Confusão entre garantia (gênero) e penhora (espécie): Tema 1.385/STJ

Por Danilo Monteiro de Castro, Gustavo Bossolan Bezerra

06/10/2025 12:00 am

No último dia 29 de setembro , a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, através de acórdão de relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis Moura, afetou os Recursos Especiais 2.193.673 e 2.203.951, ambos de Santa Catarina, como representativos da seguinte controvérsia, a ser solucionada sob a sistemática dos recursos repetitivos: Definir se a fiança bancária ou o seguro oferecido em garantia de execução de crédito tributário são recusáveis por inobservância à ordem legal (Tema Repetitivo nº 1.385).

Em seu voto, acolhido por unanimidade pelos seus pares, há a delimitação específica da questão controvertida:

“O cerne da controvérsia está em definir se a ordem de preferência estabelecida no art. 11 da Lei n. 6.830/1980 permite a recusa de seguro garantia ou fiança bancária. O dinheiro figura no topo da ordem (i).
No entanto, a legislação prevê que o executado pode tomar iniciativa de garantir a execução pela oferta de fiança bancária ou de seguro garantia, com os mesmos efeitos da penhora, na forma do artigo 9º, II, e § 3º, da Lei n. 6.830/1980, com redação dada pela Lei n. 13.034/2014.
Além disso, a substituição da penhora por fiança bancária ou seguro garantia também é prevista como uma potesdade do devedor, no art. 15, I, da Lei n. 6.830/1980, com redação dada pela Lei n. 13.034/2014.
De forma semelhante, o Código de Processo Civil autoriza a substituição da penhora por fiança bancária ou seguro garantia, no art. 835, § 2º, e no art. 848, parágrafo único.
Portanto, a legislação prevê a fiança bancária e o seguro garantia como instrumentos para a garantia do Juízo. Ainda assim, a Fazenda Pública sustenta que tem a prerrogativa de optar pela penhora — notadamente, a tentativa de penhora em dinheiro. Assim, a ordem de preferência do art. 11 da Lei de Execução Fiscal prevaleceria sobre a oferta. Acrescenta que o caso se amolda ao tema 578 do STJ, segundo o qual a oferta de bens à penhora deve obediência à ordem legal e é ônus do executado comprovar “a imperiosa necessidade de afastá-la” (REsp n. 1.337.790, Rel. Min Herman Benjamin, julgado em 7/10/2013).” [1]

Intentamos demonstrar, através desse texto, que a existência da multiplicidade de recursos que justifica a afetação da controvérsia para a formulação de um precedente dito vinculante se dá por um equívoco na análise das premissas da questão: atribui-se erroneamente a identidade entre dois institutos distintos que possuem, para os fins da execução fiscal, o mesmo efeito — a garantia da obrigação veiculada na execução fiscal.

Além disso, em termos pragmáticos, a pretensão de impor a competência à Fazenda Pública para optar por um ou por outro meio de garantia da execução com base na sua pretensa liquidez esbarra em outras normas veiculadas pela Lei de Execuções Fiscais, que tornam insubsistente o interesse de agir dessa via argumentativa.

Da distinção da classe/gênero (meios de garantir a execução fiscal) e das suas subsclasses/espécies (penhora e fiança bancária/seguro garantia)

O artigo 9º da Lei de Execuções Fiscais [2] tutela os meios em que o Executado poderá garantir a execução, permitindo, além do depósito em dinheiro e a indicação à penhora de bens de terceiros, a [i] oferta de fiança bancária ou seguro garantia (inciso II), e a [ii] nomeação de bens à penhora, observada a ordem do artigo 11.

O referido dispositivo não prevê uma ordem de preferência entre os meios estabelecidos, ou a possibilidade de exercício discricionário do credor da escolha da forma de garantia da execução. Em realidade, a possibilidade é atribuída ao Executado, sendo ele o destinatário do comando legal (“o executado poderá”) e o agente competente realizador das condutas alternativas prescritas pelos incisos do artigo 9º da Lei de Execuções Fiscais, a qual não se submete, por ausência de norma impositiva nesse sentido, à ratificação do credor.

