Reforma tributária e o cooperativismo no agronegócio (parte 1)

Por Fábio Pallaretti Calcini

17/10/2025 12:00 am

A reforma tributária do consumo, por meio da Emenda Constitucional nº 132/2023, ao disciplinar os novos tributos IBS e CBS, traz importante alteração no sistema constitucional tributário ao estabelecer para o cooperativismo um regime tributário específico (artigo 156-A, § 6º, III, da CF).

O regime específico tributário para o cooperativismo, especialmente, na cadeia do agronegócio foi regulamentado pela Lei Complementar nº 214/2025, com destaque para os artigos 271 e 272.

Cooperativismo e tributação: aspectos gerais
O cooperativismo, como também se dá com a cadeia do agronegócio, recebeu no texto constitucional um tratamento favorecido e diferenciado, a fim de que se tenha uma adequação às peculiaridades existentes para esta relevante forma de associação.

Ora, as cooperativas possuem proteção constitucional desde o artigo 5º, XVIII, ao tratar da liberdade de associação como direitos fundamentais, como também ao direcionar o legislador no sentido de que deve estimular e apoiar esta forma de associação (artigo 174, § 1º CF/88).

Não é por outra razão que, do ponto de vista tributário, temos o artigo 146, III, “c”[1], da Constituição, estabelecendo que lei complementar cuidará de estruturar normas gerais visando dar tratamento adequado ao ato cooperativo.

Tratamento adequado significa dizer que a lei complementar deve necessariamente disciplinar, do ponto de vista fiscal, os atos cooperativos, com o objetivo de propiciar a plena realização da associação por meio do cooperativismo, tornando-se um importante elemento de indução ou incentivo. A Constituição reconhece no cooperativismo um direito fundamental, impedindo que a tributação dos atos cooperados seja tratada sem levar em consideração as peculiaridades que permeiam essa forma de associação, bem como o fato de que esse direito deve ser induzido e viabilizado, servindo o sistema tributário de agente para tal fim.

Portanto, o sistema de tributação, quando cuida de disciplinar o ato cooperativo, deve ter o objetivo de viabilizar o cooperativismo, caracterizando-se mais como um elemento de incentivo ou indução do que de arrecadação, sob pena de restringir indevidamente esse direito fundamental. Bem por isso, desde a criação de leis, implantação de políticas públicas ou mesmo interpretação e aplicação dos textos normativos que disciplinam o cooperativismo, caberá sempre se pautar pela premissa de que tais medidas devem ter como fim último e mais relevante a busca pela plena e efetiva concretização daquele e nunca a restrição [2] [3].

De outro lado, quando se trata de unir ao cooperativismo à cadeia do agronegócio, temos ainda todo o tratamento diferenciado e favorecido para este setor que, por sua vez, em última instância, busca concretizar direitos fundamentais que gravitam em torno da segurança alimentar e sustentabilidade [4] [5].

Mais do que isso, ao analisarmos o artigo 187, do texto constitucional, que disciplina a política agropecuária, notamos a determinação de fomento e incentivo, seja por meio de instrumentos fiscais, mas, também, por meio do cooperativismo [6].

Daí porque, temos uma consequência relevante do ponto de vista fiscal: o regime tributário diferenciado concedido ao agronegócio e o tratamento adequado ao ato cooperativo (regime específico) não se excluem, mas convivem harmonicamente!

Agronegócio, cooperativismo e reforma tributária [7]
Sob a perspectiva da reforma tributária do consumo, tivemos uma grande inovação quanto ao cooperativismo e o ato cooperativo, uma vez que, mais do que a previsão do adequado tratamento tributário (artigo 146, III, “c”), pela primeira vez, consignou-se, expressamente, a não incidência de tributos nestas operações, de tal sorte que se adquiriu plena e efetiva proteção constitucional.

