A Câmara Nacional de Integração do Contencioso Administrativo e a harmonização do IBS/CBS
Por Thais de Laurentiis
20/11/2025 12:00 am
Esta coluna tem enfatizado os desafios vindouros do contencioso administrativo fiscal, na nova, e cada vez mais próxima, era da reforma tributária do consumo no Brasil.
Numa primeira ocasião [1], em julho de 2024, quando ainda estávamos diante do PLP 68/2024, externando a opção que estava sendo tomada pelo legislador de não unificação do contencioso administrativo relativo ao IBS e à CBS, essa colunista se dispôs a tratar da problemática a respeito da vinculação dos entendimentos exarados pelos atos do Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias (CHAT ou Comitê de Harmonização) e pelo Fórum de Harmonização Jurídica das Procuradorias (FHJP ou Fórum de Harmonização) [2].
Naquele momento, estava claro: os projetos de lei que tramitavam no congresso, tanto a respeito do direito material (PLP 68/2024) quanto processual (PLP 108/2024) conferiam a competência de harmonização da jurisprudência administrativa tributária ao Chat, com seu diálogo com o FHJP, os quais teriam o poder de vincular tanto o processo administrativo a respeito do IBS (perante o Comitê Gestor, no rito do PL 108), quanto o processo administrativo fiscal atinente à CBS (seguindo o rito do Decreto 70.235/72, perante as DRJs e Carf).
O cenário normativo mudou e, das mudanças, na coluna de hoje focaremos justamente naquela atinente à harmonização da jurisprudência administrativa.
Trinca de harmonização do IBS e da CBS
Além da publicação da Lei Complementar n. 214/2025, temos agora, na versão do PLP 108 devolvida à Câmara dos Deputados, uma trinca de harmonização do IBS e da CBS. Isto porque foi criado, para integrar o sistema ao lado do Comitê de Harmonização e do Fórum de Harmonização, a Câmara Nacional de Integração do Contencioso Administrativo do IBS/CBS (CNICA ou Câmara de Integração).
Da análise do PLP 108 hoje posto à mesa, fica claro que os dispositivos que conferiam a competência de harmonização de jurisprudência administrativa ao CHAT (artigos 111, 112 do texto anterior do PLP 108), foram retirados do projeto. Tal competência foi levada à Câmara de Integração, por meio da criação, pelo PLP 108, do artigo 323-G da LC 214/2025.
Assim, pelas cartas lançadas aos players do contencioso tributário nesse momento, a trinca de harmonização do IBS e da CBS, será calcada na atuação: 1) do CHAT e do FHJP para solucionar divergências de interpretação por atos normativos infralegais (artigos 321 a 323 da LC 214); 2) do CHAT como responsável por harmonização em caso de divergências em soluções de consulta exaradas pela RFB e pelo Comitê Gestor (artigos 323-A e 323-B da LC 214, criados pelo PLP 108); e 3) da CNICA para resolver divergências interpretativas no âmbito da jurisprudência administrativa a respeito do IVA-dual, sendo esse último o foco do nosso artigo de hoje, como já mencionado.
Quem é a Câmara de Integração?
Quanto à composição, o PLP 108 afirma que farão parte da CNICA: 1) quatro conselheiros representantes da Fazenda Nacional na Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf (CSRF), indicados pelo ministro de Estado da Fazenda; 2) quatro membros da Câmara Superior do Comitê Gestor do IBS (CGIBS), sendo dois das administrações tributárias dos estados e do DF e dois das administrações tributárias dos municípios e do DF, indicados pelo CGIBS; 3) quatro representantes dos contribuintes, sendo dois entre os conselheiros da CSRF e dois entre os membros da CGIBS, indicados respectivamente pelo ministro da Fazenda e pelo CGIBS. Ademais, há a figura do presidente (cargo exercido de forma alternada, por representante da Fazenda Nacional ou por representante do CGIBS), que somente vota em caso de empate.
Imediatamente percebe-se que inexiste paridade entre os representantes dos contribuintes (com quatro assentos) e os representantes da Fazenda Pública (com oito assentos) na Câmara de Integração; além das indicações dos representantes dos contribuintes não advirem de órgão de sua representação (confederações, por exemplo). Também imediatamente percebe-se o problema que isso representa quando bem compreendida a função de uniformização de jurisprudência administrativa conferida ao novo órgão judicante.
Trataremos mais desses e de outros pontos sensíveis a seguir.
O que julga a Câmara de Integração?
É importante destacar que o PLP 108 faz uma clara distinção entre “legislação comum” e “legislação específica do IBS”. Enquanto o contencioso administrativo do IBS termina na Câmara Superior do CGIBS, dando a última palavra sobre a interpretação da legislação específica do IBS (artigo 79, § do PLP 108), a legislação comum (ou seja, dispositivos legais a respeito de matérias que sejam iguais para o IBS e para a CBS) será julgada em última instância administrativa pela Câmara de Integração, quando acionada para trazer harmonização.
