Carf reacende debate sobre tributação na distribuição de dividendos

Por Adauto Lúcio S. Dutra

22/08/2025 12:00 am

Recentemente, uma decisão do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) ganhou notável repercussão nas redes sociais, reacendendo a discussão sobre a tributação do ajuste a valor justo (AVJ) e a distribuição de dividendos. Este acórdão, que deu ganho de causa a um contribuinte em uma autuação da Receita Federal, não apenas reafirma princípios basilares do nosso sistema tributário, mas também nos convida a olhar para as implicações que transcendem a esfera fiscal, adentrando o campo da governança corporativa e da responsabilidade dos administradores.

André Corrêa/Agência Senado
A decisão em questão, proferida pelo Carf no processo 11052.720011/2019-39 (Acórdão 1401-007.393), envolveu a empresa do setor imobiliário e a Fazenda Nacional. Em síntese, a Receita Federal autuou a contribuinte por omissão de receita não operacional, alegando que a distribuição de dividendos, proveniente de um ganho contábil gerado por um AVJ de um imóvel, configuraria a “realização” do ativo, tornando o ganho imediatamente tributável para fins de Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).

A tese da fiscalização era que, ao distribuir lucros com base nesse ganho de AVJ, a empresa estaria, de certa forma, “utilizando” ou “disponibilizando” o valor, o que, em seu entendimento, deslocaria o fato gerador da tributação. Contudo, a contribuinte defendeu que a simples distribuição de dividendos não se enquadra nas hipóteses de “realização” do ativo previstas na legislação tributária.

O cerne da controvérsia reside na interpretação do artigo 13 da Lei nº 12.973/2014. Este dispositivo legal estabelece que o ganho decorrente de avaliação de ativo ou passivo, com base no valor justo, não será computado na determinação do lucro real (ou seja, não será tributado) desde que seja evidenciado em subconta vinculada ao ativo ou passivo. O parágrafo 1º do mesmo artigo é claro ao elencar as situações que configuram a “realização” do ativo para fins de tributação: depreciação, amortização, exaustão, alienação ou baixa.

O Carf, em sua decisão, acolheu a tese da contribuinte e deu provimento ao recurso voluntário. O relator do acórdão, conselheiro Cláudio de Andrade Camerano, enfatizou que o ganho de AVJ é, por natureza, um “ganho em potencial”, uma “mera expectativa”, e não um ganho real e efetivo. Para que a tributação ocorra, é indispensável que o ativo que gerou o AVJ sofra uma alteração em seu registro patrimonial, seja parcial (como a depreciação) ou total (como a alienação ou baixa). No caso concreto, o imóvel permaneceu intacto no patrimônio da empresa, sem que nenhuma das hipóteses legais de realização se concretizasse.

A decisão do Carf foi, sem dúvida, acertada. Ela reafirma o princípio da neutralidade fiscal, que permeia o tratamento do AVJ no Brasil. Esse princípio garante que a mera avaliação contábil de um ativo a valor justo não deve, por si só, gerar um impacto tributário imediato. A tributação deve ocorrer apenas quando o ganho se materializa de fato, ou seja, quando há uma efetiva disponibilidade econômica ou jurídica do ganho. A Lei nº 12.973/2014 não concede uma isenção permanente, mas sim um diferimento, postergando a tributação para o momento da efetiva realização do ativo.

Além disso, a decisão do Carf está em plena consonância com o princípio da capacidade contributiva, um dos pilares do nosso sistema tributário. Exigir o imposto sobre um ganho potencial, que ainda não gerou fluxo de caixa para a empresa e que poderia, inclusive, não se concretizar no futuro (dada a volatilidade do mercado), seria uma violação desse princípio. A capacidade contributiva pressupõe uma manifestação de riqueza real e disponível, o que não se verifica na simples valorização contábil de um ativo.

Lente da governança corporativa e responsabilidade dos administradores
Contudo, a análise deste caso não pode se esgotar na esfera tributária. A decisão da empresa de distribuir dividendos com base em um ganho de AVJ, que, como vimos, é um ganho potencial e não gerador de caixa imediato, levanta questões importante no âmbito da governança corporativa e da responsabilidade dos administradores. É aqui que a discussão se aprofunda e se torna ainda mais relevante para a prática empresarial.

A Lei nº 6.404/76, a Lei das Sociedades por Ações (LSA), estabelece um conjunto de deveres e responsabilidades para os administradores de companhias, que servem como balizadores de sua conduta e como mecanismos de proteção da própria sociedade e de seus acionistas. Dentre esses deveres, o dever de diligência, previsto no artigo 153 da LSA, assume papel de destaque:

Art. 153. O administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios.

