Jurisdição mista nacional digital gera críticas à reforma processual tributária
O senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) já tem em mãos a proposta de reforma processual tributária formulada pelo grupo de trabalho instituído em abril pelo Conselho Nacional de Justiça. O parlamentar decidirá se e quando apresentará o texto no Congresso. A proposta final está em linha com o que foi antecipado em setembro pelo juiz Frederico Montedonio Rego, auxiliar da Presidência do CNJ, e gera preocupação entre advogados tributaristas, especialmente pela perspectiva de falta de unidade de interpretação e pelo serviço 100% digital.
G. Dettmar/CNJReunião, no dia 22/5/2025, do grupo de trabalho instituído pelo CNJ para discutir reforma processual tributária
Grupo de trabalho já entregou proposta ao senador Rodrigo Pacheco, que decidirá se a apresentará no Congresso
A reforma processual é necessária porque os dois tributos criados pela reforma tributária — a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que ainda serão implementados — precisam seguir as mesmas regras. Apenas as alíquotas podem ser diferentes. Isso poderia gerar disputas com relação à competência para julgar ações judiciais sobre esses tributos.
A ideia do grupo de trabalho é a de uma jurisdição mista para questões relacionadas à CBS e ao IBS, com competência nacional e funcionamento exclusivamente digital.
Na primeira instância, haveria varas mistas tributárias, com juízes estaduais e federais. Os processos seriam distribuídos por sorteio e poderiam ficar com qualquer magistrado habilitado no país. O mesmo juiz seria responsável por quaisquer ações relacionadas a uma mesma operação.
Já a segunda instância seria formada por turmas tributárias mistas, com composição paritária entre desembargadores estaduais e federais, que se alternariam na presidência de cada colegiado.
Para além das turmas, haveria ainda um órgão pleno responsável pela harmonização da jurisprudência sobre IBS e CBS. Também seria possível apresentar recurso especial e recurso extraordinário contra as decisões, assim como ocorre nos tribunais de segundo grau.
Foro nacional e misto
Diego Diniz, sócio do escritório Daniel, Diniz & Branco Advocacia Tributária (DDTax), aponta a necessidade de unidade interpretativa nas discussões judiciais sobre CBS e IBS. De acordo com ele, isso seria possível a partir de um órgão único e especializado, com magistrados dedicados exclusivamente aos julgamentos desses casos, e não apenas acumulando mais uma função.
Por isso, ele acredita que a proposta do grupo de trabalho “dilui essa unidade de forma indefinida”. Na sua visão, a ideia apresentada não evita “o risco de decisões antagônicas para situações idênticas”.
Mayra Tenório, tributarista do escritório /asbz, entende que o sorteio nacional entre juízes estaduais e federais acende a luz de alerta para o risco de falta de especialização.
Para ela, “o contencioso tributário exige domínio técnico”. Assim, se os sorteios acontecerem de forma aleatória e envolverem magistrados sem experiência prévia na área, “há risco de decisões inconsistentes e perda de eficiência”.
Segundo a advogada, faria sentido restringir o sorteio a juízes com experiência comprovada em Direito Tributário, “garantindo maior especialidade, previsibilidade e segurança jurídica desde a origem”.
“A ausência de um corpo fixo e especializado de magistrados impede a formação de núcleos de jurisprudência estável, reduzindo a coerência decisória”, opina ela. “Sem juízes preparados e estrutura técnica consistente, o modelo pode se tornar um experimento institucional de difícil execução prática.”
Os possíveis “entraves de entendimento” também preocupam Eduarda Tupiassú, sócia do Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes & Lobato Advogados, devido à insegurança sobre quem julgará cada ação.
Ela reforça que hoje existe um grande problema de ausência de uniformização, justamente porque cada tema é decidido de forma diferente, a depender do juiz ou tribunal. Ao misturar dois ramos distintos da Justiça, o modelo proposto também possibilita decisões diferentes.
