Por que precisamos fazer uma reforma tributária, qual delas e quando

Por Fernando Facury Scaff

Dizem as autoridades que a pandemia está cessando e que em breve, coisa de mais 60 a 90 dias, voltaremos à vida normal, seja lá o que isso signifique. É viver para crer. Portanto, é preciso planejar a retomada da economia, e uma das pautas que pululam nos debates é a da reforma tributária.

Não tenho dúvidas de que é necessário reformar nosso sistema tributário, pois o atual é caro, arcaico e complexo, não sendo satisfatório para nenhuma das partes envolvidas: os Fiscos, os contribuintes e a sociedade. Os Fiscos, que vão receber o dinheiro; os contribuintes, que pagarão; e a sociedade, que receberá os serviços públicos custeados com o dinheiro recebido.

Com essa afirmação, penso ter respondido à primeira questão colocada: Por que fazer a reforma tributária. Vamos às demais.

Qual reforma devemos fazer? É sabido que existem três grandes bases econômicas sobre as quais devem se debruçar as incidências tributárias: renda, consumo e propriedade. Existem outras incidências que são relevantes, não com finalidades arrecadatórias, mas regulatórias, bem exemplificadas pela tributação das importações e das exportações, e que devem também ser consideradas.

Comecemos pela renda. Idealmente, quem ganha mais deve pagar mais. Essa é uma regra universal de isonomia econômica. No Brasil, a arrecadação do Imposto sobre a Renda é fortemente centrada em salários, proventos (aposentadorias) e pensões. Existe também a tributação da renda financeira (CDBs, poupança, fundos de renda fixa etc.) e a do capital de risco (bolsas, dividendos etc.).

Um bom debate é identificar se todas essas bases devem estar sujeitas às mesmas incidências. Salários, proventos e pensões são recebidos praticamente sem riscos, exceto, em alguns casos, pelo desemprego. Rendas financeiras são seguras, pois remuneram o capital com juros, pré ou pós determinados. Capital de risco possui, como o nome indica, maior risco de resultados negativos, o que implica na possibilidade de, até mesmo, ocorrer a perda do capital investido. Será correto, pela lógica do risco envolvido, tributar tais bases de forma igual? Parece-me que não, pois acarretará a perda do interesse empresarial em correr riscos, e, com menos empresas, poderá haver menos empregos privados, o que não afetará diretamente a empregabilidade do setor público — exceto pelo aumento dos gastos públicos rígidos. Logo, é inegável que quem ganha mais deve pagar mais, porém é necessário um olhar para distinguir as diferenças existentes entre essas bases de renda.

Quanto ao consumo, deve-se diferenciar a incidência entre os bens envolvidos. Bens essenciais devem ser objeto de carga tributária reduzida, enquanto os de menor essencialidade devem ser objeto de carga tributária maior, e os bens de luxo devem ser ainda mais onerados. Isso aponta para a necessidade de uma variedade de alíquotas — ou de faixas de alíquotas pré-determinadas.

Sem tal possibilidade de modulação de carga tributária, corre-se o risco de, em situações como na atual pandemia, não ser possível reduzir a carga tributária para bens que se tornaram essenciais — quem imaginaria há um ano que álcool em gel se tornaria um bem essencial? Claro que existirão fortes lobbies para redução de carga tributária, porém eles devem ser feitos à luz do dia e debatidos com absoluta clareza, o que aponta para a necessidade de legalização da profissão de lobista, hoje envolta em diferentes denominações e muitas vezes realizada nos cantos escuros da atividade parlamentar e regulamentar. Deve-se ainda ter muita atenção à tributação do mundo digital, pois trabalha com bens incorpóreos e voláteis, sendo uma peculiar base econômica de incidência.

No que tange à propriedade, deve-se distinguir a espécie de bens a ser tributada, pois bens de capital, que estejam efetivamente envolvidos na atividade empresarial, devem ser menos onerados do que os especulativos. Uma propriedade rural produtiva deve ser menos onerada do que uma improdutiva — é necessário definir os critérios de produtividade. No mesmo sentido, deve-se olhar os automóveis, aviões, barcos e bens semelhantes, não sendo suficiente a lógica registral (o bem está em nome da empresa, logo, é produtivo), mas a lógica da função (aquele bem deve ser essencial às finalidades produtivas da empresa). As propriedades urbanas também devem ser objeto de análise cuidadosa, com os olhos voltados à preservação da moradia, e não à singela arrecadação. Tudo isso sem adentrar na tormentosa questão da tributação da transferência da propriedade, seja por compra e venda, morte ou doação.