A ordem legal, portanto, não está entre os elementos denotativos da classe “meios de garantir a execução”, prescritos no artigo 9º, mas tão somente nas possibilidades denotativas da subclasse “penhora”, prescritas no artigo 11, o que fica evidente na própria redação do caput do dispositivo: “Art. 11 (LEF). A penhora ou arresto de bens obedecerá à seguinte ordem: […]”

O problema esbarra, então, em uma premissa ilógica: a fiança bancária e o seguro garantia não são espécies de penhora. Em realidade, ambos são subclasses de um mesmo gênero: os meios de garantir a obrigação perseguida na execução fiscal. São equiparados em razão desse efeito processual, e para essa finalidade específica, relacionando-se entre si enquanto subclasses, e não como classe e subclasse.

Em trabalho doutrinário de um dos autores deste texto, essa confusão acerca da inexistência de hierarquia dos meios de garantir a execução com a hierarquia específica dos meios de penhora é bem explicitada:

“Há, insista, equiparação hierárquica destas modalidades de garantia para fins executivos (o executado pode ofertar quaisquer delas, se respeitado o prazo previsto em lei). Cabe, então, ao exequente demonstrar a baixa liquidez do bem ofertado (a inviabilizar os posteriores atos expropriatórios), ou seja, insurgir-se contra ele, e não em face de sua relação com outras espécies de garantia.” [3]

Portanto, como é possível submeter à ordem legal de penhora institutos (fiança bancária e seguro garantia) que não são representativos de penhora? A resposta é única: não é possível. E somente nessas considerações lógicas formais, antes de adentrar ao substrato argumentativo, é possível verificar a inadequação do raciocínio construído sobre essas premissas.

Da existência de um ‘não-problema’
Em ordem substancial, o argumento fazendário no sentido de “ter a prerrogativa de optar pela penhora — notadamente, a penhora em dinheiro” destoa completamente do regime legal estabelecido pela Lei de Execuções Fiscais.

Inicialmente, outorgar ao credor o poder processual de escolher qual é o meio de garantia de sua preferência [4], podendo rechaçar os outros modos, ainda que expressamente delimitados em lei, é amplamente violador do postulado constitucional da paridade das armas no litígio, sobretudo em sede de execução fiscal, em que a garantia é condição de admissibilidade dos embargos à execução [5], defesa típica nessa seara. É outorgar à parte diretamente interessada a faculdade processual de não reconhecer um requisito procedimental de ato a ser realizado pelo outro polo.

Ao elencar, enquanto meios de garantia da execução fiscal além da penhora, o depósito voluntário em dinheiro, a fiança bancária e o seguro garantia, o legislador o fez amparado em uma conclusão teleológica: a liquidez desses instrumentos é equivalente à liquidez do ativo penhorável de maior prevalência na ordem do artigo 11 da Lei n. 6.830/80, o dinheiro.

Isso não parte tão somente da inafastável conclusão da segurança jurídica atribuída à fiança bancária e ao seguro garantia, instruídos por rígidas normas regulamentares e asseguradas por entidades pertencentes ao Sistema Financeiro Nacional (SFN) e à Superintendência de Seguros Privados (Susep), respectivamente, mas também com base em expressas disposições legais específicas.

Nesse sentido, o artigo 835, § 2º, do Código de Processo Civil [6], enquanto suporte literal de norma geral, e o § 3º do artigo 9º [7] e o artigo 15, inciso I [8], da Lei de Execuções Fiscais, denotam a diferenciação entre os outros meios de garantia da obrigação e a penhora (você só pode substituir ou equiparar uma coisa por algo que não é aquela mesma coisa — caso contrário, trata-se de identidade), e a equiparação legal ao dinheiro.

Ademais, a própria alegação pragmática de maior liquidez e menor complexidade operacional do dinheiro em face dos outros meios de garantia não se sustenta normativamente: a Lei de Execuções Fiscais impede que eventual pecúnia depositada no processo, seja voluntariamente (artigo 9º, inciso I), seja por penhora (artig 9º, inciso III) se converta em renda antes do trânsito em julgado, equiparando todas essas modalidades de garantia também sobre esse outro aspecto prático. [9]

Por fim, em recente julgamento da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, também em sede de recursos repetitivos (Tema nº 1.203), embora tratando de débitos de natureza não tributária, definiu a impossibilidade de o credor optar pela garantia de sua escolha:

“Tema Repetitivo nº 1.203 (STJ). O oferecimento de fiança bancária ou de seguro garantia, desde que corresponda ao valor atualizado do débito, acrescido de 30% (trinta por cento), tem o efeito de suspender a exigibilidade do crédito não tributário, não podendo o credor rejeitá-lo, salvo se demonstrar insuficiência, defeito formal ou inidoneidade da garantia oferecida.”

