Entre a forma e o conteúdo: os efeitos da Súmula 231 do Carf sobre os créditos de PIS/Cofins

Por Andressa Mendes de Souza, Andrezza Barreto Sena Fracetti

21/11/2025 12:00 am

O regime não cumulativo do PIS e da Cofins, instituído pelas Leis nº 10.637/2002 e 10.833/2003, permite que as empresas abatam, do valor devido dessas contribuições, créditos calculados sobre determinados custos, despesas e encargos relacionados à sua atividade. De forma simples, esse mecanismo busca assegurar que a tributação incida apenas sobre o valor que a empresa efetivamente acrescenta ao produto ou serviço, evitando a chamada “tributação em cascata”, isto é, a incidência repetida de tributos sobre a mesma base ao longo das etapas da cadeia produtiva.

Um dos pontos mais sensíveis nesse sistema diz respeito ao momento de aproveitamento dos créditos: devem ser considerados imediatamente na apuração do período em que o direito surge ou podem ser utilizados posteriormente, de acordo com a gestão tributária da empresa?

A controvérsia surge especialmente do tratamento dado pelo Fisco Federal aos créditos não aproveitados no momento do fato gerador. Para a administração tributária, a única hipótese de aproveitamento posterior seria mediante retificação das obrigações acessórias — mais precisamente, da Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais (DCTF) e do Demonstrativo de Apuração de Contribuições Sociais (Dacon), declarações eletrônicas em que as empresas informam mensalmente à Receita Federal os valores de tributos devidos e os créditos utilizados.

Assim, segundo o Fisco, o aproveitamento extemporâneo só seria possível mediante a correção dessas informações, a fim de refletir retroativamente o crédito no período em que ele deveria ter sido escriturado.

Na prática, entretanto, é comum que, em razão de fatores operacionais, algumas notas fiscais, sobretudo aquelas emitidas no final do mês, não sejam registradas na competência correspondente. O volume de operações nesse período costuma ser elevado, o que pode dificultar o desempenho regular das atividades administrativas. Nessas ocasiões, os contribuintes passaram a pleitear o aproveitamento extemporâneo dos créditos, demonstrando que os documentos fiscais não haviam sido utilizados anteriormente, afastando a alegação de duplicidade e reafirmando, no mérito, a legitimidade do crédito.

Essa discussão tem sido levada ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) há anos. A tese central defendida pelos contribuintes é a de que o direito ao crédito está assegurado pelas próprias leis do PIS e da Cofins e não poderia ser limitado por questões meramente formais de escrituração, desde que comprovada a efetiva realização da operação e a inexistência de aproveitamento prévio.

Embora o entendimento do Carf tenha variado ao longo do tempo, a jurisprudência administrativa permitia o creditamento extemporâneo, reconhecendo que a lei não impõe prazo específico para o aproveitamento dos créditos. Nesse sentido, em diversas decisões, tanto da Câmara Superior quanto das Câmaras ordinárias, destacavam-se dois requisitos principais: (1) a observância do prazo de cinco anos para o aproveitamento, a contar da constituição do crédito e (2) a comprovação de que ele não havia sido aproveitado em outros períodos. A exigência de retificação das obrigações acessórias, por outro lado, não era mandatória.

Spacca
São exemplos disso os Acórdãos nº 9303-013.760 e nº 9303-012.977, da 3ª Turma da Câmara Superior, e o Acórdão nº 3402-011.998, da 2ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção. O fundamento comum nesses julgados era que não haveria prejuízo à Fazenda Nacional quando o crédito fosse aproveitado em período posterior, tampouco obrigação legal de retificar o Dacon ou a DCTF, configurando um direito legítimo do contribuinte.

