A inadequação do princípio da não-cumulatividade para afastar a Incidência de IPI sobre a importação realizada pelo destinatário final
Tiago Carneiro da Silva
1. Introdução.
O Imposto sobre Produtos Industrializados é devido por quem realiza a industrialização, importação, comercializa ou arremata produtos industrializados, nos termos do art. 51 do CTN. O IPI-importação – como barreira alfandegária que serviria de instrumento da política fiscal, protegendo a economia nacional – incide quando um produto industrializado estrangeiro entra em território nacional.
Este regime tributário da importação apresenta há um longo período controvérsia ainda não superada no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Trata-se do questionamento acerca da incidência ou não do Imposto sobre Produtos Industrializados sobre a importação realizada pelo destinatário final do produto.
Debruçando-se sobre o histórico dos julgamentos proferidos no STF acerca da temática supracitada, percebe-se rapidamente uma tendência ao não reconhecimento da incidência do IPI no caso da importação de produto pelo próprio sujeito que fruirá da sua utilidade.
Dois casos são paradigmáticos na linha histórica da referida controvérsia: o RE 203.075/DF e o RE 255.682 AgR/RS. Tratam-se de julgamentos realizados, respectivamente na Primeira e Segunda Turmas do STF, nos anos de 1999 e 2006. O primeiro, apesar de tratar especificamente da incidência do ICMS, foi fundamentado de modo semelhante ao que posteriormente seria recorrentemente aplicável aos casos de IPI. No cerne dos dois julgamentos, o princípio da não cumulatividade serviu como pedra-de-toque no afastamento da incidência:
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. PESSOA FÍSICA. IMPORTAÇÃO DE BEM. EXIGÊNCIA DE PAGAMENTO DO ICMS POR OCASIÃO DO DESEMBARAÇO ADUANEIRO. IMPOSSIBILIDADE. 1. A incidência do ICMS na importação de mercadoria tem como fato gerador operação de natureza mercantil ou assemelhada, sendo inexigível o imposto quando se tratar de bem importado por pessoa física. 2. Princípio da não cumulatividade do ICMS. Pessoa física. Importação de bem. Impossibilidade de se compensar o que devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal. Não sendo comerciante e como tal não estabelecida, a pessoa física não pratica atos que envolvam circulação de mercadoria. Recurso extraordinário não conhecido[1].
EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IPI. IMPORTAÇÃO: PESSSOA FÍSICA NÃO COMERCIANTE OU EMPRESÁRIO: PRINCÍPIO DA NÃOCUMULATIVIDADE: CF, art. 153, § 3º, II. NÃOINCIDÊNCIA DO IPI. I. Veículo importado por pessoa física que não é comerciante nem empresário, destinado ao uso próprio: não incidência do IPI: aplicabilidade do princípio da não cumulatividade: CF, art. 153, § 3º, II. Precedentes do STF relativamente ao ICMS, anteriormente à EC 33/2001: RE 203.075/DF, Min. Maurício Corrêa, Plenário, "DJ" de 29.10.1999? RE 191.346/RS, Min. Carlos Velloso, 2ª Turma, "DJ" de 20.11.1998? RE 298.630/SP, Min. Moreira Alves, 1ª Turma, "DJ" de 09.11.2001. II. RE conhecido e provido. Agravo não provido[2].
Com base no RE 203.075/DF e no RE 255.682 AgR/RS, formaram-se inúmeros precedentes indicando que, em razão do princípio da não-cumulatividade, aqueles que não são contribuintes habituais do IPI, não devem ser compelidos ao recolhimento desses tributos na importação de bens do exterior.
Na esteira da Suprema Corte, todos os Tribunais Regionais Federais tem precedentes alinhados com este entendimento[3], apesar da existência de decisões isoladas em sentido contrário. A favor da incidência os julgamentos repetem os mesmos argumentos sem maiores reflexões acerca da matéria.
Tais julgamentos afastando a incidência dos IPI possuem entendimentos equivocados que não merecem prosperar, sendo arriscado apostar na manutenção dos seus efeitos, tendo em vista a fragilidade das teses que defendem.
Discordamos radicalmente do posicionamento adotado nas decisões aqui tratadas e no decorrer do presente trabalho demonstraremos detalhadamente as razões que nos levam a crer que, independentemente, da destinação do objeto de importação ou de quem o faz, a incidência o IPI é inafastável no ordenamento jurídico vigente.
