Qualificação de serviços não técnicos nos tratados internacionais tributários

Por Sergio André Rocha

03/11/2025 12:00 am

Uma das questões mais relevantes e ainda controversas no Direito Tributário Internacional brasileiro é a correta qualificação de pagamentos por serviços nos tratados internacionais tributários. O tema ganhou ainda mais relevância após a decisão da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça que, em 14 de outubro de 2024, afetou ao rito dos recursos repetitivos os casos Teracom (REsp 2.060.432), Auto Sueco (REsp 2.133.370) e Mercado Livre (REsp 2.133.454), para delimitar a seguinte controvérsia: legalidade da incidência do IRRF sobre os recursos remetidos ao exterior para pagamento de serviços prestados, sem transferência de tecnologia, por empresas domiciliadas em países com os quais o Brasil tenha celebrado tratado internacional para evitar a bitributação. Sobre o tema, já escrevemos texto nesta coluna em coautoria com Laura Kurth (aqui).

A controvérsia afetada ao STJ envolve especificamente a tributação de serviços técnicos quando os tratados contêm protocolos que estendem o conceito de royalties (artigo 12) a serviços técnicos e de assistência técnica. A discussão central nesses casos gira em torno de se estabelecer se, mesmo na ausência de transferência de tecnologia, os pagamentos por serviços técnicos deveriam ser tributados pelo Brasil sob o artigo 12 dos tratados (royalties) ou se deveriam seguir a regra do artigo 7 (1) (lucros das empresas), com tributação exclusiva no país de residência na ausência de estabelecimento permanente.

Contudo, há uma questão distinta e igualmente relevante que não está diretamente abrangida pela controvérsia afetada ao STJ e que merece análise aprofundada: a qualificação de pagamentos por serviços não técnicos nos tratados internacionais tributários.

Estrutura dos tratados internacionais tributários
Para compreender adequadamente a qualificação de serviços não técnicos, é essencial partir de uma análise da estrutura básica dos tratados internacionais tributários celebrados pelo Brasil. A grande maioria desses tratados segue o modelo da ONU que, por sua vez, baseou-se no modelo da OCDE, com adaptações que refletem as particularidades das negociações bilaterais e as políticas tributárias brasileiras.

Nos tratados brasileiros, encontramos dispositivos específicos para diversas categorias de rendimento, tais como dividendos (artigo 10), juros (artigo 11), royalties (artigo 12), ganhos de capital (artigo 13), rendimentos da prestação de serviços independentes (artigo 14) e assim por diante. Cada um desses artigos estabelece regras particulares sobre o direito de tributar essas categorias específicas de rendimento, frequentemente limitando a alíquota máxima que pode ser aplicada pelo país da fonte.

Contudo, além desses artigos, os tratados também contêm um dispositivo de caráter geral e residual que trata dos lucros das empresas. Este artigo, usualmente o 7 (1), estabelece que o país da fonte só pode tributar os lucros de uma empresa não residente se esta empresa mantiver um estabelecimento permanente em seu território, e ainda assim apenas na medida em que os lucros sejam atribuíveis a esse estabelecimento permanente.

Distinção entre serviços técnicos e não técnicos
Para avançar na análise, é fundamental estabelecer a distinção entre serviços técnicos e serviços não técnicos.

Serviços técnicos são aqueles que envolvem a aplicação de conhecimentos especializados de natureza técnica, científica ou profissional. Eles se caracterizam pela transferência de conhecimento técnico ou pela aplicação de expertise especializada na solução de problemas ou na realização de tarefas que exigem qualificações específicas.

A IN 1.455/2014 traz uma definição de serviços técnicos. Contudo, vimos sustentando que atos administrativos normativos não se prestam para definir termos e expressões de tratados internacionais (ver: ROCHA, Sergio André. Termos não Definidos em Tratados Internacionais Tributários. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2024).

Serviços não técnicos, por sua vez, são aqueles que não apresentam esse elemento caracterizador do conhecimento técnico ou científico especializado. Trata-se de serviços de natureza geral, que podem envolver atividades comerciais, administrativas, operacionais, por exemplo, mas que não se fundamentam essencialmente na aplicação de conhecimentos técnicos especializados.

Caso específico dos serviços de assistência administrativa
Um caso particularmente relevante e ilustrativo da distinção entre serviços técnicos e não técnicos é o dos serviços de assistência administrativa. Estes serviços merecem análise específica, tanto por sua relevância prática quanto porque a própria legislação brasileira os menciona expressamente ao lado dos serviços técnicos, estabelecendo uma distinção implícita entre ambas as categorias.