Súmula nº 231
Esse panorama mudou significativamente em setembro de 2025, quando o Carf aprovou a Súmula nº 231, segundo a qual “créditos extemporâneos de PIS/Cofins exigem DCTF/Dacon retificadores”. Os precedentes que embasaram a súmula (como os Acórdãos nº 9303-011.780 e nº 9303-013.263) sustentam que o aproveitamento extemporâneo exige não apenas a comprovação do crédito, mas também a demonstração dos saldos credores trimestrais de forma clara e consistente, de modo a evitar duplicidades e assegurar a regularidade da apuração. Para o colegiado, essa segurança só seria possível mediante a retificação das obrigações acessórias.

A edição de súmula pela CSRF representa a consolidação de um entendimento jurisprudencial no âmbito do conselho. Segundo o Regimento Interno do Carf, as súmulas visam uniformizar a interpretação da legislação tributária e aduaneira, garantindo coerência e estabilidade às decisões. Uma vez aprovada pela Câmara Superior, a súmula adquire caráter vinculante dentro do órgão, devendo ser observada obrigatoriamente pelas turmas ordinárias e extraordinárias, o que impede decisões divergentes sobre o mesmo tema e, por consequência, novas discussões e novos contornos sobre o assunto.

O problema é que a regra fixada pelo tribunal administrativo não decorre de comando legal, mas sim de um procedimento previsto na Instrução Normativa SRF nº 600/2005, que trata da compensação ou ressarcimento de créditos.

Nessa perspectiva, ao condicionar o aproveitamento extemporâneo à retificação das obrigações acessórias, o Carf cria um requisito adicional, de natureza meramente formal, que não encontra respaldo nas Leis nº 10.637/2002 e nº 10.833/2003. Trata-se, portanto, de uma verdadeira virada pró-Fisco, que formaliza um controle mais rígido sobre o creditamento e impõe ao contribuinte o ônus de seguir um procedimento burocrático que não traz benefício concreto à arrecadação.

Essa mudança tem implicações relevantes. Em primeiro lugar, há um claro afastamento do princípio da verdade material, que deveria orientar o processo administrativo fiscal. Mesmo que o contribuinte comprove documentalmente a efetiva realização da operação e a inexistência de aproveitamento anterior, esses elementos deixam de ser suficientes: a forma passa a prevalecer sobre o conteúdo, e a ausência de retificação torna-se motivo autônomo para a glosa do crédito.

Em segundo lugar, essa modificação jurisprudencial tende a aumentar o número de litígios judiciais sobre o tema. Até então, as Câmaras do Carf, inclusive a Câmara Superior, admitiam o creditamento extemporâneo observados o prazo quinquenal e a inexistência de duplicidade. Ao inverter esse entendimento, o órgão força os contribuintes a recorrerem ao Judiciário para preservar um direito que antes era possível de ser reconhecido administrativamente.

Em terceiro lugar, a nova orientação acentua a burocracia e eleva os custos de conformidade tributária. A retificação das obrigações acessórias não é uma medida simples: envolve reanálise detalhada de períodos anteriores, revisão de cruzamentos de dados e acompanhamento técnico especializado para evitar inconsistências futuras. Em outras palavras, a exigência imposta pela Súmula nº 231 demanda das empresas não apenas tempo e organização, mas também planejamento minucioso e investimento em compliance.

Desafio
Do ponto de vista prático, a mudança impõe um desafio adicional à gestão tributária das empresas. Para aquelas com grande volume de operações, especialmente indústrias e distribuidoras, a necessidade de retificar declarações anteriores pode inviabilizar o aproveitamento de créditos legítimos, tornando economicamente desvantajosa a correção.

A reabertura de períodos anteriores, sobretudo em operações com elevado volume documental, implica um trabalho de reconstrução contábil e fiscal que nem sempre é viável, seja pelo custo, seja pela perda de dados, mudanças de sistemas ou mesmo limitações operacionais das empresas. A exigência de retificação alcança não apenas a inclusão do crédito na apuração do mês original, mas também impõe coerência com os saldos transportados, reflexos em compensações já realizadas, e eventual reanálise de ajustes que tenham sido feitos à época. Isso se agrava especialmente em situações em que os períodos originais já estão encerrados em termos contábeis, auditados ou até mesmo fiscalizados.