Atualmente, o Supremo Tribunal Federal, com o reconhecimento da repercussão geral no Recurso Extraordinário n° 723.651/PR, tem a chance de decidir a questão de forma definitiva para o atual estado das normas tributárias que regem a questão em comento. Melhor do que isto: tem-se aí a chance de analisar cuidadosamente a controvérsia e verificar a inconsistência das decisões que afastam a incidência do IPI em produtos importados pelo consumidor final com base no princípio da não cumulatividade.
2. A falta de rigor no trato dos conceitos óbvios.
Na introdução da clássica obra Teoria Geral do Direito Tributário, o professor Alfredo Augusto Becker denuncia o que ele chama de "Manicômio Jurídico Tributário", que seria a má construção doutrinária do Direito Tributário no Brasil, tendo em vista sua confusão ainda presente à época com a Ciência das Finanças Publicas, o que "êxaure toda juridicidade da regra jurídica tributária"[4]. O "efeito da demência", segundo ele, é a proliferação em demasia de leis dotadas de inúmeras atecnias, o que "revela ignorância de troglodita na arte de criar o instrumento apropriado"[5].
O ilustríssimo doutrinador complementa mais adiante que os conflitos entre as teorias jurídicas no Direito Tributário são comuns, principalmente, porque partem os doutrinadores de conceitos que supõem óbvios – não se dedicando, portanto, a defini-los com rigor – e, aparentemente, semelhantes e, ainda assim, atingem conclusões diversas, exatamente pela falta de definição dos tais conceitos óbvios, que tem uma significações diversas na mente de cada estudioso.
Ao expor o objetivo da obra, Becker é bastante pretensioso, e aduz que a sua finalidade é conferir uma sensibilidade específica no leitor, que apelida de "atitude mental jurídica tributária" e tem como objetivo – e aqui se encontra sua pretensão utópica – "manejar – em qualquer tempo e lugar – o Direito Tributário"[6].
Apresentando o diagnóstico da demência anteriormente mencionada, Becker afirma, trazendo lição de Carnelutti, que o maior equívoco dos juristas está em aceitar e fazer uso de conceitos das ciências pré-jurídicas, sem atentarem para o conteúdo de que se revestem estes conceitos ao adentrarem o mundo jurídico, formando um raciocínio pseudo-jurídico. E complementa, com Norberto Bobbio, alegando que a construção de uma ciência se dá pela construção de uma linguagem rigorosa, de modo que será cientificamente verdadeira a proposição que for "expressa com uma terminologia que respeite as regras válidas no âmbito do sistema dentro do qual é emitida aquela proposição"[7].
Sistematiza o problema da supracitada demência, ensinando que "os atuais reflexos condicionados na atitude mental jurídica (…), embora provocados por estimulantes jurídicos (…)” são “os mesmos reflexos condicionados aos estimulantes econômicos (…), que oferecem o ‘dado’ (matéria-prima) para a elaboração da regra jurídica tributária"[8]. Propõe, o autor, que os reflexos condicionados da atitude mental jurídica tributária sejam reeducados, o que só se tornará possível a partir de uma reexame de todos os conceitos e princípios do Direito Tributário, principalmente, os considerados óbvios.
A atitude mental jurídica, como ensina, é o reflexo condicionado à regra jurídica – o estimulante condicionador transmitido pela linguagem (palavra oral ou escrita). Destrinchando esta fenomenologia jurídica, afirma que a não sujeição aos efeitos jurídicos "não alteram a validade da regra jurídica, nem a infalibilidade de sua incidência, nem a coercibilidade da eficácia jurídica"[9].
Os capítulos iniciais da Teoria Geral do Direito Tributário, de Alfredo Augusto Becker, mais de cinco décadas após terem sido escritos ainda mostram-se atuais. A “demência” denunciada por ele persiste dia-após-dia na realidade da Justiça Tributária, alimentada muitas vezes não pela incompetência, mas por toda sorte de interesses perseguidos, e em conflito, que distorcem a realidade a seu bel-prazer.
No que tange ao jogo de interesses, vale lembrar um pequeno trecho do solilóquio existencialista “Memórias de Subsolo” (2000), de Fiódor Doistoiévski, que nos prepara para as armadilhas da tensão que prevalece entre as ficções e a realidade. Como precisamente anota o escritor russo: “o homem é a tal ponto afeiçoado ao seu sistema e à dedução abstrata que está pronto a deturpar intencionalmente a verdade, a descrer de seus olhos e seus ouvidos apenas para justificar a sua lógica"[10].