Este artigo é a “pedra de toque” da atuação dos administradores, o padrão de comportamento do qual os demais deveres se desdobram, conforme ensinam Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira. Para esses renomados juristas, a LSA, de forma minuciosa e “pedagógica”, detalhou esses deveres (artigos 153 a 157) e responsabilidades (artigo 158), culminando na ação de responsabilidade (Art. 159). Esse método serve como um guia seguro para os administradores e facilita a apuração de responsabilidade.

A diligência exigida, segundo Lamy Filho e Bulhões Pedreira, é a ordinária, não excepcional, e deve ser avaliada “caso a caso”, considerando as características da companhia, da decisão, do administrador, da informação disponível, do tempo e dos recursos. Embora o conceito de “homem ativo e probo” seja indeterminado, ele permite flexibilidade na aplicação concreta.

Spacca
Arnoldo Wald corrobora essa visão, caracterizando o dever de diligência como uma obrigação de meio, e não de fim ou resultado. Isso significa que o administrador não é responsável pelo insucesso da gestão se a exerceu regularmente, com o devido cuidado e diligência. A responsabilidade civil do administrador (artigo 158 LSA) surge se ele causar prejuízo com culpa ou dolo dentro de suas atribuições, ou se violar a lei ou o estatuto.

Nelson Eizirik complementa, apresentando uma visão moderna da diligência. Para ele, não se trata apenas do cuidado do “bom pai de família”, mas sim de comparar a atuação do administrador com a de um “bom administrador de empresas”, avaliada de acordo com a ciência da administração. A omissão em exercer ou proteger direitos da companhia é uma violação do dever de diligência.

Distribuição de dividendos e ganho potencial do AVJ: alerta para administradores
A decisão da empresa de distribuir dividendos com base em um ganho de AVJ, embora não tenha gerado uma obrigação tributária imediata, acende um sinal de alerta para os administradores sob a ótica do dever de diligência.

O ganho de AVJ, como já discutido, é um ganho potencial. Ele reflete uma valorização contábil do ativo, mas não se traduz em entrada de caixa para a empresa. Distribuir lucros que não têm lastro em geração de caixa pode acarretar problemas de liquidez para a empresa.

Vale lembrar que a LSA, em seu artigo 197, prevê a reserva de lucros a realizar justamente para lidar com situações como essa. Essa reserva permite que a assembleia-geral destine a ela a parcela do lucro líquido que ainda não foi realizada financeiramente, evitando a distribuição de dividendos que comprometeriam o caixa da empresa. Embora a constituição dessa reserva seja uma faculdade, e não uma obrigação, a decisão de não a constituir e, ainda assim, distribuir dividendos sem o devido lastro em caixa, poderia ser vista como uma falha no dever de diligência.

Um administrador que, agindo sem o “cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios”, decide pela distribuição de dividendos sem a devida análise da capacidade de caixa da empresa, expondo-a a riscos financeiros, poderia ser responsabilizado. A responsabilidade do administrador, conforme o artigo 158 da LSA, é subjetiva, baseada na culpa ou dolo. No entanto, a violação do dever de diligência (negligência ou imprudência) pode configurar a culpa necessária para a responsabilização.

Lamy Filho e Bulhões Pedreira sublinham que a atuação do administrador é uma “obrigação de meio, e não de resultado”. Assim, um eventual erro de gestão ou insucesso na decisão, por si só, em regra, não acarreta responsabilidade se ele agiu diligentemente, de boa-fé e no que supôs ser o melhor interesse social. A avaliação, portanto, é geralmente de procedimento, e não do mérito da decisão. No entanto, a decisão de distribuir dividendos sem lastro em caixa gerado pelos negócios da empresa, especialmente quando há mecanismos legais (como no caso da reserva de lucros a realizar) para evitar tal situação, pode ser questionada quanto ao procedimento e à diligência empregada.

Responsabilidade civil dos administradores: culpa, dolo e violação de deveres
A responsabilidade dos administradores é um tema complexo e multifacetado, que se desdobra em diversas hipóteses e nuances. O artigo 158 da LSA estabelece que o administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da companhia e em virtude de ato regular de gestão. Contudo, ele será responsável por prejuízos que causar quando:

Agir com culpa ou dolo no exercício de suas funções; ou
Violar a lei ou o estatuto da companhia.
A violação do dever de diligência (artigo 153) se enquadra na primeira hipótese. A falta do “cuidado e diligência” exigidos configura negligência ou imprudência, que são modalidades de culpa. Se essa conduta culposa causar um prejuízo à companhia, o administrador poderá ser responsabilizado civilmente.

