Consórcio público especial é nova figura na reforma tributária

Por Flávio Garcia Cabral

27/10/2025 12:00 am

O Senado aprovou há pouco tempo o Projeto de Lei Complementar (PLP) n° 108, de 2024, que versa sobre importantes medidas relacionadas à reforma tributária, tais como a instituição do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (CGIBS).

Dentre as variadas questões regulamentadas nesse PLP, destaca-se a previsão do artigo 493-A, que institui “associação pública especial, integrada pela União – representada pela RFB – e pelo CGIBS, com sede e foro no Distrito Federal, com o objetivo de desenvolver, implementar, gerir e operacionalizar, de forma compartilhada, módulos, sistemas e componentes relativos à administração do IBS e da CBS”.

Seus parágrafos 1º a 3º prescrevem ainda que a associação qualifica-se como entidade pública de natureza especial e submete-se ao regime jurídico de direito público; que ela tem sua atuação caracterizada pela ausência de vinculação, tutela ou subordinação hierárquica a qualquer órgão da administração pública; e que ela tem personalidade jurídica própria, distinta da União, do CGIBS, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, assegurada autonomia administrativa, patrimonial, técnica e financeira, nos limites estabelecidos em regulamento.

De plano, sem adentrar nas minúcias da figura em comento, observa-se que se trata de uma entidade nova, sob as vestes de uma associação pública de natureza especial. Assim, a primeira indagação que se faz é se seria possível a sua criação.

Inicialmente, nota-se que a Emenda Constitucional (EC) nº 132, de 20 de dezembro de 2023, já trouxe uma inovadora figura à organização administrativa brasileira. Trata-se do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (CGIBS), previsto no artigo 156-B como “entidade pública sob regime especial”, que “terá independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira”.

A Lei Complementar nº 214, de 16 de janeiro de 2025, reforça essa estruturação jurídica diferenciada, dispondo em seu artigo 480 que “fica instituído, até 31 de dezembro de 2025, o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (CGIBS), entidade pública com caráter técnico e operacional sob regime especial, com sede e foro no Distrito Federal, dotado de independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira. § 1º O CGIBS, nos termos da Constituição e desta lei complementar, terá sua atuação caracterizada pela ausência de vinculação, tutela ou subordinação hierárquica a qualquer órgão da administração pública”.

Enxergando justamente uma natureza autônoma no CGIBS, Ana Carolina Ali Garcia e Alexandre Aboud [1] esclarecem que “a sua natureza jurídica é de entidade pública de regime especial, com independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira, sendo os estados, o Distrito Federal e os municípios representados de forma paritária nesse ambiente. Não se trata, portanto, de uma autarquia, mas de uma nova categoria de entidade apresentada pela Reforma Tributária”.

De fato, Pedro Merheb [2] discorre sobre a inaplicabilidade dos modelos já existentes para o CGIBS, atestando que, “identidade administrativa do Comitê Gestor, absolutamente estranha aos Decretos-Lei 200 e 900 que edificaram a administração pública federal, é um verdadeiro desafio aos exegetas do nosso direito público, além de um experimento inaudito em outros modelos de tributação sobre o valor agregado”.

Observa-se que essa natureza especial restou confirmada por meio do Ato Declaratório Executivo Cocad nº 12, de 12 de junho de 2025.

Veja, portanto, que a EC nº 132, de 2023, inaugurou a possibilidade de uma nova estrutura administrativa, que não se enquadra nas clássicas entidades que compõem a chamada administração pública indireta no Brasil (autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista).

Nessa toada, é certo que novos arranjos organizacionais decorrerão das relações firmadas pelo CGIBS, bem como abre-se um caminho para que se estruturem novas figuras sob a roupagem de entidade pública sob regime especial, desde que não sejam constituídas com intuito fraudulento e seja compatível com suas funções, estruturação e com o interesse público.

É válido lembrar, como bem fez Luciano Ferraz [3], que “a noção de poliformismo organizatório, trabalhada pela doutrina alienígena — e objeto de textos fragmentários e de decisões judiciais não sistematizadas no Brasil —, revela a possibilidade de o poder público atuar sob diferentes formatos (administração direta, autarquias, fundações, sociedades mistas, empresas públicas) em diversos tipos de atividades (atividade econômica, serviços públicos, fomento, fiscalização), sem que para tanto se reconheça um perfeito enquadramento das estruturas respectivas nos conceitos gerais e abstratos traçados pelo legislador do Decreto-Lei no 200/1967”.

O autor [4] acrescenta ainda que, “a despeito da constitucionalização das noções de administração direta e indireta (v.g., art. 37. CR), a inclusão de novas entidades no âmbito desta última é matéria afeta à legislação infraconstitucional, como deixou ver a Lei no 11.107/2005, que dispôs sobre os consórcios de direito público, determinando a inclusão dos consórcios de direito público no seio da administração indireta em todos os níveis”.