Tal citação faz-se oportuna, pois como se demonstrará adiante, apesar da jurisprudência tributária pátria e, especificamente, aquela acerca da incidência do IPI sobre a importação de produtos pelo destinatário final, encontrar-se contaminada pelo raciocínio pseudo-jurídico e não rigoroso, não é possível afirmar que tal fenômeno se dê em virtude de um desconhecimento generalizado do Direito Tributário. De fato, é muito mais plausível assumir que a necessidade de reexame dos conceitos e princípios, inclusive os considerados óbvios, é o resultado inequívoco de uma deturpação intencional da verdade para fundamentar os diversos interesses que se defrontam. Afinal, como já afirmou o ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal Moreira Alves, "Não há ingênuos em matéria tributária, nem os tributaristas, nem os contribuintes".
3. O diagnóstico da “demência”.
Seguindo o raciocínio indicado por Alfredo Augusto Becker, torna-se necessário compreender no caso em questão quais as motivações que geram a distorção interpretativa, que culmina no entendimento segundo o qual o princípio da não cumulatividade serve de parâmetro para afastar a incidência do IPI nas importações realizadas pelo próprio destinatário do produto.
Apesar de não crermos que tal distorção provém verdadeiramente de um equívoco, e sim de uma manipulação consciente dos elementos em questão, adotaremos a terminologia utilizada por Becker, a fim de desenvolver a nossa explanação.
Portanto, primeiramente, cumpre realizar aqui uma aproximação à “enfermidade” de que padece a interpretação que pretendemos rechaçar. Torna-se necessário em um primeiro momento analisar a chamada “demência” instaurada, de modo a compreendê-la e trata-la adequadamente.
Aqueles que defendem a não incidência do IPI na importação pelo próprio consumidor resguardam-se na consciência de que este tributo tem a sua sistemática moldada e limitada pelo princípio da não cumulatividade, o que, de fato, realmente é inegável.
Porém, o raciocínio segue no sentido de defender que a operação econômica realizada é incapaz de gerar créditos de IPI a serem repassados para a cadeia produtiva, pois já que o produto importado é para consumo próprio, o tributo se tornaria cumulativo. Desse modo, a carga do IPI não poderia ser incorporada ao preço do produto, pois tal tributo cumulará exclusivamente na pessoa do consumidor, que não poderá compensar os créditos, tendo em vista que não é contribuinte do IPI. Esta situação, consequentemente, oneraria ainda mais o preço do produto importado.
Inúmeros julgados dos tribunais pátrios seguem este raciocínio. Defendem a não incidência do IPI com base na interpretação segundo a qual a Constituição, ao determinar a não-cumulatividade do IPI, estabeleceu um direito do contribuinte ser compensado com valores já pagos, o que não seria possível para aquele que importasse para uso próprio, uma vez que ele não teria direito ao crédito e, se o tivesse, não haveria meios de utilizá-lo. E, por conta disso, no caso da cobrança desses impostos na importação pelo destinatário final, o imposto passaria a ser cumulativo, o que supostamente desrespeitaria o preceito constitucional da não-cumulatividade.
Reforça ainda o argumento desta defesa uma analogia que, inclusive, foi levantada nos autos do RE n° 723.651/PR, segundo a qual a não incidência de IPI na revenda de produto industrializado importado seria semelhante ao caso em comento. Inclusive, no referido Recurso Extraordinário, fez-se uma transcrição de artigo publicado por Roque Antônio Carrazza e Eduardo Domingos Botello, denominado “A Não-incidência do IPI nas Operações Internas com Mercadorias Importadas por Comerciantes (um falso caso de equiparação legal)” (2007). Não cabe na delimitação metodológica deste artigo tratar acerca desta outra questão – e, para tanto, recomenda-se o referido artigo -, mas em virtude da interseção provocada entre ela e a outra questão que aqui se busca solucionar, torna-se necessário também trazer à tona a argumentação ali expendida.
Segundo Carrazza e Botello:
“De feito, comerciante-importador não submete produtos a processo de industrialização; tampouco pratica atos visando sua disponibilização no mercado interno, eis que isso já ocorreu ao ensejo do desembaraço aduaneiro das mercadorias importadas.
Como se vê, nem instrumental, nem finalisticamente, suas atividades, no mercado interno, podem ser identificadas como as típicas de um industrial.