Assim, na hipótese de os contenciosos federal e estadual/municipal apresentarem decisões administrativas divergentes, poderá ser manejado recurso — que mantém a suspensão da exigibilidade do crédito tributário —, pela Fazenda Pública ou pelo sujeito passivo, para que a Câmara de Integração dê a cartada final sobre o tema.
Nesse sentido, o PLP 108 estipula que cabe recurso especial, no prazo de dez dias úteis, “contra decisão do CGIBS proferida por Câmara Recursal de Julgamento ou por Câmara de Julgamento de primeira instância no rito sumário, ou contra decisão de Câmara, turma de Câmara, turma extraordinária ou turma especial do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), que conferir à legislação comum do IBS e da CBS interpretação do direito divergente da que lhe tenha dado outra decisão desses órgãos de julgamento, com vistas a uniformizar a jurisprudência administrativa em matéria comum aos dois tributos”.
Uma primeira observação: todos os temas fundamentais sobre o IBS/CBS serão alocados ao Cniat, uma vez que a legislação comum, por determinação constitucional (artigo 149-B), abarca fatos geradores, bases de cálculo, hipóteses de não incidência, sujeitos passivos, imunidades, regimes específicos, diferenciados ou favorecidos, regras de não cumulatividade e de creditamento.
Em segundo lugar, não mais existem as turmas especiais no Carf, de modo que a redação deveria ser ajustada nesse sentido, retirando a expressão do texto proposto.
Terceiro, vê-se que a proposta não abarca a uniformização de decisões divergentes entre a CSRF e a Câmara Superior do IBS, o que parece ter fundamento no fato de que essa última somente proferirá decisões sobre a legislação específica do IBS, ou seja, não haverá divergência sobre a legislação comum a ser solucionada.
Atributos das decisões da Câmara de Integração e respectivas críticas
O artigo 323-G da LC 214, que se propõe seja criado pelo PLP 108, apresenta em seu §5º os limites, efeitos e características das decisões exaradas pela CNICA. Os limites são: 1) as decisões não podem afastar a aplicação ou deixar de observar a legislação tributária sob o fundamento de inconstitucionalidade ou ilegalidade; 2) as decisões restringem-se à apreciação de questões de direito, vedado o reexame fático-probatório. O efeito das decisões da CNICA é a vinculação dos órgãos julgadores da União e do CGIBS à decisão exarada. E a característica é que as decisões não se vinculam aos fundamentos trazidos pelas partes no processo e podem divergir tanto do acórdão paradigma quanto da decisão recorrida.
Críticas contundentes são necessárias quanto às três balizas acima descritas.
Para tanto, necessário primeiramente lembrar que o processo administrativo fiscal possui natureza híbrida. Isso porque, ao mesmo que trata de uma sucessão de atos culminando em decisão final de órgão judicante — trazendo todas as características do Direito Processual Civil, pautado no contraditório e na ampla defesa —, é processo que ocorre no seio da administração pública enquanto forma de autocontrole dos atos administrativos, visando a primazia da legalidade [3].
Dito isso, comecemos nossa análise crítica.
No que tange à proibição de afastamento da legislação tributária em razão de sua ilegalidade, trata-se de disciplina que esvazia a essência do contencioso administrativo fiscal enquanto forma de controle de validade dos atos administrativos. É dever da administração pública, enquanto revisora dos seus próprios atos, que o lançamento tributário (enquanto ato administrativo que é), seja dotado de todos os requisitos de validade, em absoluta consonância com o diz a lei em sentido estrito. Tal assertiva pauta-se não somente no princípio da legalidade (artigo 150, I da CF), mas também na legislação complementar (artigo 97 do CTN), e, mais especialmente, nos diplomas normativos que fundam o regime de controle dos atos administrativo (artigo 2º da Lei nº 4.717/62) e o processo administrativo (artigo 53 da Lei n. 9.784/99).
O último dispositivo citado merece transcrição: “a Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos”.
Cumpre lembrar a lição de Antonio Carlos Cintra do Amaral, no sentido de que o “ato administrativo válido” é um pleonasmo [4]. Aí exsurge o tema do controle da administração pública, ou seja, o conjunto de mecanismos “por meio dos quais se exerce o poder de fiscalização e de revisão da atividade administrativa em qualquer das esferas de Poder” [5].
Esses controles podem ser classificados em interno (administrativo, ou autocontrole) e externos (Judiciário e Parlamentar). Além desses controles dos poderes uns sobre os outros, há também a atuação do Tribunal de Contas e do Ministério Público, sendo que é possível falar também em um controle pelo próprio cidadão (controle popular/controle participativo) [6].
Mas quais as funções do controle da Administração Pública? Ao lado da defesa do patrimônio público, da adequada aplicação dos recursos públicos e do cumprimento das finalidades da atuação administrativa, aparece a adstrição à legalidade [7].
