PLP 108/2024: as alterações no contencioso da reforma tributária

Por Pedro Saraiva Lima Sousa

07/10/2025 12:00 am

O Projeto de Lei Complementar nº 108/2024 constitui a segunda fase regulamentar da reforma tributária para regulamentar partes essenciais da reforma tributária. Durante sua tramitação, o projeto recebeu 517 emendas na CCJ. Dessas, cerca de 150 foram acolhidas, seja total ou parcialmente. Posteriormente, no plenário do Senado, aproximadamente 200 novas emendas foram apresentadas, com 65 delas aceitas parcialmente.

Originalmente concebido para disciplinar exclusivamente o contencioso administrativo e o funcionamento do Comitê Gestor do IBS, o projeto expandiu significativamente seu objeto, incluindo alterações à própria Lei Complementar nº 214/2025, promulgada em janeiro. O novo relatório, apresentado em 17 de setembro de 2025 na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ), trouxe mudanças expressivas e sistematizações que consolidam a abordagem do IBS e do ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação).

Estrutura do Comitê Gestor e questões de autotutela

O Comitê Gestor foi concebido como órgão sui generis, desprovido de vinculação, tutela ou subordinação hierárquica, dotado de autonomia técnica, administrativa, orçamentária e financeira. Tal configuração institucional suscita contradição jurídica: a ausência de vinculação à estrutura da administração pública impede o exercício da autotutela administrativa. Os tribunais administrativos fiscais fundamentam sua atuação no poder-dever de autotutela, que permite à administração anular atos ilegais ou revogar atos inconvenientes ou inoportunos. Um órgão completamente autônomo, sem accountability institucional, não se insere nessa estrutura.

Principais inovações processuais
Vedação à revisão do lançamento
A alteração processual mais significativa consiste na supressão do parágrafo 3º do artigo 84 da redação anterior, dispositivo que facultava à autoridade lançadora modificar o lançamento posteriormente à impugnação, sob fundamento de “necessidade de reformulação”. Tal previsão possibilitaria alterações substanciais da alíquota, base de cálculo e fundamentação fática e jurídica do lançamento, violando o artigo 145 do Código Tributário Nacional e a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça que veda modificação do critério jurídico após constituição do crédito. A norma anterior apresentava flagrante inconstitucionalidade, vulnerando os princípios da segurança jurídica, do devido processo legal e da ampla defesa.

Regime probatório
As provas devem instruir a impugnação inicial, admitindo-se sua apresentação em segunda instância excepcionalmente nas hipóteses de fato novo, impossibilidade de apresentação oportuna por justa causa, força maior, fato ou direito superveniente, ou necessidade de contraposição a alegação apresentada posteriormente pela Fazenda Pública. O aperfeiçoamento normativo consistiu na eliminação da exigência de que a justa causa fosse “devidamente demonstrada pelo contribuinte”, afastando ônus excessivo incompatível com o princípio da proporcionalidade.

Sistema de precedentes vinculantes
A disciplina dos precedentes vinculantes sofreu modificação controversa: o projeto passou a fazer referência exclusiva ao inciso III do artigo 927 do Código de Processo Civil (Incidente de Assunção de Competência e Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas), quando anteriormente mencionava a integralidade do dispositivo. Foram acrescidos incisos vinculando às súmulas editadas pelo Comitê Gestor e às decisões da Câmara Nacional de Integração do Contencioso.

Instrumentos recursais
O recurso de ofício recebeu correção técnica relevante. A terminologia “dispensa de interposição” foi substituída por “não cabimento”, adequando-se à natureza jurídica das hipóteses elencadas. Foi instituído recurso de uniformização, com prazo decadencial de dez dias, legitimação ativa conferida à Fazenda Pública e ao contribuinte, destinado às hipóteses de divergência decisória entre as instâncias do IBS e da CBS, suprimindo-se o limite temporal quinquenal anteriormente previsto para o paradigma.

O incidente de uniformização foi bipartido: a modalidade destinada a matérias repetitivas reserva legitimação ativa à Fazenda Pública ou ao presidente da câmara de julgamento, sem efeito suspensivo da exigibilidade; a modalidade voltada à inobservância de provimento vinculante do Comitê Gestor estende legitimação ao contribuinte e determina suspensão da exigibilidade do crédito tributário. A estrutura aproxima o processo administrativo tributário da sistemática dos precedentes judiciais, representando modernização metodológica.

Regime procedimental
As sessões de julgamento, anteriormente designadas apenas como “virtuais”, passaram a ser qualificadas como “virtuais e síncronas”, indicando realização em tempo real. Persiste, contudo, a ausência de previsão de sessões presenciais, situação que suscita questionamentos quanto à plenitude do direito de defesa e do contraditório. A advocacia tributária manifesta críticas substanciais ao plenário virtual mesmo nas hipóteses em que se faculta requerimento de sessão presencial. No regime do IBS, inexiste até mesmo essa possibilidade.

