Reforma: o risco de empresas reféns da operação
Por Heron Charneski
17/10/2025 12:00 am
Ao passo que “minirreformas” de enorme impacto como a tributação de lucros e dividendos ocupam os noticiários neste final de ano, o Brasil se prepara para viver, a partir de 2026, uma das maiores transformações de sua história tributária. A reforma tributária do consumo, que promete simplificar o emaranhado desconexo de tributos hoje existentes (PIS, Cofins, ISS, IPI e ICMS), será um marco do sistema fiscal brasileiro. Para as empresas, a transição dos atuais para os novos tributos (IBS e CBS, o IVA-Dual) trará em sua esteira um aumento imediato na complexidade da gestão tributária e uma elevação significativa no grau de fiscalização. O paradoxo se revela claro: o que se desenha como simplificação legislativa exige, na prática, uma sofisticação inédita de estratégia, governança e inteligência organizacional. Cabe, neste momento, abraçar a oportuna recomendação cunhada pelo escritor português José Saramago: “Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo”.
A gestão tributária, por vezes vista como um campo meramente técnico, ganha afinal um status estratégico. A ela caberá prever riscos, capturar oportunidades fiscais legítimas e otimizar processos de forma contínua.
Observa-se, contudo, que boa parte das lideranças das áreas tributárias se encontra, atualmente, absorvida por tarefas operacionais imediatas. Entende-se compreensível essa visão, afinal, não se pode arriscar iniciar o ano de 2026 e ser surpreendido pela impossibilidade de emitir e acolher documentos fiscais. Os riscos imediatos vão de penalidades à interrupção de operações.
O olhar exclusivo no cumprimento dessas obrigações acessórias – em ajustes nos sistemas internos, nas rotinas de cálculos e no atendimento pontual de prazos fiscais -, consome um tempo valioso da agenda dos executivos e deixa pouco espaço para a construção de estratégias para enfrentar o impacto da reforma nos negócios e alinhar a governança tributária às prioridades da organização.
Trata-se de um descompasso que carrega riscos concretos. Empresas que permanecem reféns de uma agenda operacional deixam de discutir, por exemplo, como a nova legislação afetará o modelo de negócios, quais oportunidades de eficiência podem ser capturadas ou como as mudanças na carga tributária podem influenciar margens, preços e competitividade. Estabelece-se nesse ponto, portanto, a diferença entre reagir à lei e antecipar-se a ela.
Mais do que nunca, a governança tributária, em boa medida ainda relegada a segundo plano, deve estar no centro das discussões de conselhos e diretorias. Não se trata apenas de ajustar processos internos ou adotar novas ferramentas para calcular tributos automaticamente. É indispensável que a alta gestão empresarial incorpore à sua pauta as discussões sobre o futuro tributário, avançando na avaliação dos riscos que o negócio enfrenta, identificando os setores e produtos que serão mais onerados ou beneficiados e desenhando caminhos para a empresa mitigar passivos futuros, mapear oportunidades de eficiência fiscal, fortalecer controles e, ao mesmo tempo, encontrar espaço para inovar.
A abordagem da reforma como um programa de longo prazo, com benefícios compartilhados, em vez de um projeto temporário com um objetivo específico, é parte dessa dinâmica. O desenvolvimento de um plano de ação que contemple a visão do programa de adaptação (a definição de onde estamos e aonde queremos chegar), um cronograma com o estabelecimento das prioridades e a estrutura de liderança mais adequada (gestores, sponsors, comitês) deve envolver os órgãos de governança e fiscalização das companhias.
Em um ambiente de legislação dinâmica e fiscalização tecnológica, a ausência da visão estratégica pode custar caro – seja em autuações milionárias, seja na perda de espaço de mercado para concorrentes mais preparados. No sentido contrário, com o programa interno de adaptação à reforma, associado aos benefícios dos programas oficiais de conformidade, os ganhos financeiros serão reais.
Nesse cenário, o capital humano será decisivo. Destaque-se que a obsessão por digitalização operacional pode criar a ilusão de controle. A eficiência mecânica não substitui a clareza de visão. Profissionais capazes de interpretar, em tempo real, uma legislação complexa e dinâmica, terão papel central na organização para traduzir normas em decisões empresariais assertivas. Sem eles, a dependência de sistemas automatizados torna-se perigosa. Tal esforço, contudo, não pode ser isolado. Será necessário intensificar o diálogo com parceiros especializados e fornecedores de soluções tecnológicas, que vão oferecer a expertise jurídica e a robustez digital necessárias para garantir não apenas conformidade, mas também agilidade na tomada de decisão. A reforma tributária não será benevolente com quem tratar o tema de forma superficial.
É chegada a hora dos órgãos de governança dedicarem tempo e espaço para compreender o que a reforma realmente exige em termos de implementação e de interpretação da legislação, antes que ela se torne apenas uma barreira operacional. Faz-se, sobretudo, necessário desenhar estratégias que alinhem em um mesmo eixo a governança, o capital humano, o conhecimento e a tecnologia.
Se a reforma tributária impõe desafios inéditos, ela também oferece a chance de um salto de maturidade para organizações conseguirem transformar a complexidade em inteligência e a conformidade (compliance) em disciplina competitiva. O futuro da gestão tributária no Brasil não será apenas técnico, mas, inevitavelmente estratégico.
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sócio-fundador do Charneski Advogados e presidente do Instituto de Gestão Empresarial de Tributos (IGET)
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