Isso porque, em conjunto com o artigo 146, III, “c”, temos a previsão constitucional do artigo 156-A, § 6º, III, que preceitua:

“Art. 156-A. (…)
§6º. Lei complementar disporá sobre regimes específicos de tributação para:
III – sociedades cooperativas, que será optativo, com vistas a assegurar sua competitividade, observados os princípios da livre concorrência e da isonomia tributária, definindo, inclusive: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)
a) as hipóteses em que o imposto não incidirá sobre as operações realizadas entre a sociedade cooperativa e seus associados, entre estes e aquela e pelas sociedades cooperativas entre si quando associadas para a consecução dos objetivos sociais; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)
b) o regime de aproveitamento do crédito das etapas anteriores; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023).”

Houve, assim, no texto constitucional, previsão expressa no sentido de que, mediante regime específico e optativo, Lei complementar estabeleceria “as hipóteses em que o imposto não incidirá sobre as operações realizadas entre a sociedade cooperativa e seus associados, entre estes e aquela e pelas sociedades cooperativas entre si quando associadas para a consecução dos objetivos sociais”, ou seja, quanto ao denominado ato cooperativo típico [8], além de regime de aproveitamento de créditos das etapas anteriores.

Tratando de cooperativas voltadas para o setor do agronegócio, além das questões relacionadas ao adequado tratamento ao ato cooperativo, como veremos adiante, convém lembrar que também gozarão, de forma harmônica, do tratamento dado aquele setor, em especial: (1) Redução alíquota em 60% — alimentos destinados ao consumo humano; produtos agropecuários, aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais in natura; insumos agropecuários e aquícolas; (2) Redução alíquota em 100% — produtos hortícolas, frutas e ovos; (3) Alíquota zero (0%) — cesta Básica Nacional de Alimentos; (4) alíquota zero (0%) — tratores, máquinas e implementos agrícolas — produtor não contribuinte; (4) Produtor rural (PF/PJ) — não contribuinte e gerador de crédito presumido; (5) Biocombustíveis e regime favorecido em face dos combustíveis fósseis.

Por sua vez, sob a perspectiva geral tributária, quanto ao cooperativismo não haveria incidência nas seguintes hipóteses (artigo 6º, da LC 21/2025): (1) recebimento de dividendos e de juros sobre capital próprio, de juros ou remuneração ao capital pagos pelas cooperativas; (2) destinação de recursos por sociedade cooperativa para os fundos previstos no artigo 28 da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971, e reversão dos recursos dessas reservas; e (3) o repasse da cooperativa para os seus associados dos valores decorrentes das operações previstas no caput do artigo 271 desta Lei Complementar e a distribuição em dinheiro das sobras por sociedade cooperativa aos associados, apuradas em demonstração do resultado do exercício, ressalvado o disposto no inciso III do caput do artigo 5º desta lei complementar.

Ademais, tratando do regime específico e optativo assevera o artigo 271, da Lei Complementar nº 214/25:

“Art. 271. As sociedades cooperativas poderão optar por regime específico do IBS e da CBS no qual ficam reduzidas a zero as alíquotas do IBS e da CBS incidentes na operação em que:
I – o associado fornece bem ou serviço à cooperativa de que participa; e
II – a cooperativa fornece bem ou serviço a associado sujeito ao regime regular do IBS e da CBS.
§1º O disposto no caput deste artigo aplica-se também:
I – às operações realizadas entre cooperativas singulares, centrais, federações, confederações e às originárias dos seus respectivos bancos cooperativos de que as cooperativas participam; e
II – à operação de fornecimento de bem material pela cooperativa de produção agropecuária a associado não sujeito ao regime regular do IBS e da CBS, desde que anulados os créditos por ela apropriados referentes ao bem fornecido.
§2º O disposto no inciso II do caput deste artigo aplica-se também ao fornecimento, pelas cooperativas, de serviços financeiros a seus associados, inclusive cobrados mediante tarifas e comissões.
§3º A opção de que trata o caput deste artigo será exercida pela cooperativa no ano-calendário anterior ao de início de produção de efeitos ou no início de suas operações, nos termos do regulamento.
§4º O disposto no inciso II do § 1º não se aplica às operações com insumos agropecuários e aquícolas contempladas pelo diferimento estabelecido pelo § 3º do art. 138”.