A advogada ainda ressalta que uma grande parte do contencioso tributário migraria para essas varas mistas. Elas se tornariam, portanto, supervaras. E, se uma empresa tivesse muitas ações sobre a mesma operação, um determinado juiz ficaria com todas elas. De acordo com Eduarda, perpetua-se o problema do “assoberbamento das varas”.
Sócio da área tributária do Cescon Barrieu, Hugo Leal vê pontos positivos na proposta, a começar pelo fato de que ela reduz os riscos de conflitos de competência entre a Justiça estadual e a Justiça Federal, assim como conflitos de competência territorial.
Na sua visão, a proposta de reforma processual tributária reduz o risco de julgamentos contraditórios entre casos do IBS e da CBS — algo importante, já que são tributos idênticos (com exceção das alíquotas). A ideia do grupo de trabalho “facilita a uniformização de jurisprudência sobre tributos com regras idênticas”.
Por outro lado, o tributarista acredita que a distribuição de um processo para um juiz localizado em qualquer ponto do país, “sem qualquer conexão geográfica com a operação”, pode gerar um distanciamento entre os julgadores e as partes. Há também o risco de “eventuais questionamentos constitucionais”, afinal, um juiz do Ceará poderia decidir contra o estado de São Paulo ou contra um contribuinte com domicílio na Bahia, por exemplo.
Foro digital
Como o julgador não necessariamente estará vinculado ao local de origem ou de destino da operação ou do negócio, José Eduardo de Paula Saran concorda que haverá um “distanciamento entre o contribuinte e a instância de julgamento”. Ele acredita que o funcionamento 100% online causará o mesmo efeito.
Eduarda Tupiassú faz coro à crítica ao foro totalmente digital. Ela lembra que advogados já enfrentam problemas atualmente em varas federais que vêm atendendo de forma remota. Muitas vezes, os profissionais não conseguem despachar com os juízes devido a problemas no atendimento da unidade.
Embora veja a proposta como um avanço, a advogada diz que é preciso sugerir algumas mudanças, a começar pelo juízo 100% digital. Segundo ela, os advogados precisam de algum lugar para tratar do processo, despachar, sustentar e participar ativamente de alguma maneira das discussões.
Hugo Leal entende que a tramitação exclusivamente digital das ações “pode gerar eficiência e celeridade”, diminuir o tempo de duração das disputas e evitar o deslocamento dos contribuintes e dos advogados para tribunais físicos.
Mas, apesar dos benefícios, o advogado também vê os lados negativos dessa ideia. O funcionamento digital, na sua visão, impede o acesso direto dos advogados aos juízes e a possibilidade de sustentações orais presenciais, o que pode enfraquecer o contraditório e a ampla defesa. Ele ainda destaca que seria necessária uma “infraestrutura tecnológica robusta”.
Propostas em jogo
Paralelamente ao grupo de trabalho do CNJ, os ministros Paulo Sergio Domingues e Regina Helena Costa, ambos do Superior Tribunal de Justiça, já apresentaram uma proposta diferente para regular a judicialização dos impostos criados pela reforma tributária.
O esboço de ato normativo ou convênio idealizado pelos magistrados prevê uma “política de litigante único”. A ideia é que as ações sobre a cobrança de um tributo sejam concentradas em apenas um ente federativo (a União, o estado ou o município), que seria definido a partir de determinados critérios.
Os ministros propõem dois critérios. Um deles é o porte do contribuinte. A União representaria os interesses do Fisco em casos de contribuintes sujeitos ao regime de lucro real (em geral, grandes empresas, com faturamento acima de R$ 78 milhões por ano).
Nos casos de contribuintes sujeitos ao regime do lucro presumido (em geral, médias empresas), o estado de domicílio da empresa deveria litigar. Já o município de domicílio ficaria responsável pelas ações de optantes do Simples Nacional (em geral, microempresas ou empresas de pequeno porte) e pessoas físicas.
Mas a regra seria diferente para execuções ou ações anulatórias de crédito tributário. O critério nessas situações seria o valor do crédito. Assim, ações de elevado valor ficariam com a União, enquanto as de pequeno valor caberiam aos municípios.
José Higídio
é repórter da revista Consultor Jurídico.