Conquanto trate especificamente de débito não tributário, são as razões determinantes de decidir que devem vincular os julgados posteriores [10], de modo que, inexistindo qualquer distinção ou alteração do contexto fático que motive a superação desse entendimento (prolatado em junho desse ano, inclusive), a mesma conclusão deve orientar a resolução do tema objeto deste texto.

Conclusões
A existência de controvérsia multiplicada sobre argumento cujas falhas lógicas, explicitadas na primeira parte deste texto, e substanciais, demonstradas na segunda parte, são endêmicas de um sistema jurídico que não consegue controlar satisfatoriamente o estabelecimento das premissas as quais a atividade de interpretação/aplicação deve se ater.

Conquanto permaneçam as problemáticas atinentes ao sistema de precedentes estabelecido, cuja abordagem extrapola os limites deste texto, espera-se que a definição dessa controvérsia seja realizada com base em uma análise rigorosa da estrutura lógica-normativa imposta pela Lei de Execuções Fiscais, bem como em observância às razões determinantes de julgados anteriores do mesmo Superior Tribunal de Justiça.

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Referências:

[1] ProAfR no REsp n. 2.193.673/SC, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Primeira Seção, julgado em 23/9/2025, DJEN de 29/9/2025.

[2] Art. 9º (LEF). Em garantia da execução, pelo valor da dívida, juros e multa de mora e encargos indicados na Certidão da Dívida Ativa, o executado poderá:
I – efetuar depósito em dinheiro, à ordem do Juízo em estabelecimento oficial de crédito, que assegura atualização monetária;
II – oferecer fiança bancária ou seguro garantia;
III – nomear bens à penhora, observada a ordem do artigo 11; ou
IV – indicar à penhora bens oferecidos por terceiros e aceitos pela Fazenda Pública.

[3] CASTRO, Danilo Monteiro de. Garantias ao cumprimento da obrigação tributária: uma proposta de classificação partindo dos peculiares efeitos da garantia prestada em contextos tributários. São Paulo: Noeses, 2022, p. 136/137.

[4] Conforme falamos acima, isso não significa que o credor não possa alegar eventual iliquidez da penhora, de modo a desnaturá-la enquanto ativo passível de ser expropriado, caso necessário. O que ele não pode é querer escolher como melhor lhe aprouver o meio de garantia da execução, listados no artigo 9º da Lei de Execuções Fiscais.

[5] Art. 16 (LEF). O executado oferecerá embargos, no prazo de 30 (trinta) dias, contados:
I – do depósito;
II – da juntada da prova da fiança bancária ou do seguro garantia;
III – da intimação da penhora.
1º. Não são admissíveis embargos do executado antes de garantida a execução.

[6] Art. 835 (CPC). A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem: […]

2º. Para fins de substituição da penhora, equiparam-se a dinheiro a fiança bancária e o seguro garantia judicial, desde que em valor não inferior ao do débito constante da inicial, acrescido de trinta por cento.

[7] Art. 9º (LEF). […] § 3º. A garantia da execução, por meio de depósito em dinheiro, fiança bancária ou seguro garantia, produz os mesmos efeitos da penhora.

[8] Art. 15 (LEF). Em qualquer fase do processo, será deferida pelo Juiz:
I – ao executado, a substituição da penhora por depósito em dinheiro, fiança bancária ou seguro garantia;

[9] Art. 9º (LEF). […] § 7º. As garantias apresentadas na forma do inciso II do caput deste artigo somente serão liquidadas, no todo ou parcialmente, após o trânsito em julgado de decisão de mérito em desfavor do contribuinte, vedada a sua liquidação antecipada.
Art. 32 (LEF). Os depósitos judiciais em dinheiro serão obrigatoriamente feitos: […]
2º. Após o trânsito em julgado da decisão, o depósito, monetariamente atualizado, será devolvido ao depositante ou entregue à Fazenda Pública, mediante ordem do Juízo competente.

[10] Art. 9º (Recomendação n. 134/2022 – CNJ). Recomenda-se que a observância dos precedentes dos tribunais ocorra quando houver, subsequente, casos idênticos, ou análogos, que devem ser decididos à luz da mesma razão determinante.

Mini Curriculum

Danilo Monteiro de Castro
é advogado, doutor e mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professor do Ibet, juiz do TIT-SP, pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet e integrante do grupo de trabalho de Direito Processual Tributário do IBDP.

Gustavo Bossolan Bezerra
é advogado, pós-graduando em Direito Tributário pelo Ibet.

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