Na lição de Arnoldo Wald a responsabilidade é subjetiva, com base na culpa própria do administrador. Ele também menciona que o Código Civil (artigo 1.011) estabelece dever semelhante de diligência para administradores de sociedades limitadas, usando a mesma linguagem do artigo 153 da LSA. A violação desse dever pode configurar a culpa necessária para a responsabilização civil.

Nelson Eizirik reforça que a responsabilidade é subjetiva e exige a comprovação de prejuízo e que os atos danosos foram praticados com culpa ou dolo no exercício das atribuições, ou com violação da lei ou do estatuto. O administrador só é responsável se violou, por ação ou omissão, os deveres impostos pela lei (artigos 153 a 156).

É necessário notar que a LSA prevê casos de responsabilidade solidária, como quando administradores são coniventes com atos ilícitos de outros ou negligenciam o dever de vigilância (artigo 158, §1º). Além disso, a lei inverte o ônus da prova em algumas situações, como na violação da lei ou do estatuto (artigo 158, II), cabendo ao administrador provar sua ausência de culpa ou que o prejuízo ocorreria de qualquer forma.

A ação de responsabilidade (artigo 159 LSA) requer prévia deliberação da Assembleia Geral. No entanto, acionistas ou terceiros diretamente prejudicados também podem propor a ação (artigo 159, §7º), desde que comprovem o dano direto e a violação de norma que visa tutelar seus interesses.

Implicações práticas e recomendações para administradores
A decisão do Carf, embora favorável ao contribuinte na esfera tributária, serve como um lembrete contundente da necessidade de uma gestão empresarial robusta e de uma governança corporativa eficaz. Para os administradores, algumas recomendações práticas se impõem:

Análise de fluxo de caixa na distribuição de lucros: a decisão de distribuir dividendos deve ser sempre precedida de uma análise rigorosa da capacidade de geração de caixa da empresa. O lucro contábil, especialmente quando influenciado por ganhos não monetários como o AVJ, não é sinônimo de disponibilidade financeira.
Uso estratégico da reserva de lucros a realizar: administradores prudentes devem considerar a constituição da Reserva de Lucros a Realizar (artigo 197 LSA) quando o lucro contábil incluir parcelas significativas de ganhos não realizados financeiramente. Essa ferramenta legal é um escudo contra problemas de liquidez e uma demonstração de diligência na gestão.
Documentação das decisões: todas as decisões relevantes, especialmente aquelas que envolvem a distribuição de resultados e a gestão de ativos com AVJ, devem ser devidamente documentadas. Atas de reuniões, pareceres de consultores (contábeis, financeiros, jurídicos) e relatórios de análise de risco são essenciais para demonstrar que o administrador agiu com o devido cuidado e diligência.
Conhecimento aprofundado das normas contábeis e legais: administradores devem ter conhecimento ou se cercarem de assessores com aprofundado conhecimento das normas contábeis (CPCs/IFRS) e da legislação aplicável (LSA, Código Civil, legislação tributária). A complexidade do AVJ e suas interações com a distribuição de lucros exigem uma compreensão multidisciplinar.
Adoção de boas práticas de governança corporativa: estruturas de governança robustas, com conselhos de administração atuantes, comitês de auditoria e controles internos eficazes, são fundamentais para mitigar riscos e garantir que as decisões sejam tomadas no melhor interesse da companhia. A “business judgment rule”, que protege o administrador que age de boa-fé e com diligência, pressupõe um processo decisório bem fundamentado.
Assim, a decisão do Carf sobre o AVJ e a distribuição de dividendos é um marco importante para a segurança jurídica no campo tributário, reafirmando a legalidade estrita e o princípio da capacidade contributiva. Contudo, ela também serve como um poderoso lembrete de que a atuação dos administradores vai muito além da conformidade fiscal.

A responsabilidade dos administradores, pautada pelo dever de diligência, exige uma visão holística da gestão, que considere não apenas os aspectos contábeis e tributários, mas também a saúde financeira da companhia, a proteção de seu capital e a prudência na distribuição de resultados. A dicotomia entre o que é permitido fiscalmente e o que é prudente do ponto de vista da gestão e da governança é um desafio constante.

Nesse cenário, a atuação do “homem ativo e probo” não se limita a evitar autuações fiscais, mas se estende a garantir a perenidade e a solidez da empresa, protegendo os interesses de todos os stakeholders. A decisão do Carf, portanto, é um convite à reflexão sobre a importância de uma governança corporativa sólida e de administradores que compreendam plenamente suas responsabilidades, navegando com sabedoria pelas complexas águas do direito e da gestão empresarial.

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consultor do Ayres Westin Advogados.

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