Daí não estarem presentes os imprescindíveis pontos de aproximação, entre o comerciante-importador e o industrial, capazes de tornar tributariamente irrelevante as diferenças secundárias que entre elas existem
Insista-se: a atividade típica do comerciante-importador em nada se assemelha a de industrialização”[11].
Tratando o caso acima transcrito como uma analogia plausível para a problemática referente à incidência do IPI sobre produtos importados pelo destinatário final, aqueles que defendem a não incidência entendem que se não incide IPI na revenda de produtos importados a pessoa que não submeta o produto a qualquer processo de industrialização (na revenda) igualmente não se pode incidir IPI naquela situação anterior da importação.
Percebe-se que, basicamente, são dois os argumentos em prol da não incidência, que pecam pela falta de rigor na definição da materialidade tanto do IPI quanto da não-cumulatividade. O primeiro, e principal, versa sobre o direito que o princípio da não cumulatividade supostamente daria ao destinatário final de possuir crédito do tributo incidente a ser compensado, mas que a impossibilidade de compensar impediria a incidência do IPI. E o segundo argumento, que decorre da falha predominante no primeiro, trata da analogia entre o caso da incidência do IPI na revenda de produto industrializado importado, em que não há incidência, e o caso do IPI na importação de produto industrializado pelo seu próprio consumidor.
Vale ainda relembrar as teses que refutam a incidência do IPI na importação de produto industrializado, independentemente do destinatário, por acreditar que o dispositivo infraconstitucional que autoriza tal incidência ultrapassa os limites determinados pelo art. 153 da Constituição. Trata-se, portanto, de uma tese mais ampla, que afasta a incidência do IPI em qualquer importação, tendo em vista uma suposta inconstitucionalidade. Por isso mesmo, foge ao recorte metodológico do presente trabalho de denunciar o equívoco da jurisprudência pátria em negar a incidência do IPI na importação pelo destinatário final com base no princípio da não-cumulatividade.
Tal tese não é acolhida por nós, porém, por se tratar de uma discussão preliminar à que aqui se discute e, ainda, por uma questão de honestidade intelectual, trataremos dela de modo a expor brevemente os argumentos pela qual não admitimos a tese da inconstitucionalidade no tópico adiante e isto valerá para todos os posicionamentos esboçados na doutrina que se assemelham a esta tese não admitida por nós[12].
Expostos os argumentos que comandam a tese a ser atacada, torna-se possível destrinçá-lo, desqualificando-os para o intuito de afastar a incidência do IPI na importação realizada pelo destinatário final.
Antes, porém, é necessário que se faça a análise rigorosa dos principais elementos que se entrelaçam no caso aqui estudado, quais sejam, o Imposto sobre Produtos Industrializados incidente na Importação e o Princípio da não-cumulatividade.
4. A revisão dos conceitos óbvios.
4.1.O imposto sobre produtos industrializados e a importação.
O Imposto sobre Produtos Industrializados, desde 1965, com a Emenda Constitucional n° 18, substitui o Imposto de Consumo de Mercadorias, originário da Constituição de 1946. Com a Constituição de 1988, a figura do IPI praticamente não sofreu alterações e preserva a estrutura anteriormente delineada .
O Imposto sobre Produtos Industrializados está constitucionalmente previsto no art. 153, no qual se estabelece as hipóteses de incidência da referida exação:
Art. 153. Compete a União instituir impostos sobre:
IV – produtos industrializados;
[…]
§ 3º – O imposto previsto no inciso IV:
I – será seletivo, em função da essencialidade do produto;
II – será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nos anteriores;
III – não incidirá sobre produtos industrializados destinados ao exterior;
IV – terá reduzido seu impacto sobre a aquisição de bens de capital pelo contribuinte do imposto, na forma da lei.
O legislador ordinário, por sua vez, nos artigos 46 e 51 do Código Tributário Nacional, estabeleceu o momento de ocorrência (o aspecto temporal) do fato gerador e o contribuinte do IPI, respectivamente:
Art. 46. O imposto, de competência da União, sobre produtos industrializados tem como fato gerador:
I – o seu desembaraço aduaneiro, quando de procedência estrangeira;
II – a sua saída dos estabelecimentos a que se refere o parágrafo único do artigo 51;
III – a sua arrematação, quando apreendido ou abandonado e levado a leilão.
