Se não for revisada, Súmula 555 do STJ sepulta trecho do artigo 150 do CTN
Paulo Roberto Andrade
O Código Tributário Nacional (CTN) dedica duas conhecidas normas ao prazo decadencial do direito de lançar o crédito tributário, distribuindo-as conforme a modalidade de lançamento a que se sujeite o tributo: (a) a norma do artigo 173, I, merecedora da condição de “regra geral” da matéria, aplicável aos tributos lançáveis de ofício ou por declaração; e (b) a norma do artigo 150, §4º, aplicável aos tributos lançáveis por homologação.
Ambas, como se sabe, prescrevem um mesmo prazo quinquenal; a diferença está nos respectivos dies a quo, quais sejam, (a) o primeiro dia do exercício seguinte ao da ocorrência do fato gerador e (b) o dia da ocorrência do fato gerador.
A jurisprudência vem há muito lapidando tais normas. A primeira grande contribuição pretoriana à sua hermenêutica consistiu em rechaçar a marota tese dos “cinco+cinco”, que postulava-lhes uma incidência concomitante, de modo que o quinquênio do artigo 173, I se iniciasse após o termo do quinquênio do artigo 150, §4º. Fixou-se no Superior Tribunal de Justiça (EREsps 276.142[1] e 432.984), em boa hora, o entendimento de que as normas têm hipóteses de incidência autônomas, vinculadas cada qual, como se viu, à modalidade de lançamento aplicável ao tributo.
Ato contínuo, amadureceu no seio do STJ a compreensão de que, no lançamento por homologação, o objeto da chancela fiscal superveniente não é propriamente o “lançamento”[2] efetuado pelo contribuinte, mas o pagamento por este realizado; forte nessa premissa, concluiu o tribunal que, inexistindo pagamento sequer parcial do tributo pelo contribuinte, o fisco simplesmente não teria o que homologar, fato que deslocaria a disciplina decadencial para o artigo 173, I, mesmo em se tratando de tributo lançável por homologação.
A ausência total de pagamento foi, pois, erigida a critério definidor da regra decadencial, somando-se à existência fraude, dolo ou simulação — já prevista expressamente no texto legal — como fator inibidor de incidência do artigo 150, §4º.
Ficaram, em resumo, assim definidas as hipóteses de aplicação das duas normas:
(a) se o lançamento é de ofício, aplica-se o artigo 173, I;
(b) se o lançamento é por homologação, mas o contribuinte atua com fraude, dolo ou simulação, aplica-se o artigo 173, I;
(c) se o lançamento é por homologação, o contribuinte atua sem fraude, dolo ou simulação, mas incorre na inadimplência integral do tributo, aplica-se o artigo 173, I; e
(d) se o lançamento é por homologação, o contribuinte atua sem fraude, dolo ou simulação, mas paga parcialmente tributo, aplica-se o artigo 150, §4º.
Rendeu acirrado debate doutrinário a exegese do STJ sobre os efeitos do inadimplemento total/parcial do tributo sobre o prazo decadencial. Não pretenderemos aqui, contudo, investigar nem firmar posição dogmática a respeito. Importa apenas constatar que foi esse o entendimento afinal consolidado no célebre REsp 973.733, julgado em 2009 sob o rito dos recursos repetitivos (antigo CPC, artigo 543-C).
Desde então — e nem poderia ser diferente — a jurisprudência do STJ estabilizou-se nesse sentido. Pela clareza e concisão, fiquemos com a seguinte ementa de 2012:
“1. A Primeira Seção, conforme entendimento exarado por ocasião do julgamento do Recurso Especial repetitivo 973.733/SC, Rel. Min; Luiz Fux, considera, para a contagem do prazo decadencial de tributo sujeito a lançamento por homologação, a existência, ou não, de pagamento antecipado, pois é esse o ato que está sujeito à homologação pela Fazenda Pública, nos termos do art. 150 e parágrafos do CTN.
2. Havendo pagamento, ainda que não seja integral, estará ele sujeito à homologação, daí porque deve ser aplicado para o lançamento suplementar o prazo previsto no § 4º desse artigo (de cinco anos a contar do fato gerador). Todavia, não havendo pagamento algum, não há o que homologar, motivo porque deverá ser adotado o prazo previsto no art. 173, I, do CTN”[3].