Já do ponto de vista técnico, a escrituração retroativa do crédito obriga o contribuinte a controlar não só o lançamento extemporâneo, mas a repercussão sistêmica dessa inclusão. Isso envolve alterações nos registros M100, M105 e M200 da EFD-Contribuições, reconfiguração do saldo credor informado no registro 1100, e compatibilização com o valor declarado na DCTF do respectivo mês. A depender do volume e da complexidade das operações, essa retificação pode provocar uma cadeia de alterações em declarações subsequentes, tornando o processo extremamente sensível a inconsistências.

O problema central é que, mesmo quando a documentação comprobatória do crédito é robusta e a operação está plenamente de acordo com os critérios materiais previstos em lei, a ausência da formalidade imposta pela retificação transforma o crédito em algo “inexistente” aos olhos do Fisco. E.m outras palavras, há um deslocamento do foco da veracidade da operação para a forma como ela foi (ou não) escriturada, criando uma distorção entre o direito reconhecido em lei e sua efetiva fruição no ambiente declaratório.

Inversão de valores
Não se ignora que o controle sobre os créditos extemporâneos é importante para evitar abusos ou duplicidades. No entanto, ao se exigir a retificação como condição indispensável, mesmo diante de comprovação material inequívoca, a nova súmula do Carf contribui para o fortalecimento de um formalismo excessivo, que não agrega valor à fiscalização e tampouco contribui para a justiça fiscal. Pior: cria-se um ambiente em que o direito tributário é interpretado como um sistema de armadilhas, em que o conteúdo da operação perde força diante da sua forma de declaração.

Essa inversão de valores, em que a verdade material do crédito não basta, tende a tornar a atuação administrativa menos eficiente e mais litigiosa. Em vez de permitir que o contribuinte utilize os canais administrativos para correção e aproveitamento de créditos legítimos, empurra-se a discussão para o Judiciário, com todos os custos e morosidade que isso acarreta. Essa realidade evidencia um sintoma preocupante: o modelo de controle adotado pela Receita Federal e chancelado pelo Carf parece estar mais preocupado em manter a rigidez dos procedimentos do que em assegurar a efetividade do sistema tributário.

Em um cenário de crescente demanda por simplificação e racionalidade no sistema tributário, a consolidação desse formalismo pelo Carf parece caminhar em direção oposta. A Súmula nº 231 não apenas reforça a burocratização do regime não cumulativo, como também mina a confiança dos contribuintes na estabilidade das decisões administrativas.

No fim, o que se observa é que um direito materialmente legítimo corre o risco de se perder no labirinto das formalidades fiscais, um sintoma preocupante de que, mais uma vez, a forma prevaleceu sobre o direito.

Referência bibliográfica:

BRASIL. Lei nº 10.833, de 29 de dezembro de 2003. Dispõe sobre a não cumulatividade da COFINS. Diário Oficial da União. Brasília, 30 dez. 2003. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.833.htm. Acesso em: 10 out. 2025.

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BRASIL. Secretaria da Receita Federal. Instrução Normativa SRF nº 600, de 28 de dezembro de 2005. Diário Oficial da União. Brasília, 30 dez. 2005. Disponível em: https://normasinternet2.receita.fazenda.gov.br/#/consulta/externa/15529. Acesso em: 10 out. 2025.

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BRASIL. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Súmula nº 231. Diário Oficial da União. Brasília, 08 set. 2025.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 40. ed. São Paulo: Malheiros, 2019.

Mini Curriculum

Andressa Mendes de Souza
é advogada da área de Direito Tributário, graduada e mestre em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários e em Prática Processual Civil pela Escola Mineira de Direito.

Andrezza Barreto Sena Fracetti
é advogada da área de Direito Tributário, graduada em Direito pela PUC-MG e bacharelanda em Ciências Contábeis pela PUC-MG.

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