A tentativa da receita federal de tributar créditos presumidos de icms em afronta à jurisprudência consolidada do STJ
Por Pablo Juan Estevam Morais, Roberto Rodrigues de Morais
10/11/2025 12:00 am
No presente texto analisamos a recente tentativa da Receita Federal do Brasil (RFB), por meio das Soluções de Consulta COSIT nº 216/2024 e nº 4061/2024, de incluir os créditos presumidos de ICMS na base de cálculo do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).
A medida ignora a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que reconhece a natureza indenizatória dos benefícios fiscais estaduais e a vedação de sua tributação pela União, em respeito ao pacto federativo.
Nesse artigo examinamos o conflito entre a Lei nº 14.789/2023, o entendimento do STJ e os impactos jurídicos e econômicos dessa divergência.
Palavras-chave: crédito presumido de ICMS; IRPJ; CSLL; pacto federativo; jurisprudência do STJ; Lei nº 14.789/2023.
I – INTRODUÇÃO
Disserto que o crédito presumido de ICMS é um benefício fiscal concedido pelos Estados e pelo Distrito Federal com o objetivo de estimular determinados setores econômicos, reduzir custos e fomentar o desenvolvimento regional.
É bem de ser ver que trata-se de um incentivo previsto no âmbito da competência tributária estadual, disciplinada pelo artigo 155, inciso II, da Constituição Federal de 1988, que confere aos Estados autonomia para instituir e regular o ICMS.
Entretanto, nos últimos meses, a Receita Federal publicou as Soluções de Consulta COSIT nº 216/2024 e nº 4061/2024, nas quais defende a tributação dos créditos presumidos de ICMS pelo IRPJ e pela CSLL a partir da entrada em vigor da Lei nº 14.789/2023.
Esse entendimento contraria a orientação jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, há anos, reconhece que tais benefícios não configuram acréscimo patrimonial, sendo, portanto, indevidos para fins de incidência de tributos federais sobre a renda e o lucro.
A questão reacende o debate sobre os limites da tributação e a necessidade de respeito à separação de competências entre os entes federativos.
II – OS FUNDAMENTOS LEGAIS E ADMINISTRATIVOS DA CONTROVÉRSIA
A Lei nº 14.789/2023 regulamentou o tratamento fiscal das subvenções para investimento, estabelecendo em seu artigo 3º que
“as subvenções para investimento não serão excluídas da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, gerando apenas crédito fiscal compensável ou ressarcível”.
A Receita Federal, ao editar as Soluções de Consulta mencionadas, interpretou que, a partir de 1º de janeiro de 2024, não há mais hipótese legal que autorize a exclusão de benefícios fiscais estaduais — inclusive créditos presumidos de ICMS — das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL, independentemente do regime de apuração.
Entretanto, tal entendimento desconsidera que os créditos presumidos não se enquadram no conceito de subvenção para investimento, tampouco constituem “receita” ou “lucro” da pessoa jurídica, mas sim um incentivo fiscal autônomo, criado por outro ente federativo.
III – A JURISPRUDÊNCIA CONSOLIDADA DO STJ E O PRINCÍPIO FEDERATIVO
O Superior Tribunal de Justiça, em reiteradas decisões, fixou entendimento firme no sentido de que os créditos presumidos de ICMS não integram a base de cálculo do IRPJ nem da CSLL, por representarem renúncia fiscal estadual e não um acréscimo patrimonial do contribuinte.
O leading case é o REsp nº 1.517.492/PR, julgado sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.182), no qual o STJ firmou a seguinte tese:
“Os créditos presumidos de ICMS concedidos por Estados e pelo Distrito Federal, como incentivo fiscal, não devem ser incluídos na base de cálculo do IRPJ e da CSLL, sob pena de violação ao pacto federativo.”
(STJ, REsp 1.517.492/PR, Rel. Min. Regina Helena Costa, Primeira Seção, julgado em 22/02/2018, DJe 27/04/2018.)