Serviços de assistência administrativa são aqueles relacionados ao suporte operacional e gerencial das atividades empresariais, mas que não envolvem a aplicação de conhecimento técnico ou científico especializado. Incluem-se nessa categoria serviços como recursos humanos, contabilidade, controladoria, marketing, serviços financeiros, compliance, planejamento e análise de negócios e outras atividades administrativas de suporte. Quando desenvolvidas intragrupo, são atividades-meio, não atividades-fim, e seu objetivo é viabilizar o funcionamento da empresa, não gerar receitas diretas.

Essa distinção tem sido reconhecida pela própria Receita Federal do Brasil em diversas manifestações. A Solução de Divergência Cosit nº 23/2013, ao analisar contratos de compartilhamento de custos administrativos entre empresas de um grupo econômico, deixou claro que tais atividades administrativas não configuram prestação de serviços técnicos. Embora aquela decisão tratasse especificamente do compartilhamento de custos no âmbito doméstico, os fundamentos ali estabelecidos são plenamente aplicáveis para a qualificação de serviços administrativos no contexto internacional.

A Solução de Consulta Cosit nº 276/2019 reforçou essa posição ao analisar contratos envolvendo tanto serviços técnicos quanto serviços administrativos. A decisão distingue claramente entre essas duas categorias, reconhecendo que têm natureza diversa e podem receber tratamento tributário distinto.

No contexto dos tratados internacionais tributários, tal distinção tem consequências importantes. Como vimos, muitos tratados brasileiros contêm artigos específicos sobre serviços técnicos. Contudo, esses artigos, ao definirem seu âmbito de aplicação, fazem referência a serviços de natureza técnica, científica ou de consultoria especializada. A questão que se coloca é: serviços de assistência administrativa, como os demais serviços não técnicos, se enquadram nessas definições?

A resposta, em nossa opinião, é negativa. Serviços de assistência administrativa, por sua própria natureza, não se enquadram na definição de serviços técnicos prevista nos tratados. Eles não envolvem a aplicação de conhecimento técnico ou científico especializado no sentido que os tratados atribuem a essa expressão. Consequentemente, os pagamentos por serviços de assistência administrativa não deveriam ser tributados com base nos artigos sobre serviços técnicos dos tratados, mesmo quando esses contêm protocolos que estendem o conceito de royalties a serviços técnicos.

Qualificação no artigo 7 (1): fundamentos jurídicos
A interpretação que estamos defendendo, e que está em linha com as soluções de consulta da Receita Federal, é que serviços não técnicos devem ser qualificados no artigo 7 (1) dos tratados como lucros das empresas. Essa conclusão se fundamenta em diversos argumentos jurídicos que passamos a examinar.

Em primeiro lugar, há o argumento estrutural baseado no caráter residual do artigo 7 (1). Como vimos, esse artigo se aplica a todos os rendimentos empresariais que não estejam especificamente contemplados em outros dispositivos. Se os serviços não técnicos não se enquadram no artigo específico sobre serviços técnicos (por não apresentarem o elemento caracterizador do conhecimento técnico especializado) e se não se enquadram em nenhum outro artigo específico do tratado, então devem necessariamente ser qualificados no artigo 7 (1), por força de seu caráter residual.

Em segundo lugar, há o argumento semântico relacionado ao significado do termo lucros no artigo 7 (1). Como observado nos comentários da OCDE e da ONU — e vem sendo reconhecido no Brasil desde o Parecer PGFN nº 2.363/2013 —, o termo lucros, quando usado no artigo 7, tem um significado amplo, abrangendo toda a renda gerada na condução de um negócio empresarial.

Ora, os pagamentos por serviços não técnicos são claramente rendimentos derivados de atividades empresariais. Uma empresa que presta serviços não técnicos está exercendo atividade empresarial e os pagamentos que recebe por esses serviços constituem rendimentos empresariais. Portanto, esses pagamentos se enquadram perfeitamente na definição ampla de lucros para fins do artigo 7 (1).

Por fim, há o argumento baseado na interpretação literal dos artigos sobre serviços técnicos. Esses artigos, ao definirem seu âmbito de aplicação, geralmente fazem referência expressa a serviços de natureza técnica ou de assistência técnica. A inclusão de tais qualificativos não é acidental, mas reflete a intenção de limitar o âmbito de aplicação desses artigos a uma categoria específica de serviços que apresentam características particulares. Se a intenção fosse abranger todos os serviços, seria desnecessário incluir esses qualificativos restritivos.

