de outras espécies de incentivos fiscais. No mesmo sentido, o Tema 1.182 reafirmou que a ratio do caso supracitado é específica para o crédito presumido de ICMS, que não se confunde com isenções, reduções de base de cálculo ou diferimentos.

A tentativa da União de aplicar indistintamente a Lei nº 14.789/2023 a toda e qualquer espécie de incentivo fiscal, inclusive aos créditos presumidos, representa uma extrapolação indevida do novo regime e colide frontalmente com os limites constitucionais de competência e com a jurisprudência firmada pelas cortes superiores.

Portanto, ainda que se admita a validade da nova disciplina em relação a outras formas de subvenção, sua aplicação aos créditos presumidos de ICMS é juridicamente inviável, seja em razão da natureza específica desses benefícios, seja por força das balizas impostas pelo STF e pelo STJ quanto ao conceito constitucional de receita e à proteção da autonomia dos entes federativos.

Considerações finais
A tentativa da União de incluir os créditos presumidos de ICMS na base de cálculo das contribuições ao PIS e à Cofins configura grave desvio de finalidade arrecadatória, que desrespeita não apenas os limites constitucionais da competência tributária, mas também compromete a lógica de cooperação federativa prevista no texto constitucional. Não se trata apenas de um equívoco interpretativo sobre o conceito de receita, mas de verdadeira afronta à autonomia dos entes subnacionais na definição e concessão de seus próprios mecanismos de fomento ao desenvolvimento regional.

Como demonstrado, os créditos presumidos de ICMS não se confundem com outras modalidades de subvenção para investimento. Sua natureza jurídica é distinta: consistem em mecanismos de desoneração tributária estruturados no interior da própria norma de incidência estadual. Ao não representarem ingresso financeiro, tampouco acréscimo patrimonial, esses créditos não se amoldam ao conceito constitucional de receita tributável, conforme já reconhecido pelo STF no Tema 69 e pelo STJ no EREsp nº 1.517.492/PR e no Tema 1.182.

A Lei nº 14.789/2023, ao instituir um novo regime jurídico para as subvenções, não alterou a natureza dos créditos presumidos nem afastou o entendimento consolidado da jurisprudência. A tentativa de aplicar indistintamente seus dispositivos a todas as formas de incentivo fiscal afronta os princípios da legalidade, da tipicidade tributária e da segurança jurídica.

A decisão proferida pela 1ª Vara Federal de Taubaté representa um importante marco de resistência jurídica a essa indevida ampliação do campo de incidência tributária. Ao reconhecer a inaplicabilidade da nova legislação aos créditos presumidos de ICMS, o juízo reafirmou a supremacia da Constituição e o dever de respeito à repartição de competências tributárias.

Conclui-se, portanto, que a tentativa de tributar créditos presumidos de ICMS por meio das contribuições ao PIS e à Cofins, além de juridicamente insustentável, representa séria ameaça ao pacto federativo e à segurança jurídica das políticas de desenvolvimento regional. Não há, nesses créditos, qualquer riqueza nova ou ingresso financeiro a justificar a incidência tributária; há, sim, um exercício legítimo da competência estatal para fomentar a economia local.

O que se coloca, agora, é um teste institucional: os tribunais manterão a coerência e o respeito ao federalismo, ou cederão à sanha arrecadatória em detrimento do equilíbrio entre os entes da federação? A resposta a essa pergunta dirá muito não apenas sobre o futuro da política fiscal no Brasil, mas sobre a força vinculante dos precedentes e a resiliência do próprio Estado constitucional.

[1] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário – Linguagem e Método. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2009, p. 811.

[2] 5 CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 9° ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 433.

Mini Curriculum

Raphael Okano Pinto de Oliveira
é especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT/USP) e graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Joelson Vitor Ramos dos Santos
é advogado, pós-graduando em Contabilidade Financeira pela Fecap (Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado), especialista em Direito Tributário pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e graduado em Direito pela Unesp (Universidade Estadual Paulista).

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