Parágrafo único. Para os efeitos deste imposto, considera-se industrializado o produto que tenha sido submetido a qualquer operação que lhe modifique a natureza ou a finalidade, ou o aperfeiçoe para o consumo.
Art. 51. Contribuinte do imposto é:
I – o importador ou quem a lei a ele equiparar;
II – o industrial ou quem a lei a ele equiparar;
III – o comerciante de produtos sujeitos ao imposto, que os forneça aos contribuintes definidos no inciso anterior;
IV – o arrematante de produtos apreendidos ou abandonados, levados a leilão.
Parágrafo único. Para os efeitos deste imposto, considera-se contribuinte autônomo qualquer estabelecimento de importador, industrial, comerciante ou arrematante.
Sobre o conteúdo do dispositivo constitucional, Rogério Lima alerta que a incidência autorizada na Constituição é de “instituir um imposto que trate sobre produtos industrializados, e não que incide sobre produtos industrializados”[13]. Segundo o referido autor “não há sentido falar-se em incidência sobre o produto, pois a conduta a ser regulada pela norma tributária é expressa por uma ação do contribuinte, indicada na norma através de um verbo seguido do complemento”[14]. Desse modo, “O verbo, nesse caso, descreve em linguagem a ação humana em tempo e espaço, e o complemento traduz o objeto dessa ação”[15].
Apesar de concordarmos que a não faz sentido falar em incidência sobre o produto, pensamos que, se a Constituição autoriza a instituição de um imposto que trate sobre produtos industrializados, estaria aí abarcada a incidência na importação dos produtos industrializados, de modo que não há óbice para que a legislação infraconstitucional a preveja.
A incidência se dará sempre sobre uma ação ou condição do contribuinte (um estado de fato), que expresse a sua riqueza – nova ou não -, e o contribuinte deverá ser aquele que provoca a situação de revelação da riqueza a ser onerada, ou seja, aquele que desencadeia a materialidade da hipótese de incidência.
No caso do IPI, a Constituição deixa em aberto para a legislação infraconstitucional determinar que situações serão estas e O CTN, por sua vez determinou que a incidência deve ocorrer em ocasião da operação que se segue à industrialização e não em ocasião de uma operação qualquer e subsequente àquela primeira que se dá após o processo de transformação industrial do produto.
Desse modo, a materialidade do IPI é constituída pela transmissão que se dá em virtude da operação posterior à industrialização do produto; transmissão esta que demonstra a riqueza daquele que se torna, então, o contribuinte do imposto. Não é possível, neste sentido, afirmar que a materialidade do IPI está na industrialização, pois isto não é signo presuntivo de riqueza, ao contrário da transmissão jurídica e economicamente auferível que revela uma situação propícia a ser onerada pelo tributo.
Como bem assevera José Eduardo Soares de Melo, “A materialidade tributária não se contém na simples expressão constitucional, muito menos no conceito de ‘produto industrializado’, previsto no CTN”[16]. E, ainda, “A incidência tributária não se verifica apenas sobre o ato de elaboração do bem (produção industrial)”[17]. De acordo com o ilustre doutrinador e em conformidade com o que aqui se preconiza “A realização de ‘operações’ é que molda a tipicidade prevista na CF, configurando o verdadeiro sentido do fato juridicizado, ou seja, a prática de operação jurídica, como a transmissão de um direito (posse ou propriedade)”[18].
Em decorrência da materialidade do IPI se referir à operação e não à industrialização é que se autoriza a incidência desta exação na importação, sem que para isto seja necessário aplicar a lei brasileira fora do território pátrio.
Desdobrando este raciocínio, Leandro Paulsen leciona que “o termo industrializado (…) está no sentido de produto industrializado por um dos contratantes da respectiva operação”[19]. Neste sentido, “Não basta, pois, que simplesmente não se esteja cuidado de produto ‘in natura’”[20], e mais do que isso, “não basta que o produto tenha sido industrializado em algum momento. É preciso, sim, que se trate de operação com produto que tenha sido industrializado por um dos contratantes”[21]. Por fim, arremata o autor afirmando que “É por isso que não incide IPI na venda de produto por comerciante ao consumidor. Neste caso, não há operação com produto industrializado por nenhum deles. A operação com produto industrializado dá-se entre o industrial e um terceiro”[22].