O chamado Direito Administrativo Organizacional atualmente demanda novas conformações e arranjos. Afinal, na contemporaneidade, vislumbra-se a sujeição do “Direito da Organização Administrativa à juridicidade, resultando não só na vinculação do chamado ‘poder de organização administrativa’ à legalidade, mas também no condicionamento da organização a vinculações gerais do sistema normativo, como é o caso do princípio da eficiência, que impõe a racionalização e a sujeição de escolhas organizatórias a critérios de economicidade, eficácia e efetividade” [5].

Deste modo, uma atuação integrada entre os entes federativos, in casu, com um propósito específico de manejar a reforma tributária trazida pela EC, impõe que o CGIBS, representando estados e municípios (entes da federação subnacionais), possa firmar com a União consórcios e convênios de cooperação, nos termos preconizados pelo artigo 241 da Constituição.

No entanto, em razão da natureza peculiar do CGIBS, de entidade pública de regime especial, a formalização desses ajustes, em particular o consórcio que aqui nos interessa, não poderá deter a mesma conformação jurídica e operacional dos consórcios “comuns”, atualmente regidos pela Lei nº 11.107, de 06 de abril de 2005, e seu regulamento, Decreto nº 6.017, de 17 de janeiro de 2007.

Assim, faz-se necessária a instituição de uma nova estruturação jurídica, que no PLP nº 108/2024 recebeu o rótulo de associação pública especial, que justamente compartilhará com o CGIBS a mesma natureza de entidade pública sob regime especial.

Sublinhe-se que o regime aplicável a essa figura é o regime publicista, não se tratando de medida que busca alguma forma de “fuga do direito público”. No entanto, possui suas peculiaridades, como, por exemplo, a não vinculação e subordinação a nenhuma das estruturas da administração, ademais de estar contextualizada com a sua criação constitucional, qual seja, a estruturação da reforma tributária.

Possibilidade jurídica da medida
A instituição desse consórcio de natureza especial será feita por intermédio de lei complementar, não se tratando de um arranjo meramente administrativo ou decorrente de uma práxis administrativa. Sua única limitação, portanto, é o próprio texto constitucional.

Calha indicar ainda que, na proposta de projeto de lei complementar ora avaliada, a formalização de um ajuste com essa roupagem de consórcio ocorre de modo a se concretizar o disposto no artigo 156-B, §7º, da Constituição, que prevê que “o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços e a administração tributária da União poderão implementar soluções integradas para a administração e cobrança dos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V”.

A LC nº 214, de 2025, reforça essa possibilidade no seu artigo 58: “O Comitê Gestor do IBS e a RFB atuarão de forma conjunta para implementar soluções integradas para a administração do IBS e da CBS, sem prejuízo das respectivas competências legais”.

Mais além, na mesma LC, tratando de uma atividade específica, o legislador esmiúça o papel do CGIBS como representante dos entes federados estaduais e municipais: “Art. 122. A União, por meio da RFB, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, por meio do Comitê Gestor do IBS, poderão implementar soluções integradas para a administração de sistema que permita a devolução de forma unificada das parcelas a que se referem os incisos I e II do caput do art. 112 desta Lei Complementar”.

Em desfecho, tendo em vista que 1) já existe no ordenamento jurídico a figura autônoma da entidade pública sob regime especial, que não se confunde com as demais entidades da administração pública indireta; 2) que a Constituição demanda que o CGIBS (que representa os estados e municípios) e a RFB atuem de forma conjunta para implementar soluções integradas para a administração do IBS e da CBS; 3) que, dentre os variados mecanismos de cooperação e integração possíveis entre os entes da federação, existe a previsão constitucional de se firmar consórcio público, sem, contudo, delinear qual seria sua conformação jurídica; e 4) que a Lei Geral do Consórcio Público atualmente existente (Lei nº 11.107, de 2005) não é capaz de acolher a estrutura própria do CGIBS, conclui-se que a proposta de uma lei complementar, criando um consórcio público de natureza especial a ser formado entre o CGIBS e a União, por meio da RFB, possuindo caráter de entidade pública de natureza especial, para efetivar a implementação de soluções integradas para a administração do IBS e da CBS, é medida que se mostra juridicamente possível.

[1] GARCIA, Ana Carolina Ali; ABOUD, Alexandre. Reflexões sobre o contencioso judicial do IBS e da CBS. Revista de direito tributário da Apet, número 51 • out. 2024/mar. 2025, p.172.

[2] MERHEB, Pedro. O direito administrativo do Comitê Gestor do IBS. ConJur. Disponível aqui

[3] FERRAZ, Luciano. Além da sociedade de economia mista. Revista de Direito Administrativo, v. 266, p.48-68, 2014, p.65.

[4] FERRAZ, Luciano. Além da sociedade de economia mista. Revista de Direito Administrativo, v. 266, p.48-68, 2014, p.60.

[5] BITENCOURT NETO, Eurico. Transformações do Direito da Organização Administrativa e a Constituição 1988. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MOTTA, Fabrício (Coord.). O Direito Administrativo nos 30 da Constituição. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 76.

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pós-doutor em Direito pela PUC-PR, doutor em Direito Administrativo pela PUC-SP, professor e procurador da Fazenda Nacional e coordenador-geral de Contratação Pública da PGFN.

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