Quanto aos direitos das partes, houve ampliação expressa para incluir o memorial escrito, além da sustentação oral e da audiência. Observou-se, entretanto, retrocesso nos requisitos para julgadores: a exigência de experiência em julgamento de processos tributários passou de “necessária” para “preferencial”, permitindo a nomeação de julgadores sem expertise específica. Em contraponto, o projeto passou a sistematizar expressamente, no artigo 100, as hipóteses de perda de mandato e renúncia tácita, anteriormente relegadas à regulamentação pelo Comitê Gestor, providência que incrementa a segurança jurídica.

Realinhamento sistemático do Comitê de Harmonização
A alteração estrutural mais significativa consistiu na extração dos artigos 111 a 113 da seção relativa ao contencioso administrativo, com sua reinserção no artigo 321, que disciplina a consulta tributária. Na Lei Complementar nº 214/2025, atribuiu-se ao Comitê competência para uniformizar legislação, prevenir litígios e deliberar sobre obrigações acessórias. A versão inicial do PLP 108 no Senado introduziu o vocábulo “jurisprudência”, configurando impropriedade técnica. Jurisprudência pressupõe análise de casos concretos, função julgadora que demandaria composição paritária. A correção implementada suprimiu a referência inadequada e reposicionou o Comitê na seção de consultas, restaurando sua natureza consultiva originária, dispensando composição paritária por não exercer função judicante.

Câmara Nacional de Integração: déficit de paridade
A Câmara Nacional de Integração do Contencioso Administrativo, instituída pelo relatório de 17 de setembro, constitui a instância destinada à análise de casos concretos caracterizados por divergência interpretativa entre as últimas instâncias do tribunal do IBS e do Carf. Ambas as partes detêm legitimação recursal. A composição prevista, todavia, compromete a efetividade do órgão: dos 12 conselheiros, apenas quatro representam contribuintes, enquanto oito representam a Fazenda Pública (União, estados, Distrito Federal e municípios).

A ausência de paridade efetiva esvazia a função do órgão, transformando-o em dispêndio de recursos públicos sem contrapartida em qualidade decisória. A avaliação técnica sugere que, mantida a proporção, seria preferível suprimir as estruturas administrativas de julgamento e remeter integralmente as controvérsias ao Poder Judiciário, uma vez que o contencioso administrativo não cumpriria seu objetivo institucional de proporcionar julgamento equilibrado e imparcial.

Demais alterações normativas
No âmbito do direito material tributário, destacam-se: flexibilização da responsabilidade de plataformas digitais (prazo de 30 dias para regularização, com afastamento de multas e juros); consolidação de documentos fiscais por município na área da saúde; ampliação de medicamentos com alíquota zero (doenças raras, oncologia, diabetes); inclusão de derivados petroquímicos no regime monofásico do ICMS; tolerância para falhas operacionais no split payment; redução de penalidades por descumprimento de obrigações acessórias; metodologia de cálculo da alíquota de referência pela média do triênio 2024-2026; disciplina específica de programas de fidelidade em serviços financeiros; postergação do início de vigência do crédito presumido de IBS para 2027; redução da carga tributária das Sociedades Anônimas do Futebol de 8,5% para 5%; e arranjo transitório de repartição de indicações municipais no Comitê Gestor entre a Confederação Nacional de Municípios e a Frente Nacional de Prefeitos.

Manteve-se o regime especial de parcelamento para hipóteses de voto de qualidade: havendo empate e desempate favorável à Fazenda Pública, o contribuinte dispõe de prazo de 90 dias para quitação com exclusão de juros, eventual exclusão de multas e arquivamento da representação fiscal para fins penais. A previsão de parcelamento em 12 prestações foi suprimida.

Lacunas normativas
O PLP 108 estabelece que fiscalizações de IBS envolvendo interesse de múltiplos entes federados devem ser conduzidas de forma conjunta e integrada, sem, contudo, definir a possibilidade de lavratura de múltiplos autos de infração. Permanece indefinido o destino dos tribunais administrativos municipais existentes. Observa-se ausência de disciplina sobre tributação de criptoativos, inteligência artificial, economia de compartilhamento e outras modalidades tecnológicas emergentes. Questões relativas à justiça fiscal e à autonomia federativa demandarão necessariamente retomada no processo legislativo futuro.

Considerações finais
O PLP 108/2024 apresenta avanços procedimentais significativos, notadamente a vedação à revisão do lançamento após impugnação, o aperfeiçoamento do regime probatório e recursal, a sistematização de precedentes vinculantes, a correção do posicionamento institucional do Comitê de Harmonização e a eliminação do pseudo-recurso hierárquico. Não obstante, identificam-se retrocessos estruturais: inserção inadequada do tribunal do IBS em estrutura administrativa imprópria; composição não paritária da Câmara Nacional de Integração; ausência de previsão de julgamentos presenciais; flexibilização dos requisitos de experiência para julgadores; e complexidade institucional contrária ao princípio constitucional da simplificação.

O projeto retorna à Câmara dos Deputados, onde se prevê tramitação célere. Alterações substantivas permanecem possíveis. A reforma tributária, em sua segunda etapa regulamentar, demanda ajustes fundamentais para concretizar os objetivos constitucionais de simplificação e eficiência do sistema tributário nacional.

Mini Curriculum

é advogado tributarista no escritório João Batista Advocacia e especialista em Direito Tributário pela PUC Minas.

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