Referido dispositivo normativo, em síntese, prevê o regime específico de IBS e CBS, optativo, ao cooperativismo, atribuindo alíquota zero (0%) nas operações em que (“ato cooperativo típico”): (1) o associado fornece bem ou serviço à cooperativa de que participa; e (2) a cooperativa fornece bem ou serviço a associado sujeito ao regime regular do IBS e da CBS; (3) realizadas entre cooperativas singulares, centrais, federações, confederações e às originárias dos seus respectivos bancos cooperativos de que as cooperativas participam; e (3) fornecimento de bem material pela cooperativa de produção agropecuária a associado não sujeito ao regime regular do IBS e da CBS, desde que anulados os créditos por ela apropriados referentes ao bem fornecido; (4) fornecimento, pelas cooperativas, de serviços financeiros a seus associados, inclusive cobrados mediante tarifas e comissões.

Por sua vez, o artigo 272, ainda, enuncia:

“Art. 272. O associado sujeito ao regime regular do IBS e da CBS, inclusive as cooperativas singulares, que realizar operações com a redução de alíquota de que trata o inciso I do caput do art. 271 poderá transferir os créditos das operações antecedentes às operações em que fornece bens e serviços e os créditos presumidos à cooperativa de que participa, não se aplicando o disposto no art. 55 desta Lei Complementar.
Parágrafo único. A transferência de créditos de que trata o caput deste artigo alcança apenas os bens e serviços utilizados para produção do bem ou prestação do serviço fornecidos pelo associado à cooperativa de que participa, nos termos do regulamento.”

Este dispositivo, conforme determinação constitucional, reconhece a possibilidade de transferência de crédito básico e presumido para as cooperativas, quanto “os bens e serviços utilizados para produção do bem ou prestação do serviço fornecidos pelo associado à cooperativa de que participa”.

Considerações finais
Vemos, portanto, que o cooperativismo recebeu tratamento adequando do ponto de vista tributário na reforma tributária do consumo, sobretudo, de patamar constitucional, cravando que não haverá incidência [9] em suas operações, mediante um tratamento específico e optativo, havendo convivência harmônica deste regime jurídico com aquele estabelecido ao agronegócio de forma favorecida e diferenciada, de tal sorte que eles não se excluem, mas convivem harmonicamente.

[1] – “Art. 146. Cabe à lei complementar (…)III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas, inclusive em relação aos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)

[2] V. CALCINI, Fabio Pallaretti. Não cabe tributação do Funrural entre cooperado e cooperativas in COLUNA DIREITO DO AGRONEGÓCIO, CONJUR.

[3] Cooperativismo (art. 5º, XVIII; art. 146, III, “c”; art. 156-A, § 6º , III; art. 174, § 2º, art. 187, VI).

[4] Agronegócio (art. 1º, III; art. 5º “caput”; art. 6º “caput”; art. 23, VIII; art. 187, I, CF; art. 225, § 1º, VIII; art. 8º; art. 9º, § 1º, VIII, X e XI; § 3º, II, b ADCT – EC 132/2023). Sobre o tema: CALCINI, Fabio Pallaretti. Tributação no Agronegócio: algumas reflexões. Londrina: THOTH, IBDA, CONJUR, 2023. Cf ainda: aqui; aqui; aqui

[5] STF, ADI 5363, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 12-09-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 03-10-2023 PUBLIC 04-10-2023.

[6] – “Art. 187. A política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes, levando em conta, especialmente: I – os instrumentos creditícios e fiscais;(…) VI – o cooperativismo;”.

[7] Sobre o tema: FORCENTTE, Rodrigo. PEIXOTO, Marcelo Magalhães. (coord.) Tributação das cooperativas: impactos da reforma tributária. São Paulo: APET, 2025. Em especial artigo: REZENDE, Amanda Oliveira Breda. Reforma tributária – IBS e CBS aplicáveis às cooperativas. p. 39-52.

[8] – Lei n. 5.764/71: “Do Ato Cooperativo. Art. 79. Denominam-se atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associados, para a consecução dos objetivos sociais. Parágrafo único. O ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria.”

[9] – Em Lei Complementar disciplinada pelo instituto da alíquota zero.

Mini Curriculum

é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), professor da FGV Direito SP e Ibet, sócio tributarista Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

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