Após anos de uníssono jurisprudencial, era então chegado o momento de consolidá-lo mediante edição de súmula, seguindo a inexorável e elogiável tendência de uniformizar e espraiar o entendimento dos nossos tribunais superiores.
O enunciado foi finalmente aprovado pela 1ª Seção no final de 2015, com a seguinte redação:
“Súmula nº 555. Quando não houver declaração do débito, o prazo decadencial quinquenal para o Fisco constituir o crédito tributário conta-se exclusivamente na forma do art. 173, I, do CTN, nos casos em que a legislação atribui ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa”.
Pois bem. O verbete inicia-se com a passagem “quando não houver declaração do débito”. A ressalva tem origem na anterior Súmula STJ 436, segundo a qual “a entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do fisco”.
É dizer, a confissão do débito pelo contribuinte (em DCTF, GIA, NFe etc.) tem efeitos constitutivos do crédito tributário; portanto, uma vez confessado o crédito, não será mais necessário lançá-lo de ofício, o que faz impertinente qualquer especulação sobre prazos decadenciais de lançamento.
Essa primeira parte do verbete equivale, pois, a dizer “sempre que for necessário o lançamento, o prazo decadencial para o lançamento será de…”. Trata-se, já se vê, de aparte completamente desnecessário. Ora, é evidente que o prazo decadencial de lançamento (objeto regulado pela súmula) só se aplica quando for o caso de se realizar um lançamento. Enfim, embora não prejudique, a primeira parte em nada agrega à compreensão do alcance da norma sumulada.
Na sequência, diz a súmula que o quinquênio decadencial conta-se “exclusivamente na forma do artigo 173, I” sempre que “a legislação atribui ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa”.
A hipótese aí aludida — a saber, a de antecipação do pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa — é, nada mais, nada menos, que a do lançamento por homologação.
E cessa assim o verbete, sem qualquer ressalva complementar, sem qualquer menção à relevância e influência do pagamento parcial sobre o prazo decadencial. Trocando em miúdos, fica assim a norma sumulada: “O prazo decadencial quinquenal para o Fisco constituir o crédito tributário conta-se exclusivamente na forma do artigo 173, I, do CTN, nos casos de tributos sujeitos a lançamento por homologação”.
A súmula sugere, pois, que a decadência dos tributos lançáveis por homologação rege-se exclusivamente (isto é, sempre, em todo e qualquer caso) pelo artigo 173, I do CTN.
Isso é tudo o que nunca disse o STJ!
Em sua literalidade, a súmula sepulta o artigo 150, §4º do CTN, retirando-lhe todo e qualquer campo de incidência, e dissocia-se completamente da diretriz jurisprudencial que se propõe justamente a resumir e representar.
Com o tempo, toda súmula tende a ser aplicada cada vez mais acriticamente pelos tribunais país afora. É, aliás, para isso mesmo que servem. Tal como está, a Súmula 555 poderá tornar-se a “verdade” na disciplina da matéria, induzindo toda a jurisprudência, inclusive a do próprio STJ, ao erro grave de aplicar o artigo 173, I do CTN aos tributos sujeitos a lançamento por homologação, em toda e qualquer hipótese.
Daí a urgência na revisão de sua redação. Eis a sugestão deste autor:
“Súmula STJ nº 555. Em caso de inadimplemento integral do tributo sujeito a lançamento por homologação, a decadência do direito ao lançamento rege-se pelo art. 173, I do CTN”.
1 “As normas dos artigos 150, §4º e 173 não são de aplicação cumulativa ou concorrente, antes são reciprocamente excludentes, tendo em vista a diversidade dos pressupostos da respectiva aplicação: o art. 150, §4º aplica-se exclusivamente aos tributos ‘cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa’: o art. 173, ao revés, aplica-se aos tributos em que o lançamento, em princípio, antecede o pagamento” (1ª Seção. Rel. Min. Luiz Fux. j. 13.12.2004).
2 Até porque, na lógica concebida pelo CTN, quem lança o tributo é, sempre e necessariamente, a autoridade administrativa (art. 142).
3 2ª Turma. AgRg no REsp nº 1.277.854. Rel. Min. Humberto Martins. j. 12.6.2012.
Paulo Roberto Andrade
Advogado, mestre em direito tributário pela USP e sócio do escritório Tranchesi Ortiz, Andrade e Zamariola Advocacia. Conselheiro da 4ª Câmara do Conselho Municipal de Tributos da Secretaria Municipal de Finanças de São Paulo.