Posição da Receita Federal
A tese de que serviços não técnicos devem ser qualificados no artigo 7 (1) dos tratados encontra respaldo em decisões da Receita, particularmente nas manifestações da Cosit. Embora cada solução de consulta deva ser analisada em seu contexto específico, é possível identificar uma linha interpretativa consistente que confirma essa posição.

A Solução de Consulta Cosit nº 589/2017, ao examinar a convenção Brasil-México, manifestou interpretação no sentido de que serviços não técnicos são qualificados no artigo 7 como lucro empresarial. Essa solução de consulta estabeleceu um importante precedente ao reconhecer explicitamente o caráter residual do artigo 7 e sua aplicação a serviços que não se caracterizam como técnicos.

Posteriormente, a Solução de Consulta Cosit nº 138/2021, ao analisar o tratado Brasil-Noruega, reafirmou tal interpretação. Nesse caso, as autoridades fiscais expressamente reconheceram que pagamentos por determinados serviços não técnicos deveriam ser caracterizados como lucros empresariais para fins do artigo 7 (1) do tratado. A solução de consulta destacou que, na ausência de estabelecimento permanente, tais pagamentos seriam tributáveis apenas no país de residência do prestador dos serviços.

O fundamento da posição da Cosit está na análise cuidadosa da natureza dos serviços em questão. As autoridades fiscais identificaram que determinados serviços não apresentam o elemento caracterizador dos serviços técnicos, qual seja, o conhecimento técnico ou científico especializado. Com base em tal constatação, concluíram que o dispositivo específico sobre serviços técnicos não seria aplicável, devendo-se recorrer ao artigo 7 (1) em razão de seu caráter residual.

Implicações práticas da qualificação no artigo 7
A qualificação de serviços não técnicos no artigo 7 (1) dos tratados tem consequências práticas significativas que merecem análise cuidadosa. Essas consequências afetam tanto os prestadores de serviços não residentes quanto os tomadores de serviços residentes no Brasil e têm impacto sobre o planejamento tributário e a conformidade fiscal.

A consequência mais imediata é que, na ausência de estabelecimento permanente no Brasil, o país da fonte não terá competência para tributar os pagamentos por serviços não técnicos. Isto decorre diretamente da aplicação do artigo 7 (1). Como esse artigo estabelece que os lucros empresariais só podem ser tributados no país da fonte se houver estabelecimento permanente, e como os serviços não técnicos são qualificados como lucros empresariais, segue-se que esses pagamentos só podem ser tributados no Brasil se o prestador do serviço tiver estabelecimento permanente no território nacional.

Questões controvertidas e casos limítrofes
Embora a tese de que serviços não técnicos devem ser qualificados no artigo 7 (1) tenha sólido fundamento jurídico e conte com o respaldo de posições da Cosit, há algumas questões controvertidas e casos limítrofes que merecem atenção.

Uma primeira questão controversa diz respeito à própria delimitação entre serviços técnicos e não técnicos. Em alguns casos, a classificação pode não ser óbvia.

Outra questão relevante diz respeito aos chamados serviços digitais. Com o avanço da economia digital, proliferaram serviços prestados por meio de plataformas digitais, aplicativos e outras tecnologias de informação. Muitos destes serviços envolvem tecnologia sofisticada, mas podem não se caracterizar propriamente como serviços técnicos.

Uma terceira questão controversa diz respeito à interação entre a qualificação nos tratados e as regras de preços de transferência. Mesmo que um pagamento por serviços não técnicos seja qualificado no artigo 7 (1) e não haja tributação na fonte por força do tratado, as regras de preços de transferência podem limitar a dedutibilidade desses pagamentos na determinação do lucro tributável do tomador dos serviços.

Considerações finais
A questão da qualificação de serviços não técnicos nos tratados internacionais tributários é de grande relevância prática e tem implicações significativas para contribuintes e para a administração tributária. A tese defendida neste artigo, de que tais serviços devem ser qualificados no artigo 7 (1) como lucros das empresas, fundamenta-se nos princípios de interpretação de tratados, na estrutura e sistemática das convenções tributárias e nas soluções de consulta da Receita.

Essa análise é bastante importante se considerarmos o andamento do debate sobre a tributação da importação de serviços técnicos no âmbito do STJ. Embora o tema esteja sendo discutido no tribunal de forma genérica, com foco na distinção entre serviços com ou sem transferência de tecnologia, é importante que se observe que, se essa classificação dicotômica for afastada, há outros aspectos que podem levar a resultados diversos em casos concretos, notadamente em decorrência da caracterização dos serviços como técnicos ou não técnicos.

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professor titular de Direito Financeiro e Tributário da Uerj, livre-docente em Direito Tributário pela USP, diretor vice-presidente da ABDF, advogado e parecerista.

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