A Corte Superior reconheceu que, ao tributar tais valores, a União interfere indevidamente na política fiscal dos Estados, o que fere o artigo 150, inciso VI, alínea “a”, da CF/88, que consagra o princípio da imunidade recíproca, e o artigo 60, §4º, I, que torna o pacto federativo cláusula pétrea.
Esse entendimento foi reafirmado em inúmeros precedentes posteriores, como o AgInt no REsp 1.937.792/SC e o AgInt no REsp 1.945.110/RS, ambos de 2021, reiterando que a tributação federal sobre créditos presumidos de ICMS viola a autonomia dos Estados.
IV – A INCONSTITUCIONALIDADE DA TENTATIVA DE REINTERPRETAÇÃO ADMINISTRATIVA
A tentativa da Receita Federal de reinterpretar o alcance da decisão do STJ à luz da Lei nº 14.789/2023 revela-se infraconstitucionalmente ilegítima.
Isso porque a jurisprudência consolidada da Corte Superior não se baseia em mera interpretação legal, mas em fundamento de índole constitucional, especialmente na proteção ao pacto federativo.
Assim, nenhuma norma infraconstitucional poderia modificar ou restringir o entendimento fixado judicialmente.
A hierarquia das fontes do direito impede que um ato administrativo (como uma Solução de Consulta) ou mesmo uma lei ordinária altere efeitos de decisão judicial com base constitucional.
Conforme destaca o artigo 927 do Código de Processo Civil (CPC), os tribunais e órgãos administrativos devem observar os precedentes obrigatórios, inclusive os firmados em recursos repetitivos pelo STJ. Ignorar essa obrigatoriedade afronta diretamente o princípio da segurança jurídica (art. 5º, caput, CF/88) e da proteção da confiança legítima.
V – OS IMPACTOS PRÁTICOS E O CONTECIOSO
A insistência da Receita Federal em manter a tributação de créditos presumidos de ICMS acarreta aumento do contencioso administrativo e judicial, além de insegurança jurídica para as empresas que usufruem de benefícios fiscais concedidos pelos Estados.
O posicionamento do Fisco pode gerar autuações indevidas e compelir contribuintes a recorrer ao Judiciário para assegurar direitos já reconhecidos.
O risco de uma eventual modulação de efeitos pelo STF, caso o tema venha a ser rediscutido, também preocupa o setor produtivo, dada a relevância econômica do tema — os créditos presumidos de ICMS em São Paulo, por exemplo, atingiram cerca de R$ 9 bilhões em 2025, segundo dados obtidos via Lei de Acesso à Informação.
VI – A LEI QUE O FISCO FEDERAL E A PGFN DEVEM CUMPRIR
Art. 13. A Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, passa a vigorar com as seguintes alterações:
(…)
“Art. 19. Fica a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional dispensada de contestar, de oferecer contrarrazões e de interpor recursos, e fica autorizada a desistir de recursos já interpostos, desde que inexista outro fundamento relevante, na hipótese em que a ação ou a decisão judicial ou administrativa versar sobre:
…………………………………………………………………………………………….
II – tema que seja objeto de parecer, vigente e aprovado, pelo Procurador-Geral da Fazenda Nacional, que conclua no mesmo sentido do pleito do particular;
…………………………………………………………………………………………….
IV – tema sobre o qual exista súmula ou parecer do Advogado-Geral da União que conclua no mesmo sentido do pleito do particular;
V – tema fundado em dispositivo legal que tenha sido declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso e tenha tido sua execução suspensa por resolução do Senado Federal, ou tema sobre o qual exista enunciado de súmula vinculante ou que tenha sido definido pelo Supremo Tribunal Federal em sentido desfavorável à Fazenda Nacional em sede de controle concentrado de constitucionalidade;
VI – tema decidido pelo Supremo Tribunal Federal, em matéria constitucional, ou pelo Superior Tribunal de Justiça, pelo Tribunal Superior do Trabalho, pelo Tribunal Superior Eleitoral ou pela Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência, no âmbito de suas competências, quando:
a) for definido em sede de repercussão geral ou recurso repetitivo; ou
b) não houver viabilidade de reversão da tese firmada em sentido desfavorável à Fazenda Nacional, conforme critérios definidos em ato do Procurador-Geral da Fazenda Nacional; e
VII – tema que seja objeto de súmula da administração tributária federal de que trata o art. 18-A desta Lei.