Tudo isso se torna ainda mais complexo em uma federação, pois se deve estipular as fórmulas de repartição desses tributos, seja pela (1) divisão das competências tributárias (qual Fisco arrecada diretamente), seja pela (2) divisão do montante arrecadado (quanto será transferido de um Fisco para outro).

Outro tópico que deve ser analisado diz respeito às renúncias fiscais, instrumento relevante de desenvolvimento econômico. Como operacionalizá-las e controlá-las com eficiência, no que tange às três grandes bases econômicas — renda, consumo e propriedade?

Muito mais haveria a ser dito, mas essas linhas gerais podem servir como um guia para os debates.

Chega-se então à terceira questão: Quando fazer a reforma tributária. No meu ponto de vista não pode ser agora, e justifico. Estamos sob um estado de emergência financeira, vivendo sob regras de exceção, como aponta o Decreto Legislativo 06/20 e a Emenda Constitucional 106/20. Sei que são normas transitórias, datadas; porém, o problema financeiro não vai desaparecer porque cessará seu prazo de vigência. E, de qualquer forma, o Estado brasileiro está quebrado, endividado. Por outro lado, uma reforma tributária é algo perene, que deve ser feito para durar décadas, e necessita uma concertação entre todas as forças do país. É inadequado discutir sob o influxo da emergência um tema relevante que necessita de perenidade. Cada qual vai puxar a brasa para sua sardinha, e temo que os contribuintes venham a se sagrar como os grandes perdedores, pois não possuem instrumentos para agir em bloco, mas difusamente.

Tramitam duas PECs sobre Reforma Tributária. A PEC 45, que trata apenas da tributação do consumo, segue uma trilha diferente da que acima referi, pois prega a uniformidade de alíquotas e regula de modo bastante frágil a distribuição federativa do que vier a ser arrecadado, dentre outros aspectos. E a PEC 110, que, a despeito de tratar de todas as bases de incidência, é mais do mesmo, exceto no que se refere à tributação do consumo, pois se assemelha bastante à PEC 45, sujeita, portanto, às mesmas críticas.

Existe ainda o balão de ensaio que o governo federal vem prometendo apresentar formalmente há cerca de um ano, centrado na unificação da tributação federal do PIS e da Cofins, o que será muito bem vindo, porém não é uma reforma tributária, mas sim “o que dá para fazer sem fazer muita marola”.

O Brasil precisa de uma verdadeira Reforma Tributária, que simplifique os procedimentos e que facilite a vida dos contribuintes e dos Fiscos.

Porém, o escopo final não pode ser apenas esse — simplificar a vida dos contribuintes e dos Fiscos. O verdadeiro gol a ser marcado é o de permitir que a sociedade tenha melhores e mais amplos serviços públicos. Para tanto, é imprescindível que, em paralelo à Reforma Tributária, seja encaminhada uma Reforma Financeira, isto é, dos gastos públicos. Não dá para tratar separadamente esses dois âmbitos — receita pública para um lado e despesa pública para outro. Não resolverá nosso problema fazer apenas a Reforma Tributária, isto é, das receitas públicas, da arrecadação pública; é preciso colocar na rua também a Reforma Financeira, dos gastos públicos, a fim de que haja sustentabilidade financeira de médio e longo prazos. As duas devem tramitar em conjunto, a fim de que seja transparente à sociedade quem vai pagar a conta e quem vai receber o dinheiro, ao fim e ao cabo.

Logo, o melhor a ser feito é arquivar as duas PECs, a 45 e a 110, e recomeçar os trabalhos, repensando e redesenhando as propostas, a fim de que o projeto que surgir possa ter uma tramitação legislativa mais ágil e objetiva, olhando o problema como um todo, e não apenas uma parte dele. O trâmite de uma Reforma Tributária separada da Reforma Financeira é contrário à transparência republicana.

Sem isso, estaremos, mais uma vez, fracionando soluções e adiando resultados.

Por Fernando Facury Scaff

Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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