Reforma tributária inaugura nova fronteira no setor de saúde

Por Rafael Goto Foja

03/11/2025 12:00 am

A Emenda Constitucional nº 132/2023 inaugura uma nova fase na tributação brasileira ao instituir o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), conformando um modelo de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dual. Essa estrutura busca simplificar o sistema tributário e promover a neutralidade fiscal, mas introduz também desafios de ordem tecnológica, operacional e jurídica.

No setor de saúde, a complexidade é ainda mais acentuada. A alta densidade regulatória, a multiplicidade de regimes especiais e o papel das entidades filantrópicas tornam a implementação da reforma um processo de elevada sensibilidade. Nesse contexto, a inteligência artificial (IA) emerge não apenas como ferramenta de automação, mas como eixo estruturante da governança e, principalmente, do planejamento tributário moderno. Não se implementa uma reforma tributária dessa magnitude sem IA — ela será o diferencial entre a conformidade reativa e a eficiência estratégica.

Desafio dos dados e simulação de regimes

A promessa de simplificação da reforma oculta um aumento significativo na complexidade dos fluxos de informação. O modelo de não cumulatividade plena exigirá que as instituições de saúde gerenciem, em tempo real, a totalidade dos créditos e débitos associados a suas operações. Esse controle dependerá da integração de bases fiscais, contábeis e financeiras.

O primeiro desafio estratégico será a simulação de regimes. Instituições no Lucro Presumido, acostumadas à simplicidade cumulativa, precisarão avaliar o impacto de uma migração para a não cumulatividade. O mesmo vale para fornecedores do Simples Nacional, que terão a faculdade de aderir ao regime do IVA para permitir que seus clientes se apropriem de créditos.

Decisões como essa não podem ser tomadas com base em estimativas. A IA permitirá classificar automaticamente milhões de notas fiscais de entrada, identificar o potencial de crédito em cada uma e simular, centavo a centavo, a carga tributária efetiva nos novos moldes, transformando uma decisão estratégica complexa em uma análise matemática precisa.

Planejamento tributário inteligente como eixo estratégico
A transição para o IBS/CBS não deve ser conduzida apenas sob a ótica do compliance fiscal, mas como projeto estratégico institucional. Hospitais, clínicas, laboratórios e demais stakeholders precisam implementar estruturas de planejamento tributário com enfoque em avaliação de dados e modelagem de cenários.

Essas áreas atuarão como verdadeiros centros de inteligência tributária, e sua primeira missão será antecipar os impactos operacionais mais severos. O mecanismo de split payment, por exemplo, ao reter o imposto no ato da transação, eliminará o “float” financeiro (capital de giro) de que as instituições dispunham. Modelos preditivos de IA serão essenciais para redesenhar o fluxo de caixa, prever tensões de liquidez e otimizar a antecipação de recebíveis.

O segundo desafio será o redesenho da cadeia de suprimentos. Pense em uma indústria farmacêutica em Pernambuco, hoje beneficiária de incentivos fiscais de ICMS. Com o fim da guerra fiscal, seu custo de produção, em tese, aumentará gradualmente. Essa indústria, seguindo este exemplo, fornece para um hospital privado em São Paulo (que exigirá crédito pleno) e para um hospital filantrópico em São Paulo (que, em tese, não terá direito ao crédito). A IA será a ferramenta para modelar essa nova precificação complexa, otimizando a logística e a carga tributária em cenários distintos para cada cliente.

IA, neutralidade fiscal e a defesa da filantropia
As entidades beneficentes de assistência social, certificadas com Cebas, são um capítulo à parte. A imunidade que lhes é conferida visa compensar sua função social e, comprovadamente, é um investimento de alto retorno: para cada R$ 1 de imunidade, o setor retorna R$ 9,79 à sociedade (Fonif, 2023).

Contudo, o cenário regulatório tornou-se complexo. O arcabouço de certificação e contrapartidas dessas entidades, recentemente revisado pela Lei Complementar nº 187/2021 não foi totalmente acolhido pela LC nº 214. Ao privilegiar a modalidade Cebas-60 (focada no atendimento de 60% ao SUS), cria uma aparente distorção que pode ameaçar o equilíbrio do próprio sistema. Essa diferenciação pode estimular uma migração artificial de formatos de prestação de serviços, concentrando vantagens fiscais em determinados formatos de atendimento e, em tese, enfraquecendo o ecossistema filantrópico como um todo.

A IA pode atuar como aliada na equalização desses efeitos, auxiliando as instituições a reavaliar fornecedores de medicamentos e serviços médicos, ajustar contratos conforme parâmetros tributários e modelar cenários de sustentabilidade. Além disso, sistemas de IA podem funcionar como um robusto monitor de cumprimento de obrigações, provando de forma automática e auditável o cumprimento das contrapartidas sociais exigidas. Por fim, sistemas de IA podem apoiar a mensuração do retorno social da imunidade, fornecendo métricas econômicas e sociais que fundamentem o debate público e a formulação de políticas fiscais mais equitativas.

IS e saúde pública
Uma oportunidade adicional pode surgir com o Imposto Seletivo (IS). Dada a sua clara natureza extrafiscal, destinada a desestimular o consumo de produtos nocivos à saúde, sua arrecadação poderia auxiliar o setor. A inteligência artificial poderia ser decisiva na gestão pública desses recursos, utilizando modelos epidemiológicos preditivos para calcular o “ROI Social” de cada investimento, sugerindo alocações que priorizem a prevenção de doenças crônicas de forma mais eficiente.

Governança tributária como projeto institucional
A reforma tributária do consumo inaugura uma nova fronteira de governança fiscal. No setor de saúde, a complexidade das regras torna indispensável a reestruturação dos modelos de gestão tributária. Este não é um projeto de uma única área; é um projeto institucional.

A criação de estruturas permanentes de governança tributária inteligente deve ser prioridade, integrando tax planning, compliance, controladoria e análise de dados sob uma mesma visão estratégica. Neste novo cenário, os profissionais que definirão o sucesso da transição serão os planejadores e advogados tributaristas que souberem utilizar a Inteligência Artificial e o data analytics como suas principais ferramentas.

Mais do que uma mudança na forma de tributar, a reforma representa uma transformação na forma de pensar a tributação: de um modelo reativo e burocrático para um sistema preditivo, inteligente e alinhado à função social da saúde. O futuro da tributação na saúde será tanto mais eficiente quanto mais for inteligente.

Referência

FÓRUM NACIONAL DAS INSTITUIÇÕES FILANTRÓPICAS (FONIF). A Contrapartida do Setor Filantrópico para o Brasil. 5. ed. São Paulo: FONIF, 2023.

Mini Curriculum

é advogado, especialista em Direito Tributário pela PUC-SP.

Continue lendo