Sendo a materialidade adstrita à operação do produto previamente industrializado, que é a situação reveladora de riqueza, e não à industrialização, e sendo o contribuinte aquele que provoca a materialidade, torna-se necessário admitir a importação do produto industrializado como uma hipótese de incidência possível e o importador como contribuinte do IPI.
Não é cabível também alegar no caso em comento a inconstitucionalidade do IPI-importação por haver bis in idem, em relação ao Imposto sobre a Importação, ou bitributação, em relação ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias.
Primeiro, porque o bis in idem (a múltipla tributação do mesmo fato gerador pela mesma Pessoa Jurídica de Direito Público) não é vedado pela Constituição. Como já aduzido anteriormente, a Carta Magna dá uma autorização ampla para a tributação do IPI em situações que envolvam produtos industrializados, inclusive a na ocasião da importação.
Segundo, porque a bitributação decorre da constatação de que o mesmo fato gerador está sendo tributado por pessoas jurídicas de direito público diversas, o que não é o caso, ainda que tanto o IPI quanto o ICMS sejam tributos que onerem o consumo. Quem advoga por esta última tese confunde o fato gerador realizado pelo contribuinte de direito, com o evento consumado pelo contribuinte de fato, deixando-se levar por um raciocínio evidentemente influenciado por estimulantes econômicos e não jurídicos.
Superada a controvérsia acerca da possibilidade de incidência do IPI na importação, que é o recorte que aqui nos interessa, torna-se possível continuar a análise, passando, então, para a revisão da não-cumulatividade.
4.2.O imposto sobre produtos industrializados e a não-cumulatividade.
O art. 153, § 3º, II, da Constituição Federal prevê o princípio da não-cumulatividade para o IPI, positivando que este “será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores”. Tal trecho é suficiente para que se resguarde constitucionalmente a não-cumulatividade na sistemática de cobrança do IPI.
O princípio da não-cumulatividade guarda relação estreita com os princípios da capacidade contributiva e, consequentemente, com o do não-confisco. Trata-se de uma relação de influências recíprocas entre normas que convergem na maximização da coerência no sistema jurídico e, por conseguinte, da eficácia normativa.
Sobre esta coerência, Humberto Ávila leciona que "A eficácia concreta de uma norma constitucional é tanto maior quanto melhor, mais objetiva, for estruturada sua explicação"[23] e "sua eficácia depende da sua capacidade de fundamentação de futuras decisões"[24]. Esta "é tanto melhor quanto mais intensa for a relação que ela mantiver com outras normas constitucionais, de modo a diminuir sua abertura semântica. A pretensão de eficácia de uma norma implica a sua sistematização substancial"[25].
Desdobrando ainda mais a fundamentação da não-cumulatividade, considerando-a enquanto uma peça chave da aplicação do princípio da capacidade contributiva, devemos esclarecer que este, não obstante sua autonomia consagrada expressamente no ordenamento jurídico através do texto constitucional, tem como inspiração jurídica a igualdade material. Isto quer dizer que o respeito à capacidade contributiva na tributação decorre do pressuposto segundo o qual deve-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, ou seja, o princípio da capacidade contributiva é, verdadeiramente, um desdobramento na seara fiscal do princípio da igualdade.
Para que não percamos o fio da meada, notemos que a não-cumulatividade, de certo modo, decorre da necessidade de não se onerar exageradamente e, assim, injustamente alguns componentes da cadeia de produção, em detrimento de outros, a fim de que não reste prejudicada a isonomia entre os contribuintes.
O modo como a não-cumulatividade se concretiza, com o intuito de preservar a caros princípios à ordem jurídica tributária, tais como a capacidade contributiva, o não-confisco e, em última instância, a igualdade, é através de uma técnica de compensação de créditos. Através desta, em cada operação com produtos industrializados o estabelecimento industrial compensará, deduzirá, abaterá, do imposto devido o montante cobrado nas operações anteriores – operações com bens que passarão a integrar o custo do produto em fabricação (matérias-primas, os produtos intermediários ou materiais auxiliares, os materiais de embalagens e as máquinas e equipamentos industriais).
Deve-se esclarecer, porém, que a compensação do crédito é mera técnica e não o objetivo da não-cumulatividade, que tem como verdadeiro intuito impedir que o imposto seja cobrado em cascata, ou seja, que não incida sobre o valor do próprio imposto. Isto ocorre para que não se perca de vista a capacidade econômica dos fornecedores e, por fim, do próprio consumidor (contribuinte de fato), em contribuir com o pagamento do tributo e não se realize uma exação confiscatória. Portanto, realiza-se uma tributação igualitária, ao invés de uma oneração que se desenvolve cobrando-se imposto sobre imposto, prejudicando principalmente aquele que se encontra na ponta da cadeia produtiva.
