Receita dribla lei e STJ para autuar subvenções negativas pré-2024

Por Igor Mauler Santiago, Débora Ferreira Costa Bertaglia, Pedro Henrique Morelato Benith

08/10/2025 12:00 am

A Receita Federal é má perdedora. Vencida no Tema 1.182 do STJ (Superior Tribunal de Justiça), que permitiu a exclusão das subvenções negativas de ICMS (isenções, reduções de base de cálculo e alíquota, etc.) na apuração do IRPJ e da CSLL, atendidos os requisitos do artigo 30 da Lei 12.973/2014 (contabilização em reserva de incentivos fiscais utilizável apenas para absorção de prejuízos — desde que já consumidas as demais reservas de lucros, salvo a reserva legal — e aumento de capital), passou a autuar os exercícios anteriores a 2024 [1] valendo-se de tese nova, desautorizada pela lei, pelo precedente e pela lógica.

Trata-se de afirmar que tais benefícios não geram receita para o contribuinte, especialmente quando este transfere para os seus clientes (via redução nos preços) o ganho tributário deles decorrente. Não trazendo acréscimo patrimonial para a empresa, as subvenções negativas não poderiam ser objeto de exclusão, pois só se deduz o que antes foi computado. Simples, elegante e totalmente errado, como adverte a famosa citação.

Que os benefícios negativos também se qualificam à exclusão está claro no caput do artigo 30: “as subvenções para investimento, inclusive mediante isenção ou redução de impostos, concedidas como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos (…) não serão computadas na determinação do lucro real…”.

Também o repetitivo discutiu o tema, ficando vencida a posição do ministro Francisco Falcão, para quem, “diferentemente do crédito presumido, de natureza positiva, os demais benefícios fiscais representam um decréscimo daquilo que se pagaria a título de ICMS”, não sendo o respectivo valor “parte integrante da grandeza econômica sobre a qual recaem o IRPJ e CSLL, de modo que não haveria o que excluir da base de cálculo dos tributos em questão” — justamente a linha ora sustentada pela Receita.

Que todos os benefícios de ICMS são subvenções para investimento, desde que cumprida a destinação mencionada acima, decorre do parágrafo 4º incluído no artigo 30 pela Lei Complementar 160/2017, como também pacificado pelo STJ [2].

À evidência, portanto, a premissa de que a exclusão do benefício depende de acréscimo patrimonial foi superada no julgamento do repetitivo. Anote-se que, por expressa disposição do artigo 508 do CPC, com o trânsito em julgado da decisão de mérito, todas as alegações e defesas que a parte poderia ter oposto à rejeição do pedido têm-se por repelidas (preclusão pro judicato).

E mais: o ICMS é calculado por dentro, de sorte que “integra a base de cálculo do imposto (…) o montante do próprio imposto, constituindo o respectivo destaque mera indicação para fins de controle” (Lei Complementar 87/96, artigo 13, parágrafo 1º, inciso I), sistemática há muito convalidada pelo STF [3].

Disso decorre que, qualquer que seja o preço cobrado pelo contribuinte, a dispensa total ou parcial do pagamento do imposto gera-lhe receita correspondente à diferença entre a alíquota padrão e a alíquota efetiva aplicada (seja ela positiva ou zero). Por isso, não compete ao Fisco adentrar a lógica econômica de precificação adotada pelo particular, tampouco supor o valor que teria sido cobrado se a incidência do ICMS se desse de forma integral.

A situação faz lembrar a conhecida história de Aliomar Baleeiro, que contamos neste espaço em 2013: iniciando uma caminhada pela orla carioca, o jurista se deparou com um stand de rua em que o quilo do peixe era anunciado a um determinado preço. Ao passar pela mesma banca na volta para casa, notou que o preço já era bem menor (um caso clássico de liquidação de fim de feira). Irônico, inquiriu o feirante:

– Tirou o ICM? (Eram velhos tempos.) Para ouvir como resposta:
– Não, senhor. O ICM está sempre dentro do peixe.