“Art. 19-A. Os Auditores-Fiscais da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil não constituirão os créditos tributários relativos aos temas de que trata o art. 19 desta Lei, observado:
I – o disposto no parecer a que se refere o inciso II do caput do art. 19 desta Lei, que será aprovado na forma do art. 42 da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, ou que terá concordância com a sua aplicação pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia;
II – o parecer a que se refere o inciso IV do caput do art. 19 desta Lei, que será aprovado na forma do disposto no art. 40 da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, ou que, quando não aprovado por despacho do Presidente da República, terá concordância com a sua aplicação pelo Ministro de Estado da Economia; ou
III – nas hipóteses de que tratam o inciso VI do caput e o § 9º do art. 19 desta Lei, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional deverá manifestar-se sobre as matérias abrangidas por esses dispositivos.
§ 1º Os Auditores-Fiscais da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia adotarão, em suas decisões, o entendimento a que estiverem vinculados, inclusive para fins de revisão de ofício do lançamento e de repetição de indébito administrativa.
§ 2º O disposto neste artigo aplica-se, no que couber, aos responsáveis pela retenção de tributos e, ao emitirem laudos periciais para atestar a existência de condições que gerem isenção de tributos, aos serviços médicos oficiais.”
“Art. 19-B. Os demais órgãos da administração pública que administrem créditos tributários e não tributários passíveis de inscrição e de cobrança pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional encontram-se dispensados de constituir e de promover a cobrança com fundamento nas hipóteses de dispensa de que trata o art. 19 desta Lei.
(grifos nosso)
VII – CONCLUSÃO
O tratamento jurídico do crédito presumido de ICMS é tema de grande relevância tributária e federativa.
A tentativa da Receita Federal de tributar tais valores sob o pretexto de aplicar a Lei nº 14.789/2023 constitui violação direta à jurisprudência consolidada do STJ e afronta ao pacto federativo.
O entendimento judicial prevalecente é o de que o crédito presumido de ICMS não constitui receita ou lucro tributável, mas benefício fiscal estadual, insuscetível de tributação pela União.
Assim, cabe aos contribuintes, diante da postura da Receita, buscar proteção judicial, reafirmando a autoridade das decisões judiciais e a supremacia da Constituição sobre atos normativos infralegais.
Como o imbróglio in comento já foi sedimentado pelo STJ no tema 1.182, trata-se de vitória esperada para os contribuintes que recorrerem ao Poder Judiciário Federal.
NOTAS:
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Lei nº 14.789, de 29 de dezembro de 2023. Dispõe sobre o tratamento tributário das subvenções para investimento.
Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015.
RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Soluções de Consulta COSIT nº 216/2024 e nº 4061/2024.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp nº 1.517.492/PR, (TEMA 1.182) Rel. Min. Regina Helena Costa, Primeira Seção, DJe 27 abr. 2018.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgInt no REsp nº 1.937.792/SC, Rel. Min. Gurgel de Faria, DJe 22 nov. 2021.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgInt no REsp nº 1.945.110/RS, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe 17 dez. 2021.
FAUVEL, Augusto. Entrevista à ConJur. 2025.
DE PAULA, Breno Dias. Consultor Jurídico, 2025.
RUMACHELLA, Vagner. Análise Jurídica sobre o pacto federativo e os créditos presumidos de ICMS. 2025.
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Especialista em Direito Tributário.
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