Assim, enquanto é salutar a opção sistêmica de reservar ao Poder Judiciário a apreciação de constitucionalidade das normas (artigo 26-A do Decreto 70.235/72 e Súmula Carf nº 2), retirar do Poder Judicante exercido atipicamente pela administração tributária a competência de julgar que uma determinada instrução normativa não encontra compatibilidade com a respectiva lei ordinária que deveria dar-lhe lastro e, por isso, uma cobrança tributária pautada no ilegal ato deve ser cancelada, é, em resumo, retirar a sua essência, enquanto fundamental exercício de controle de validade dos atos administrativos.
Não por outro motivo, nunca existiu tal limitação no centenário, seguro e eficaz rito do contencioso administrativo fiscal federal.
Por fim, vê-se que a proposta é cega ao fato de que os contribuintes, se restarem vencidos no âmbito administrativo, sempre podem se socorrer ao Poder Judiciário, pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição. Quer dizer que autuações fiscais feitas com base em legislação tributária em desconforme à lei em sentido estrito, levará às Fazendas Públicas a um litígio judicial, o que certamente não é o melhor cenário para a sociedade como um todo.
Passando ao efeito atribuído às decisões da Câmara de Integração, de vincular os órgãos julgadores tanto na esfera federal quanto no âmbito do Comitê Gestor (estadual e municipal), os problemas são de duas ordens.
Em primeiro lugar, em razão da falta de paridade da CNICA, todo o legitimado desenho institucional paritário do Carf e das Câmaras Recursais cai por terra. Do que adianta prever um contencioso administrativo no qual as instâncias de julgamento contam com representantes dos contribuintes, se a decisão final sobre uma matéria será tomada sem a participação desses?
Em segundo lugar, pergunta-se: se a competência dos órgãos judicantes promoverem a revisão do lançamento tributário (cf. artigo 145 do CTN) pauta-se na autotutela da administração pública, como validar que esse controle seja exercido por órgão que está fora da estrutura que exarou o ato administrativo de cobrança tributária? Essa competência é delegável?
Finalmente, o ponto que causa mais espanto da proposta legislativa é a característica da decisão da CNICA estar acima de todas as balizas processuais existentes no Brasil: uma decisão exarada por tribunal administrativo que não se vincula aos fundamentos discutidos no processo, podendo divergir tanto do acórdão paradigma quanto da decisão recorrida.
Nem o STF em competência recursal para julgar ações de controle difuso e subjetivo de constitucionalidade tem esse poder, de proferir uma decisão que em nada se relaciona com os limites da lide, do pedido e da causa de pedir.
Afinal, o autor, ao deduzir a pretensão em juízo por meio da petição inicial, fixa os limites da lide. O limite objetivo da sentença é o pedido do autor, sendo dever do julgador apreciar as questões que lhe são postas nos autos, vedada decisão de natureza diversa da pedida (artigos 141 e 492 do CPC). Como consequência lógica, claramente incorporada ao contencioso administrativo pela sua própria natureza, há o que a doutrina denominou de princípio da congruência (vide REsp 301.706), entre o pedido e a sentença (vide Acórdão Carf nº 930301.705). Isso sem se falar do efeito devolutivo, que é a regra inclusive para recurso especial e extraordinário, totalmente esquecido pelo PL 108.
Enfim, a situação faz lembrar a competência do Ministro da Fazenda de rever e anular as decisões dos então Conselhos de Contribuintes (Decreto nº 83.304/1979), a qual já parecia enterrada, em especial em um Estado que se pretende substancialmente Democrático de Direito.
Conclusão
A harmonização da jurisprudência administrativa da IBS e do CBS é absolutamente necessária. Contudo, são muitos os jockers que devem ser retirados do baralho trazido pelo PLP 108, sob pena de desnaturar o sistema de controle dos atos administrativos tributários, fulminando sua eficácia e importância para uma definitiva solução de conflitos fiscais.
[1] Aqui
[2] Vide aqui
[3] Vide LAURENTIIS, Thais De. Mudança de Critério Jurídico pela Administração Tributária: regime de controle e garantia do contribuinte. São Paulo, IBDT, 2022.
[4] Validade e invalidade do ato administrativo. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, n. 9, p. 11, jan.-mar. 2007.
[5] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2020. p. 1013.
[6] FERRAZ, Sérgio. O controle da Administração Pública na Constituição de 1988. Revista de Direito Administrativo, [s.l.], v. 188, p. 68-73, 1º abr. 1992.
[7] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Os grandes desafios do controle da Administração Pública. Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP, Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010.
Mini Curriculum
é advogada, sócia do escritório Rivitti e Dias Advogados, doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP, com período na Sciences Po/Paris, especialista pelo Ibet, graduada pela Faculdade de Direito da USP, árbitra no CBMA, professora do mestrado profissional do IBDT, professora de Direito Tributário em cursos de pós-graduação e extensão universitária e ex-conselheira titular do Carf na 1ª e da 3ª Seção de Julgamento.
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