Some-se a isso que, segundo o STF, o ICMS é receita pública que apenas passa pelas mãos do comerciante (Tema 69 da repercussão geral e RHC 163.334/SC). Se é assim, a dispensa do seu repasse ao Estado só pode ser entendida como geradora de riqueza nova a ser apropriada por aquele.

Irrelevante para a discussão é o Ato Declaratório Interpretativo RFB 4/2024, que se limita a dispor que a exclusão deverá corresponder ao acréscimo patrimonial proporcionado ao contribuinte pela subvenção para investimento, e que não será realizada quando não houve acréscimo, mas não estabelece critérios para definir quando este ocorre ou não.

E mais: qualquer interpretação desse ato infralegal que contrariasse os termos da lei deveria ser prontamente afastada, como já decidiu a CSRF: “os representantes da Fazenda no Carf não estão jungidos às diretrizes emanadas da RFB, mas sim à legalidade, atuam com independência técnica” (Acórdão nº 9303-006.344, j. 21.02.2018).

Que as subvenções negativas geram receita é ponto pacífico na contabilidade, decorrendo do CPC 00 (R2): “receitas são aumentos nos benefícios econômicos durante o período contábil, sob a forma da entrada de recursos ou do aumento de ativos ou diminuição de passivos, que resultam em aumentos do patrimônio líquido, e que não estejam relacionados com a contribuição dos detentores dos instrumentos patrimoniais”. Específico para as subvenções governamentais é o CPC 07 (R1), segundo o qual “a contabilização deve ser a mesma independentemente de a subvenção ser recebida em dinheiro ou como redução de passivo”, acrescentando que “uma subvenção governamental deve ser reconhecida como receita ao longo do período” e, quanto àquelas consubstanciadas em isenção ou redução tributária, que o seu “reconhecimento contábil (…) é efetuado registrando-se o imposto total no resultado como se devido fosse, em contrapartida à receita de subvenção equivalente, a serem demonstrados um deduzido do outro”.

Em suma, a insubmissão da Receita Federal ao precedente vinculante do STJ — comportamento que explica em parte por que, no Brasil, as discussões nunca terminam — merece ser duramente rechaçada pelo Carf e pelo Judiciário.

_______________________________

[1] A coluna trata apenas deste período, visto que a partir de 2024 vigora sistemática distinta para o tratamento fiscal das subvenções para investimento, vazado na Lei 14.789/2023.

[2] Eis as teses firmadas no Tema 1.182:
“1. Impossível excluir os benefícios fiscais relacionados ao ICMS – tais como redução de base de cálculo, redução de alíquota, isenção, diferimento, entre outros – da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, salvo quando atendidos os requisitos previstos em lei (art. 10 da Lei Complementar 160/2017 e art. 30 da Lei 12.973/2014), não se lhes aplicando o entendimento firmado no EREsp. 1.517.492/PR que excluiu o crédito presumido de ICMS das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL.
2. Para a exclusão dos benefícios fiscais relacionados ao ICMS – tais como redução de base de cálculo, redução de alíquota, isenção, diferimento, entre outros – da base de cálculo do IRPJ e da CSLL não deve ser exigida a demonstração de concessão como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos.
3. Considerando que a Lei Complementar 160/2017 incluiu os §§ 4º e 5º ao art. 30 da Lei 12.973/2014 sem, entretanto, revogar o disposto no seu § 2º, a dispensa de comprovação prévia, pela empresa, de que a subvenção fiscal foi concedida como medida de estímulo à implantação ou expansão do empreendimento econômico não obsta a Receita Federal de proceder ao lançamento do IRPJ e da CSSL se, em procedimento fiscalizatório, for verificado que os valores oriundos do benefício fiscal foram utilizados para finalidade estranha à garantia da viabilidade do empreendimento econômico.”

[3] Pleno, RE 212.209/RS, Relator Ministro Nelson Jobim, DJ 12.02.2003

Mini Curriculum

Igor Mauler Santiago
é sócio-fundador do Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais, membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).

Débora Ferreira Costa Bertaglia
é advogada e contadora. Sócia de Mauler Advogados.

Pedro Henrique Morelato Benith
é pós-graduado em Direito Tributário pelo IBDT. Sócio de Mauler Advogados.

Continue lendo