CARF: A missão!

Por Eduardo Salusse

18/10/2021 12:00 am

A Presidência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) editou ontem a Portaria CARF nº/ME nº 12.202, de 2021, estendendo para a Segunda e Terceira Turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) a competência para processar e julgar os recursos que versem sobre as matérias da Primeira Turma da CSRF, devidamente relacionadas em anexo único à própria Portaria.

Não por coincidência, esta Portaria foi editada na semana seguinte em que a Primeira Turma da CSRF julgou ao menos quatro questões que resultaram empatadas, decorrendo o provimento do pleito dos contribuintes por determinação do art. 19-E da Lei nº 10.522, de 2002.

Os julgamentos favoráveis às teses dos contribuintes referiam-se: (i) a dedução dos juros sobre o capital próprio do lucro real referentes a períodos anteriores, mas levando-se em conta a data da deliberação pelo seu pagamento ou creditamento; (ii) a trava de 30% do lucro tributável na compensação dos resultados negativos para empresas extintas, inclusive por evento de cisão, fusão ou incorporação; (iii) a inexistência de previsão legal para que as contrapartidas da amortização do ágio ou deságio não sejam computadas na base de cálculo da CSLL; e (iv) a exclusão dos valores correspondentes a fretes, seguros e Imposto de Importação para apuração dos preços de transferência.

A Primeira Turma da CSRF exteriorizou, nos mencionados julgamentos, uma aparente tendência de acolher teses mais sensíveis aos interesses da Fazenda Nacional, desconstituindo lançamentos tributários lavrados em face dos contribuintes.

Isso parece ter sido suficiente para que a Presidência do CARF logo buscasse uma solução para a iminente derrota em questões que envolvem temas e valores relevantes.

O anexo único à Portaria CARF nº/ME nº 12.202, de 2021, relaciona matérias escolhidas a dedo, cuja competência para julgamento deverá ser estendida para a Segunda e Terceira Turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais – CSRF, inclusive aquelas acima indicadas.

E porque fez isso? O Regimento interno do CARF permite que o Presidente do CARF, temporariamente, estenda a especialização para outra Seção de julgamento, visando à adequação do acervo e à celeridade de sua tramitação.

É comando lastreado no princípio constitucional da eficiência, previsto no artigo 37 da Constituição Federal de 1988.

Mas parece evidente que não foi este o real objetivo da norma, tendo reais contornos de desvio de finalidade administrativa. O objetivo real emerge da análise lógica e cronológica dos fatos, embora não conste de qualquer motivação explícita do ato.

Com a Portaria CARF nº/ME nº 12.202, de 2021, as Segunda e Terceira Turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais – CSRF serão provocadas a decidir as questões então afeitas apenas à Primeira Turma. E o resultado premonitório crava-se aqui: serão mantidos os lançamentos lavrados em face do contribuinte.

Ao assim fazer, a Presidência do CARF assegura a existência de divergência entre as Turmas da CARF, submetendo as questões à uniformização de decisões divergentes por meio de resolução, como consta no artigo 10º do Anexo II do Regimento Interno do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais.

A Resolução do Pleno da CSRF, por sua vez, é de observância obrigatória por todos os conselheiros do CARF, sob pena de perda de mandato. Assim, atinge-se a aparente finalidade real da medida, qual seja, buscar julgamentos favoráveis aos interesses da Fazenda Nacional.

Sabe-se que a própria jurisprudência do CARF considera a ordem sequencial e cronológica de determinados atos praticados pelos contribuintes para concluir que se tratam de operações simuladas – embora ostentem legalidade do ponto de vista formal – para encobrir a finalidade real de economizar tributos.

A mesma lógica é aplicável à indigitada Portaria, que nasce na esteira de uma sucessão de atos com a mesma finalidade dissimulada.

De plano, chamou a atenção a permissão para julgamentos virtuais no CARF de casos de até R$ 1 milhão (Portaria CARF nº 10.786/20), alterada para R$ 8 milhões (Portaria CARF nº 17.296), novamente alterado para R$ 12 milhões (Portaria CARF nº 665/21) e atualmente fixado em R$ 36 milhões (Portaria nº 3.138/21), sob o argumento de preservar o distanciamento social durante a pandemia. Embora não haja aparente sentido em suspender o julgamento apenas de processos de maior valor – prática divergente dos demais órgãos de julgamento do país – a pandemia figurou como um fundamento convincente.

Todavia, em paralelo, observamos o ajuizamento de ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) nº 6.399, 6.403 e 6.415, perante o Supremo Tribunal Federal, para atacar a norma que acabou com o voto de qualidade em favor da Fazenda Nacional. Anotem: o fim destas ADIs fará retomar a normalidade dos julgamentos.

Presenciamos a tentativa de “jabuti” materializado pela Emenda nº 137 ao PL 2.337/21 (que tratava de Imposto de Renda) para suprimir os artigos de lei que extinguiram o voto de qualidade da Fazenda Nacional.

A Portaria ME nº 260/2020 excluiu do âmbito de incidência do voto automático pró-contribuinte os casos que envolvam responsável tributário, matérias processuais, conversão em diligência, embargos de declaração, questões que não digam respeito à determinação e exigência do crédito tributário. E isso já vem sendo afastado pelo Judiciário.

Sucedeu a aprovação, em agosto de 2021, de 26 novas súmulas, sendo que boa parte delas amparou-se em precedentes decididos por votos em qualidade e, logo, longe de representarem uma jurisprudência pacífica no órgão. Foi, a bem da verdade, uma ágil resposta ao receio de reenfrentamento dos temas diante das novas regras.

Dito isto, surge a portaria que motivou este artigo. E com ela outras premonições surgem.

A primeira delas é que as teses mencionadas, junto com outras, deverão ter desfechos favoráveis à Fazenda Nacional nas outras Turmas da CSRF e ensejarão a uniformização pelo Pleno da CSRF, cuja resolução vinculará todos os conselheiros e permitirá que a manipulação de julgamentos levada a efeito possa atingir os seus objetivos.

A segunda delas é que a composição da Primeira Turma da CSRF logo será alterada, sendo que os conselheiros “rebeldes” por interpretar a lei em desfavor da Fazenda Nacional deverão ser deslocados ou, quiçá, não reconduzidos ao cargo.

A terceira delas é que os responsáveis por esta bufonaria deverão responder por violação ao princípio da moralidade administrativa previsto no artigo 37 da Constituição Federal de 1988, tendo que explicar o aparente desvio de finalidade do ato que é mais uma iniciativa ilegal para tentar influenciar o livre resultado dos julgamentos administrativos.

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Advogado graduado pela PUC/SP, mestre em direito tributário pela FGV Direito SP, doutorando em direito pela PUC/SP e professor de pós-graduação na FGV/SP

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