Tal técnica é utilizada para não onerar a produção e o comércio, não devendo ser suportados pelos contribuintes de direito (o comerciante ou industrial). O IPI é a rigor um imposto sobre o consumo; não deve mitigar a força econômica do empresário que compra e vende ou industrializa, porém a força econômica do consumidor. Inclusive, como já alertado, o IPI provém de um tributo previsto na Constituição de 1946, em seu art. 15, II, que se chamava “Imposto sobre o consumo de mercadorias”.
Como leciona Sacha Calmon Navarro Coêlho, “A razão de ser do princípio da não-cumulatividade é a busca pela tributação da riqueza nova, evitando a dupla incidência sobre a mesma base, de forma a repercutir os ônus para o contribuinte de fato: o consumidor”[26].
Resta, então, evidenciado que, de acordo com a legislação atualmente vigente, é perfeitamente cabível a incidência do IPI na importação, mesmo na ocasião em que o próprio importador é o destinatário final do produto e que o princípio da não-cumulatividade não tem o condão de impedir esta exação. Tal princípio que se concretiza através das sucessivas compensações de crédito tem como intuito desonerar os fornecedores para que o consumir arque com o custo indireto da tributação do IPI. Desse modo, não há que se falar em concessão de crédito ao consumidor pelo pagamento do tributo e, muito menos, de obstáculo à exação por conta da impossibilidade fática de compensação desse crédito pelo destinatário final.
5. Conclusão.
Diante da análise anteriormente expendida, torna-se possível concluir que cobrar o IPI do sujeito que adquire o produto através de importação, sendo seu consumidor final, não se encontra contrário à Constituição. O fato de ela suportar o encargo financeiro do tributo, sem a possibilidade de repassar a terceiros, configura situação que se encontra em plena consonância com o princípio da não-cumulatividade, cuja finalidade é justamente essa.
Ainda que haja sucessivas operações em cadeia até que o produto chegue ao consumidor final, será ele quem, ao final, deverá suportar, de modo de indireto – tendo em vista que não se trata de contribuinte de direito -, o valor total do tributo recolhido nas etapas anteriores que estará embutido no valor de compra. Igualmente, quando não houver sucessivas operações em cadeia, sendo o adquirente do produto aquele que pretende fruir do bem, deverá tolerar inteiramente valor do IPI que incide na compra. Desse modo, o argumento da não-cumulatividade não serve para afastar o consumidor de produto industrializado estrangeiro da incidência do IPI.
Não somente a Constituição Federal, que dá uma competência ampla para a União cobrar um imposto sobre produtos importados, mas também o Código Tributário Nacional, a Lei 4.502/1964 e o Decreto 7.212/2010 são claros nas suas disposições acerca dos elementos componentes da Regra matriz de incidência do IPI-importação e não há nestes diplomas, ou em qualquer outro, nenhuma previsão que retire a importação realizada pelo destinatário final do círculo de eventos subsumíveis à hipótese de incidência do IPI. Portanto, com base no princípio da legalidade tributária, expressa no art. 96 do CTN, não há que se falar de exclusão dos importadores não habituais do grupo de contribuintes deste imposto.
Portanto, a incidência do IPI sobre a importação realizada pelo destinatário final, ou seja, pelo consumidor, é adequada sob o viés constitucional, não havendo qualquer agressão ao princípio da não-cumulatividade, e, pode-se afirmar, é exigível no ordenamento jurídico pátrio vigente.
Notas
[1] RE 203075 / DF DISTRITO FEDERAL RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO Relator(a) p/ Acórdão: Min. MAURÍCIO CORRÊA Julgamento: 05/08/1998 Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação DJ 29?10?1999 PP?00018 EMENT VOL?01969?02 PP?00386.
[2] RE 255682 AgR / RS RIO GRANDE DO SUL AG.REG.NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO Julgamento: 29/11/2005 Órgão Julgador: Segunda Turma Publicação DJ 10?02?2006 PP?00014 EMENT VOL?02220?02 PP?00289 RDDT n. 127, 2006, p. 182?186 RIP v. 7, n. 35, 2006, p. 247?251.
[3]TRF-1 – AG: 729464820134010000 DF 0072946-48.2013.4.01.0000, Relator: DESEMBARGADORA FEDERAL MARIA DO CARMO CARDOSO, Data de Julgamento: 21/02/2014, OITAVA TURMA, Data de Publicação: e-DJF1 p.849 de 07/03/2014; TRF-2 – REEX: 201151010179399 , Relator: Desembargador Federal EUGENIO ROSA DE ARAUJO, Data de Julgamento: 21/01/2014, TERCEIRA TURMA ESPECIALIZADA, Data de Publicação: 30/01/2014; TRF-3 – AC: 69196 SP 0069196-52.1992.4.03.6100, Relator: DESEMBARGADORA FEDERAL ALDA BASTO, Data de Julgamento: 11/09/2014, QUARTA TURMA; TRF-4 – APELREEX: 50015726220124047201 SC 5001572-62.2012.404.7201, Relator: Relatora, Data de Julgamento: 30/05/2012, PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: D.E. 11/07/2012; TRF-5 – AG: 423515520134050000 , Relator: Desembargador Federal Marcelo Navarro, Data de Julgamento: 13/02/2014, Terceira Turma, Data de Publicação: 18/02/2014.
[4] BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 2ª edição. São Paulo: Saraiva. 1972. Pág. 04
[5] BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 2ª edição. São Paulo: Saraiva. 1972. Pág. 09
[6] BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 2ª edição. São Paulo: Saraiva. 1972. Pág. 14.
[7] BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 2ª edição. São Paulo: Saraiva. 1972. Pág. 36
[8] BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 2ª edição. São Paulo: Saraiva. 1972. Pág. 37.
[9] BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 2ª edição. São Paulo: Saraiva. 1972. Pág. 45
[10] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias de Subsolo 1ª edição. Editora 34. 2000. pág. 36.
[11] CARRAZZA, Roque Antonio. BOTALLO, Eduardo Domingos. A Não-incidência do IPI nas Operações Internas com Mercadorias Importadas por Comerciantes (um falso caso de equiparação legal). Revista Dialética de Direito tributário n.º 140. São Paulo. 2007. Pág. 101
[12] É o caso do artigo “A inconstitucionalidade do IPI na importação” (2002), do professor Rogério Lima, publicado na Revista Dialética de Direito Tributário n° 77.
[13] LIMA, Rogério. A inconstitucionalidade do IPI na importação. In Revista Dialética de Direito Tributário n° 77. São Paulo. Dialética. 2002. Pág. 121.
[14] LIMA, Rogério. A inconstitucionalidade do IPI na importação. In Revista Dialética de Direito Tributário n° 77. São Paulo. Dialética. 2002. Pág. 121.
[15]IMA, Rogério. A inconstitucionalidade do IPI na importação. In Revista Dialética de Direito Tributário n° 77. São Paulo. Dialética. 2002. Pág. 121.
[16] MELO, José Eduardo Soares de. Curso de Direito Tributário. 9ª edição. Dialética. São Paulo. 2010. Pág. 470.
[17] MELO, José Eduardo Soares de. Curso de Direito Tributário. 9ª edição. Dialética. São Paulo. 2010. Pág. 470.
[18] MELO, José Eduardo Soares de. Curso de Direito Tributário. 9ª edição. Dialética. São Paulo. 2010. Pág. 470.
[19] PAULSEN, Leandro. Direito Tributário. Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. Livraria do Advogado. Porto Alegre. 7ª edição. 2005. pág. 316
[20] PAULSEN, Leandro. Direito Tributário. Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. Livraria do Advogado. Porto Alegre. 7ª edição. 2005. pág. 316
[21] PAULSEN, Leandro. Direito Tributário. Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. Livraria do Advogado. Porto Alegre. 7ª edição. 2005. Pág. 316
[22] PAULSEN, Leandro. Direito Tributário. Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. Livraria do Advogado. Porto Alegre. 7ª edição. 2005. Pág. 316
[23] ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 4ª edição. São Paulo. Saraiva. 2010. Pág. 34
[24] ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 4ª edição. São Paulo. Saraiva. 2010. Pág. 34
[25] ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 4ª edição. São Paulo. Saraiva. 2010. Pág. 34
[26] COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 12 edição. Rio de Janeiro. Forense. Pág. 480.
Tiago Carneiro da Silva
Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Pós-graduando em Direito Público pela PUC Minas.